COP30: “A exploração do petróleo pelo lulismo é resultado da falta de imaginação política”. Entrevista especial com Moysés Pinto Neto

“De que modo é possível pensar a política não apenas abstratamente – como um exame idealista das instituições – mas concretamente, no seu dia a dia conjuntural, sem se limitar a narrar jogos de poder traçados em torno às instituições do Estado?”, questiona o filósofo

Foto: Fotos Públicas

13 Novembro 2025

“Para nós, este é um momento de revolta, de indignação, é um momento em que nós, indígenas, sentimos na pele a derrota do nosso território. Nós não comemos dinheiro. Nós queremos o nosso território livre do agronegócio, da exploração de petróleo, da exploração de minério, da exploração de madeireiros”. A declaração do cacique Gilson Tupinambá, no segundo dia da COP30, enquanto manifestantes tentavam acessar a Zona Azul, espaço oficial da conferência, onde acontecem as negociações entre os países, é um exemplo concreto das insatisfações com os rumos da política nacional na área socioambiental. A manifestação emerge num contexto em que o país é afetado por eventos climáticos extremos, o Ibama autoriza a Petrobras a pesquisar a viabilidade de exploração de petróleo na Foz do rio Amazonas, com apoio presidencial, a Amazônia é afetada pela extração mineral e a violência contra os povos indígenas aumenta. 

O caso exemplifica as análises de Moysés Pinto Neto no livro Política especulativa: ensaio sobre as imagens de futuro em disputa no século XXI (Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2025). A obra reflete sobre o encurtamento da imaginação política e propõe elaborar um modo de pensá-la. “Estamos situados no paradigma Estado/Mercado e disputando a política unicamente nesses termos. Isso encurta a possibilidade de sonhar outros mundos”, assegura.

Nesta entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Pinto Neto destaca a crise ecológica como “o principal desafio do nosso tempo” e considera o discurso do presidente Lula na COP30 como o resultado da falta de imaginação política. “Vejamos o nosso caso particular: Lula, ao mesmo tempo que propõe o abandono de combustíveis fósseis na COP30, autoriza a exploração de petróleo na foz do Amazonas. (…) A exploração do petróleo pelo lulismo não é só uma contradição momentânea; é resultado da falta de imaginação política”.

A seguir, Moysés Pinto Neto discorre sobre os principais modelos de pensamento que impedem o nascimento de uma política diferente da vigente. Ele reflete também sobre os modelos de futuro disputados pelos indígenas, supremacistas, o Edenismo e o Digitalismo.

Moysés Pinto Neto (Foto: Arquivo pessoal)

Moysés Pinto Neto é doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, com período-sanduíche no Centre for Research in Modern European Philosophy, no Reino Unido. É editor do canal Transe e fundador da plataforma educacional Alternativa Hub.

Confira a entrevista.

IHU – Qual foi a motivação para escrever Política especulativa: ensaio sobre as imagens de futuro em disputa no século XXI?

Moysés Pinto Neto – O livro é um compilado entre alguns ensaios publicados e outros textos inéditos. Minha motivação pessoal foi dar aos meus estudos a forma de um livro, reunindo aspectos aparentemente díspares que têm me interessado nas últimas duas décadas, mostrando os fios que as conectam. A academia tem como hábito valorizar a hiperespecialização. Por trás do argumento constante de que “é muita coisa junta”, típico de análises superficiais às vezes presentes em periódicos, bancas e avaliações diversas, existe uma preguiça intelectual de conectar, comparar e juntar fragmentos. Aprendi isso na prática: vendo meu trabalho rejeitado em algumas instituições sob esse pretexto, ao mesmo tempo que em várias muitas outras ele ressoava como uma aproximação que fazia todo sentido. 

Ao mesmo tempo que, ouvindo uma palestra sobre Literatura Infantil, eu pensava nas pontes entre a Criminologia, os Estudos Culturais e a Educação, também me vi enfrentando resistência de scholars presos em convenções acadêmicas que se mantêm pela sua força burocrática autoritária. Preferi me agarrar à transversalidade indisciplinar que me fez conversar, formal e informalmente, com áreas como a filosofia, a literatura, a educação, o direito, a sociologia, a antropologia, a psicanálise, a comunicação, a psicologia, o urbanismo e as artes. Não sem alguns custos pessoais, mas não é objetivo tratar disso.

De qualquer modo, o escopo do trabalho é reunir um novo modo de pensar a política, não regido pela “Constituição moderna”, que separa os humanos dos não humanos, a razão do afeto, o natural do simbólico e do artificial, o humano do animal, entre outras possíveis dicotomias que estruturam a política moderna. De que forma é possível pensar a política não apenas abstratamente – como um exame idealista das instituições – mas concretamente, no seu dia a dia conjuntural, sem se limitar a narrar jogos de poder traçados em torno das instituições do Estado? Como podemos incorporar as novas formas de expressão filosófica – nos pensamentos afrodiaspórico, indígena, ecológico, feminista, ciborgue, descolonial, contracolonial etc. – considerando-os como expressões da arena de disputas políticas da contemporaneidade? Esse tipo de pergunta que o livro buscou responder.

Capa do livro de Moysés Pinto Neto (Foto: Divulgação)

IHU – A que atribui a falta de imaginação política que impera hoje?

Moysés Pinto Neto – Em parte, é um efeito coercitivo das relações materiais de produção, isto é, aquilo que Mark Fisher chamava de “realismo capitalista”, mas que já poderíamos remeter para muito mais longe, desde a longeva tradição da crítica à reificação. Mas Fisher traz outro componente importante: o encurtamento da imaginação. Estamos situados no paradigma Estado/Mercado e disputando a política unicamente nesses termos. Isso encurta a possibilidade de sonhar outros mundos. 

Perspectivas políticas

Em outras perspectivas políticas (cósmicas), o sonho desempenha um papel central, não apenas como “utopia”, mas como via de comunicação entre mundos que ocupa o lugar da nossa soberana consciência. A Modernidade é a era da consciência, com seu projeto racionalizador que se traduz no ideal de emancipação. Mas outros povos reservam espaços maiores para a imaginação, inclusive não colocando-a no regime ontológico da “ficção”, que seria o oposto da “realidade”, como os modernos fazem afirmando assim como única possibilidade o mundo desencantado regido pela razão, seja na forma-mercadoria (capitalismo, à direita), seja no forma-Espírito (socialismo e comunismo, à esquerda). 

Abrir a imaginação significa conectar a política com as esferas que foram colocadas como zonas menores na filosofia, isto é, as zonas estéticas, que envolvem uma experimentação do sensível. Em vez disso, a política moderna procura abstrair as condições concretas, corpóreas, sensíveis e imaginárias, estabelecendo normativas racionais que possam reger indivíduos desencorpados, governados pelo cálculo racional ou algum outro tipo de racionalidade prática compatível com a Constituição moderna, e exclusivamente humana.

IHU – Como esquerda e direita enfrentam – ou falham em enfrentar – os desafios de repensar a política em nosso tempo?

Moysés Pinto Neto – O principal desafio do nosso tempo é a crise ecológica, basicamente porque tudo será diferente com o aprofundamento das mudanças climáticas. Quais esquerdas e direitas estão debatendo o tema?

Existe, sim, uma investigação intelectual de largo espectro sobre isso. Mas, na prática, o que vemos em termos de ação política oscila entre a denegação – o chamado “negacionismo climático” – e o puro niilismo, a atitude de fuga dos bilionários diante dos efeitos da crise climática. Vejamos o nosso caso particular: Lula, ao mesmo tempo que propõe o abandono de combustíveis fósseis na COP30, autoriza a exploração de petróleo na foz do Amazonas. Alguns dirão: “antes ele que outro, ao menos assim há regulamentação e distribuição de renda”. É um argumento que faz sentido no quadro da política moderna, que externaliza a chamada “Natureza” como componente fora dos esquadros políticos, restritos à intersubjetividade humana.

Mas vimos como isso opera na pandemia do Covid-19: de repente, tudo que acreditávamos estável rapidamente se derreteu, a economia parou e projetos políticos foram interrompidos. A conversa não era só entre humanos; havia ali um agente não humano que não estava para argumentos, nem justificativas, ele simplesmente se intrometia e produzia seus efeitos independentemente da nossa tagarelice (principalmente a negacionista). A crise climática será muito pior que isso.

Resultado da falta de imaginação política

A exploração do petróleo pelo lulismo não é só uma contradição momentânea; é resultado da falta de imaginação política, uma “antropologia” muito pobre, como sempre destacava Viveiros de Castro. Em um país como o Brasil, que é inferno na Terra para parte da sua população, o lulismo, com seu projeto de ascensão social dos pobres e um “país de classe média”, soa como um alento. Mas a antropologia lulista é a do sujeito consumidor, aquele que dispõe de renda para comprar os bens de consumo necessário e, se possível, algum luxo. Portanto, não há uma ruptura com as condições de possibilidade que nos levaram ao colapso ecológico: o fato de que produzimos e consumimos muito mais que o necessário, e que todo nosso sistema é pensado de uma tal maneira que fugir disso significa um suicídio político. 

IHU – Esquerda e direita estão presas a quais modelos de pensamento, que as impedem de imaginar uma política diferente da vigente?

Moysés Pinto Neto – Existem muitas esquerdas e muitas direitas, e em parte o esforço do livro é trazer isso à tona. Como costumamos dividir a cena em dois, procurei dividir em quatro. Não é muito, mas ao menos é um pouco mais.

Separei o que chamei, do que seria o lado esquerdo, o “anarco-indigenismo” do “comunismo de luxo”. Eles não são puros, entre eles há uma passagem de híbridos que lhes chega como pontas extremas. A diferença entre eles é mais ou menos simples. De um lado, o anarco-indigenismo é composto tanto de resistências internas à Modernidade que rejeitam o modelo urbano-industrial-crescimentista – associo isso às contraculturas – quanto daqueles povos cuja forma-de-vida já é, em si mesma, contracolonial e anticapitalista, como muitos povos indígenas e quilombolas.

Do outro, o comunismo de luxo é a tendência universalista da abundância total, baseada no aprofundamento industrial, na generalização da automação, no planejamento econômico, e o avanço tecnológico distribuído de forma igualitária. No lado do comunismo de luxo, temos o aprofundamento do projeto moderno, que eu associo ao aceleracionismo (de esquerda). De outro, temos os “objetores do crescimento”, como diz Stengers, os coletivos que extrapolam as formas-de-vida modernas, com outras ecologias e cosmologias, outra relação com o tempo e o espaço.

Do lado direito, coloquei o “aceleracionismo capitalista” e o “etnofascismo”. Inicialmente, enquanto escrevia os primeiros ensaios, o aceleracionismo estava colado ao que Nancy Fraser chama de “neoliberalismo progressista”, isto é, uma postura neoliberal em termos distributivos e inclusiva do ponto de vista do reconhecimento (cultural). Hoje, com Trump, já está migrando para o outro lado. De qualquer modo, está ligado ao projeto de abstração e digitalização típico das Big Techs. Já o etnofascismo, alimentado pelas forças do racismo e de um niilismo desesperado, é o projeto de supremacia branca que se alimenta da insatisfação e do ressentimento produzido pelo hiato de vinte anos de hegemonia neoliberal (1990-2010).

Essas variantes podem servir como bússola para pensarmos a política institucional. Talvez por isso muitos insistam que a direita hoje é mais “radical” que a esquerda, já que o etnofascismo está muito mais à vista – em governos como Trump e Netanyahu – que as variantes de esquerda (a primeira, inclusive, apenas tática, estratégica e eventualmente próxima da política institucional). 

IHU – No livro, você afirma que os nostálgicos do Estado de bem-estar social e o neoliberalismo pertencem ao mesmo espectro. Pode explicar melhor essa afirmação?

Moysés Pinto Neto – ​De um ponto de vista ecológico, ambos são aceleracionistas. A chamada “Grande Aceleração”, que corresponde ao período pós-Guerra em que se desenrolou a sociedade do consumo, foi produzida no interior do Estado de bem-estar social do Norte Global. Do outro lado, as relações entre neoliberalismo e aceleração hoje estão mais que óbvias. Temos não só os inúmeros trabalhos sobre aceleração – usei alguns: Franco Berardi, Crary, Han, Turcke, Stiegler – como a forma mais radical, que mais tarde nomeei (no último capítulo) como “digitalismo”, que é o Capital sem humano, a perspectiva de Nick Land que envolve a superação do orgânico em direção a um maquínico que opera seus feedbacks positivos sem limites, libertando-se dos suportes corpóreos.

Vimos essa limitação no caso brasileiro: no período mais próspero do lulismo e, mais ainda, no período de Dilma Rousseff, nosso “atraso” econômico era uma espécie de vantagem. Uma vez que estaríamos atrasados na corrida do desenvolvimento, poderíamos “acelerar” (daí, por exemplo, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)) para crescer rapidamente, ao modo chinês, inserindo-nos na dinâmica do capitalismo industrial por meio do pacto com as elites nacionalistas. Claro, deu tudo errado. Mas o imaginário era o de aceleração. Quem pensou diferente era chamado pela ministra Gleisi de “minoria com projeto político irreal”. 

Ambos os lados medem seus sucessos pelo crescimento do PIB, pelo aumento da produção e do consumo, e deixam a questão ecológica como “externalidade”. Claro, são diferentes: os neoliberais simplesmente olham para os números, enquanto os social-democratas buscam a “inclusão” social, a diminuição da desigualdade e a cidadania geral.

IHU – O aceleracionismo é apresentado como o terceiro espírito do capitalismo e a resistência, como o novo espírito do anticapitalismo. De que forma esses dois espíritos influenciam a política contemporânea? Eles acabam limitando a possibilidade de uma nova imaginação política?

Moysés Pinto Neto – Seguindo a última resposta, comento, com Christophe Türcke, como o sonho de “integração” representa um rebaixamento de expectativas em relação ao que se propunha nas contraculturas. A relação das principais correntes políticas com o projeto de desenvolvimento baseado no progresso, ainda que isso signifique coisas diferentes para os dois lados do espectro, é patente.

A aceleração tem seu próprio imaginário. Os aceleracionistas reivindicam, inclusive, o caráter “hipersticional” da sua produção, entendendo que o efeito de profecia-que-se-autocumpre aproxima sua perspectiva secular da mitologia, ainda que sob uma forma desencantada. Chovem sonhos radicais por ali, como o transporte da mente para um suporte eterno, a imortalidade por meio de cura nanotecnológica, a viagem e colonização interplanetária, a mineração de asteroides, a impressão 3D como passagem para a abundância, entre outros. No livro, procuro pensar algumas dessas imagens. Entre elas, uma curiosa coincidência com o sonho platônico-cristão da vida eterna: a mente sem corpo que se transporta para a nuvem, exatamente como a alma transportava-se para o Céu, mas com as garantias de um bom caminho, sem necessariamente comprar a aposta da fé. Isso se passa em várias séries e filmes que analiso, como Altered Carbon, Black Mirror e Transcendence.

Outros mundos 

Por outro lado, é claro que esse consenso encurta outras imaginações possíveis. Quando escrevi o livro, estava muito preso nesse mote de Mark Fisher: imaginar outros futuros. Depois de estudar outras cosmologias, nem penso mais isso como algo que se projeta para o futuro, como um fiat lux. Outros mundos já estão aí, superpovoados, em conexão (não necessariamente harmônica) com a Terra, encantados, em constante fricção com o “progresso” modernista. Isso aparece em grandes intelectuais que hoje se tornaram mais vistos, como Davi Kopenawa, Antonio Bispo dos Santos, Aílton Krenak, Glicéria Tupinambá, entre outros, assim como naqueles que imaginam possibilidades teóricas que se conectam com esses outros experimentos, como Eduardo Viveiros de Castro, Leda Maria Martins, Muniz Sodré, Jota Mombaça, Denise Ferreira da Silva, Luiz Antonio Simas, Donna Haraway, Marisol de la Cadena, Silvia Cusicanqui. Esses são intelectuais do envolvimento, não do desenvolvimento. 

IHU – Qual é o ganho de analisar o quadro político a partir de uma “multiplicidade de perspectivas cosmopolíticas em choque” em vez de analisá-lo a partir de uma “disputa entre poder e resistência”? Por que a primeira opção permite uma explicação mais fidedigna do que se passa na política hoje?

Moysés Pinto Neto – Eu não diria que se trata de “fidedignidade”, mas de uma explicitação de diferenças. O quadro direita versus esquerda, assim como poder versus resistência, é útil em muitos casos. Não se trata de negar sua pertinência. Mas destaco dois efeitos que a complexificação em quatro forças produz.

Primeiro, por vezes as teorias que ontologizam o poder, como em noções de “biopolítica”, “sociedade de controle” e “necropolítica”, podem carregar o risco de saturar o espaço político, fechando a possibilidade de visualizar alternativas. Nisso, acabam traindo um dos seus inspiradores, que é o próprio Foucault. Foucault produziu uma verdadeira reviravolta epistemológica na teoria política, ao propor um deslocamento do eixo Estado/Indivíduo para uma perspectiva relacional de poder, na qual este se alastra pelo campo social de modo positivo, não apenas repressor, produzindo as subjetividades que, no seu agir, disputam o espaço social. Por isso, nenhuma “política” pode ser total, cobrir todo o espaço social, uma vez que isso suporia o poder-sede ou poder-todo que Foucault nos ajudou a descentrar. O que não quer dizer, obviamente, que conceitos como “biopolítica”, “governamentabilidade”, “sociedade de controle”, “micropolítica” e outros não sejam acurados e descrevam fenômenos reais. Inclusive os utilizo. Eles só não cobrem a totalidade social, porque não há totalidade. Como Haraway e Strathern nos mostraram, só há partes, posições situadas, não um todo orgânico.

Múltiplas forças em disputa 

O que minha análise deve à análise de conjuntura é a possibilidade de colocar múltiplas, não necessariamente duas, forças em disputa, sem considerar que o tabuleiro está encerrado. Mesmo noções conglobantes importantes como a de “capitalismo” podem servir, em certos contextos, para fechar o horizonte político quando confundidas com a totalidade social. Aí necessariamente só sobra o messianismo da solução transcendente, aquela fora do ângulo de visão, o acontecimento puro e inesperado que rompe a ordem existente e instaura um novo estado de coisas. Eu não recusei essa perspectiva, apenas a situei. Passei a chamá-la de “Edenismo”, uma longa tradição ocidental, na tríade entre filosofia grega, judaísmo e cristianismo, que irrigou os projetos políticos revolucionários da esquerda. 

Acontece que essa perspectiva tem como seu problema central a totalização – o que se chama, quando se olha a partir dela, de “universalismo”. Hoje, com a entrada de novas cosmologias que não se deixam reduzir ao mundo eurocentrado (o termo que usei é mais técnico: Axial), como cosmologias dos povos que foram colonizados (chamadas, hoje, de descoloniais ou contracoloniais) e mesmo de outras “civilizações” (como a chinesa ou indiana), temos uma virada que impede o estabelecimento de um eixo fixo a partir do qual se irradia o ponto zero da luta. Na Modernidade, tentou-se o “humano”, por exemplo, até se perceber que esse tema nada tinha de geral (por exemplo, nas suas relações com o não humano). Outros foram usados, como proletariado, classe trabalhadora, oprimidos etc. Vemos isso de novo na crise ecológica em termos epistemológicos: a “Ciência” tem a palavra última, é o eixo da discussão, ou existem múltiplos saberes com valor simétrico que devem compor o que Stengers, por exemplo, chamou de “ecologia das práticas”?

O problema não é negar a possibilidade de alianças, mas reconhecer que a aliança se dá na heterogeneidade, como uma colcha de retalhos, e não como uma unidade superior. Até chamei isso certa vez de “composição em pontilhado”. Do ponto de vista das cosmologias fora do eixo universalista, a negociação só se estabelece a partir da diferença, e não da sua abstração. Essas alianças já estão postas em múltiplas escalas, não estou defendendo nenhum tipo de secessionismo. Mas partir do múltiplo e não o abandonar me parece um princípio político superior a absorver e aplainar numa falsa unidade comum que, não por acaso, sempre acaba usando as categorias do Ocidente, mesmo que nas suas formas “emancipatórias”.

IHU – No livro, é apontada a dificuldade das forças progressistas e dos movimentos sociais em formular um projeto político alternativo nas últimas décadas. A adesão de parte da população a discursos autoritários e fascistas pode ser vista como uma reação a esse fracasso ou decorre de outros fatores?

Moysés Pinto Neto – Pode. Mas também problematizo a ideia de “formular um projeto”, entendendo que muitas respostas não pressupõem, necessariamente, um “grande projeto”, mas sim dar vazão a outros mundos que já estão aí, em geral sufocados pelo Planeta Mercadoria, esse que colidiu com os múltiplos mundos que habitavam esse continente, como dizem Deborah Danowski e Viveiros de Castro em Há Mundo por vir?, o livro que provavelmente foi minha principal inspiração.

Nick Srnicek e Alex Williams, dois dos principais teóricos do aceleracionismo de esquerda, são críticos do que chamam de “política pré-figurativa”. Segundo eles, isso teria levado à perda do ideal de projeto, fracassando em propor uma alternativa diante do ocaso do neoliberalismo. Eu tenho muitas dúvidas se isso está correto. O que me parece forte no neoliberalismo é justamente sua imanência, isto é, o fato de não depender de nenhuma ideia específica para ser adotado no cotidiano. O neoliberalismo, como seu pai (o capitalismo), não foi pensado e depois implementado. A ideia de projeto é próxima de perspectivas racionalistas de política, desde a tradição platônica da República até Inventing the future. Em compensação, a “pré-figuração” supõe uma experiência sensível, estética, que modifica, temporária ou permanentemente, o corpo – nos seus gestos e suas maneiras.

Qualquer projeto que não deseje repetir as experiências totalitárias do século XX, com as políticas do terror de Estado e do aparelho dirigente, dependerá dessa produção de subjetividade, do desejo de viver de outro modo, antes mesmo da consciência. Isso aprendemos com a psicanálise, na grande reviravolta que produziu teoria crítica, estruturalismo e pós-estruturalismo. 

Nesse sentido, não sei se é simplesmente a falta de um projeto que leva à adesão ao etnofascismo. Nas minhas análises, acho que fico no meio do caminho entre uma posição que considera o ressurgimento do fascismo institucional como resultado do fracasso de projetos alternativos, de um lado, e como expressão de um desejo, de outro. Freud, Adorno, Marcuse, Reich, Deleuze e Guattari são, entre outros, alguns dos que nos ajudaram a pensar o fascismo como um fenômeno desejado pelas massas.

Muitas das análises à esquerda – seja da esquerda liberal, seja da esquerda radical – acabam associando a adesão popular ao fascismo como um déficit de conscientização. Mas justamente o que Freud nos mostrou é que a ausência de consciência não é um vazio, porque nosso psiquismo é percorrido pelo desejo. No livro, procurei mapear esse desejo fascista, usando mais uma vez séries, livros e filmes, como Taxi driver, Black Mirror e mesmo a ambivalência do punk

IHU – No livro, você recupera algumas imagens de futuro que marcaram o século passado. Hoje, quais modelos de futuro estão sendo pensados e disputados nas perspectivas do aceleracionismo, das resistências e dos novos fascismos?

Moysés Pinto Neto – Mais uma vez, retomo a ideia dos quatro vértices. No ensaio final, que é uma ponte para meu próximo livro (que está sendo escrito), chamado Teoria dos Quatro Cosmogramas, publicado originalmente nos Cadernos do IHU, dou uma versão mais elaborada de acordo com os imaginários para os quatro.

No primeiro, coloco os indígenas, entendendo pela expressão não somente os povos originários das Américas, mas todo e qualquer povo que pertence a uma terra (e não que é dono dela). Você observa a maneira como os supremacistas brancos reivindicam suas pautas com a seguinte expressão: “A França para os franceses”, “A América para os americanos”. Nisso, observa pelo menos duas coisas: primeiro, a França pertence aos franceses. A relação, por isso, é de propriedade. Segundo, o americano não é qualquer americano, mas invariavelmente os brancos anglo-saxônicos. Quando Jean-Marie Le Pen levantou o problema do “verdadeiro francês”, sempre se objetou: mas francês é quem nasce na França, por isso os filhos de imigrantes são franceses. Em resposta, argumentos turvos explicitam sempre o básico: os franceses são brancos. O mesmo ocorreu nos EUA com a bizarra tentativa de Trump de revogar a cidadania baseada no solo no início do segundo mandato. O problema da xenofobia, portanto, não é de xenofobia, mas de racismo. 

Então, percebam, para os supremacistas, que são o quarto cosmograma, a terra é conquistada pela raça eleita. Para os indígenas, ao contrário, o povo é da terra. Antonio Bispo dizia: “somos da terra”. O indígena, além disso, costuma viver em um mundo encantado, entendendo por essa palavra “espiritualizado”. As coisas não são simplesmente fungíveis, não são “recursos”, “objetos”, “matéria”. O indígena vive no cosmo, portanto, repleto de agências, bem longe da imagem da solidão desamparada tipicamente moderna. Ao contrário, o cosmo é superpovoado e repleto de perigos.

Futuros opostos: indígena e supremacista

Então, aqui, temos dois futuros bem opostos: de um lado, um mundo indígena repleto de agência, orgânico, onde quase tudo é político, aproximando-se da ideia que a antropologia costuma chamar de “animismo”; de outro, no mundo supremacista, um território a conquistar pela raça eleita, cujo laço de sangue forma o vínculo. Começo com essa aproximação porque, em geral, os modernos tendem a equiparar o antimodernismo dos supremacistas com o extramodernismo dos indígenas, como se qualquer coisa que não seja a normativa abstrata baseada na autonomia fosse, necessariamente, uma tirania bárbara e obscurantista, ou uma projeção do “bom selvagem”.

Aliás, uma distinção mais: costuma-se dizer que a relação com a tradição “enclausura” os povos em um eterno passado/presente, sendo por isso o futuro o tempo tipicamente moderno (há outras camadas aqui, mas deixo de lado). Isso só é verdade para os supremacistas: como reativos da Modernidade, eles projetam a seta do tempo ao contrário, buscando a restauração da Era do Ouro perdida na corrupção dos capitalistas (digitalistas) e comunistas (edenistas), distinta da selvageria indígena, era que se confunde, naturalmente, com a colonialidade. Mas nos mundos africanos e indígenas, como mostram, por exemplo, Leda Maria Martins, Morena Mariah e Aílton Krenak, a relação com o tempo não se estabelece pela linha e pela seta do progresso. Usa-se, por exemplo, a expressão “futuro ancestral” para caracterizar o enovelamento disjunto da temporalidade. A tradição é repetida diferencialmente, está sempre em transformação.

Futuro segundo o Edenismo

Do outro lado, mas esse é só uma maneira contingente de apresentar, poderíamos colocar os dois projetos mais propriamente modernistas, que inclusive cabem bem no aceleracionismo. O Edenismo é o desejo de superar a “Natureza” naquilo que ela tem de perigoso e hostil por meio da terraformação. Ele busca construir o paraíso na Terra, com o humano ocupando o lugar de regente, pastor ou engenheiro do novo mundo, como o mandato que Deus atribui a Adão no Gênesis. Seu motor é o progresso impulsionado pelo Espírito, entendido como aquilo que torna o humano distinto dos demais seres. A capacidade humana que planejar, prever, pensar e dialogar, que seria distinta dos outros animais, permite construir uma morada baseada na paz e na justiça, produzindo a emancipação universal por meio da razão. Essa versão começa no encontro entre o judaísmo e o platonismo, produzindo a filosofia cristã, mas igualmente passa pelas suas versões secularizadas e até ateias.

Futuro segundo o Digitalismo

Do outro lado, e por fim, temos o Digitalismo, que seria a transformação do universo em um sistema codificado. Ele não funciona apenas pela abstração rarefeita, embora seja abstrato. A abstração aterriza na Terra na forma de moeda. Esta, com seu valor de nada-em-si, permite a circulação imanente que desencadeia um cosmograma específico, em que tudo se torna digital, quantificável, mensurável e potencialmente equivalente. Como no digitalismo tudo se equivale, sua forma de extração é sempre brutalista, isto é, desconsidera a diferença entre o vivo e o não vivo, o encantado e o desencantado, transformando tudo em mercadoria. Sua força sedutora eu chamo de “inanimismo”, que consiste em provocar um valor análogo à sobrenatureza indígena, mas na forma sintética (o espetáculo), isto é, de baixa intensidade.

Assim, o segundo mundo, o Edenismo, tem sua imagem de futuro nos mundos da abundância automatizada, como nos Jetsons ou, usando a imagem de Peter Frase e Varoufakis, em Star Trek (Jornada nas Estrelas), quando a impressão 3D torna o dinheiro obsoleto, pois tudo é imediatamente acessível, e o humano (com seu Espírito inteligente) parte para o universo a fim de contemplar sua variedade e incrementar seu conhecimento. O Edenismo segue, por isso, a tradição da exteriorização do trabalho em prol do ócio criativo, quando o Espírito se verá livre dos constrangimentos materiais (a “necessidade”) a fim de que se tornar plenamente realizado (“livre”). 

O terceiro mundo, o Digitalismo, é a dissolução do concreto na abstração, do corpo nos dados, da sensibilidade no código. É o horizonte das IA’s “superinteligentes”, como no conto The Factory, de Philip K. Dick, ou mesmo Matrix. Para terminar, uma imagem dos primeiros mundos, indígena, na ficção, para além da cosmopráxis disseminada (como nos rituais e práticas diversas, inclusive urbanas, como Simas mostra), por exemplo, nos habitantes do planeta Atshea, os creechies, em A Floresta é o Nome do Mundo, de Ursula Le Guin, ou os Oankali, de Octavia Butler, na trilogia Xenogênese. O mundo dos brancos do quarto mundo, o Supremacismo, poderia remeter a filmes como Elysium, Jogos Vorazes e Zardoz, ou mesmo as distopias de Margaret Atwood, como o Conto da Aia, ou as Sementes da Terra (Parábola do Semeador e Parábola dos Talentos), de Octavia Butler

Essas são imagens de futuros que colocam em jogos diferentes cosmologias.

IHU – Que modelo de desenvolvimento futuro é mais adequado aos desafios do nosso tempo?

Moysés Pinto Neto – Essa pergunta me coloca numa posição que não pretendo ocupar: a de legislador ou governante. De minha parte, na minha posição situada, minhas vivências tentam se comunicar com práticas de envolvimento e encantamento, ainda que tenha sido suficientemente educado no modernismo secular de modo que tudo é muito novo e diferente do que até pouco tempo tinha como ética. Ou seja, o envolvimento também envolve uma pedagogia, ou andragogia (no meu caso), de aprender a sentir o mundo de uma maneira diferente em relação à forma como fomos educados, isto é, com a ideia de desenvolvimento e progresso. Diante da crise ecológica, o caminho que me parece mais interessante é o da descida – como vejo em intelectuais como Aílton Krenak, Anna Tsing, Donna Haraway, Déborah Danowski, Viveiros de Castro, Rita Segato, entre outros – isto é, aprender as artes de viver nas ruínas, rompendo com a megalomania antropocêntrica que busca a tudo conquistar e domesticar a fim de servir aos interesses humanos.

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