“Estamos sob ataque de agentes brasileiros quinta-colunas da extrema-direita, fora e dentro do país”, diz o sociólogo
Ao analisar os últimos acontecimentos em curso no país, como "a intervenção agressiva do governo americano para forçar decisões do judiciário brasileiro em favor da mais medíocre figura que a direita brasileira já produziu", o tarifaço imposto pelo governo Trump ao Brasil, o envio de forças militares dos EUA para a América Latina e a divulgação da troca de áudios e mensagens entre o ex-presidente Jair Bolsonaro e o pastor Silas Malafaia, e Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro, interceptados pela Polícia Federal, o sociólogo José de Souza Martins não usa meias palavras:
"Estamos numa fase de crise de ruptura do pacto subjacente ao fim da ditadura militar com a eleição indireta de Tancredo para a Presidência da República no dia 15 de janeiro de 1985. Estamos vivendo o fim da era de transição aberta nessa data. Ou o país dá um passo à frente, impossível na permanência da polarização pendular entre direita e esquerda, ou o país recua no que será uma derrota da luta democrática no país. Nesse caso, uma outra era está começando. Uma era de recuos e incertezas num país que não está preparado para enfrentá-los".
No cenário atual, pontua o entrevistado, o presidente Trump “se aproveita da conspiração bolsonarista para estender e fortalecer sua redefinição da geopolítica da dominação americana à América do Sul e empurrar o Brasil para uma posição mais à direita do que tem tido”. No entanto, sublinha, “o centro das ações e manifestações de Trump não é o Brasil, mas a Venezuela”. Ao que parece, acrescenta, “estamos vivendo o momento de invenção de um novo inimigo pelos americanos. E somos candidatos”. Nesse jogo, destaca, a família Bolsonaro é irrelevante para o governo americano. "Eduardo Bolsonaro e outros apenas passam o dia monitorando a movimentação do governo americano. Cada brecha que os favoreça é por eles utilizada. Recortam e colam, difundindo a encenação de que fazem parte da corte de Trump, através das redes de seu grupo. Chegaram a fabricar a impressão, falsa, de que Trump era seu dependente, como se os Bolsonaros nele mandassem”.
Nesta entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, José de Souza Martins também reflete sobre a americanização cultural e social do Brasil, a formação de uma mentalidade autoritária no país, a ascensão de Trump como uma “figura própria do sistema político americano” e a atuação dos EUA enquanto “exportadores de religiões fundamentalistas”. “As religiões industrializadas são um dos aríetes para arrombar as portas de nossas instituições e disseminar entre nós a ideia de um deus da servidão. Estamos sendo amansados não por pastores de ovelhas, mas por pastores de bodes, para nos tornarmos brasileiros de mentalidade carneiril”, conclui.
José de Souza Martins (Foto: Unesp)
José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Foi professor-visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP. Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (Paulus, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (Contexto, 2015) e Do PT das lutas sociais ao PT do poder (Contexto, 2016).
IHU – Como está interpretando a atual conjuntura nacional à luz da conjuntura internacional?
José de Souza Martins – O atual momento político adverso e perigoso para a democracia no Brasil não se explica nem tem sentido à luz da concepção de conjuntura. Não se trata de mera conjuntura, mas de um processo político em seu momento de guinada estrutural e provavelmente terminal. Em comparação com a da compreensão tendenciosa e superficial que confirmava o que grupos corporativos de esquerda julgavam ser de favorecimento do PT.
As chamadas análises de conjuntura feitas nessa perspectiva a partir de 2003 foram muito ruins e, geralmente, equivocadas porque ressaltavam apenas o que parecia expressar os acertos do PT e os erros dos outros, especialmente do PSDB. Metodologicamente erradas não detectavam o que já eram indícios de uma reação direitista, radicalmente antidemocrática, de sobrevivências inconformadas da ditadura militar. As personificadas por figuras inexpressivas, residuais e medíocres do regime autoritário. O rebotalho que se expressará no bolsonarismo.
O crescimento eleitoral do PT e a eleição de Lula, em 2002, para seu primeiro mandato presidencial e mesmo para os mandatos posteriores, não confirmavam a suposição meramente ideológica de um avanço contínuo, evolucionista e irreversível das esquerdas. As esquerdas, saídas do momento da ditadura, revelaram-se fragilizadas e despreparadas para compreender a herança adversa do regime militar.
Apesar do crescimento dos movimentos sociais e do uso dos canais partidários de oposição para que se reconhecesse que o fim formal da ditadura, veremos aos poucos, ela não se encerrava de fato. Para que a luta pela democracia continuasse contra seus verdadeiros e poderosos inimigos. Em vez de se tornar uma luta polarizada contra a própria esquerda e o centro, como se fosse etapa superior de uma luta pelo socialismo, que não era. Não havia evidências de que declinava a vitalidade e a capacidade de persistências das estruturas sobrantes do autoritarismo.
O regime militar não caíra porque tivesse sido derrotado numa revolta democrática. Caíra quando e porque decidira cair. Caíra negociando com os setores políticos vulneráveis à ideia de uma composição que não hostilizasse a maioria direitista oculta. Para compreender esse processo, convém ter em conta a conferência que o general Golbery do Couto e Silva fez na Escola Superior de Guerra, mais ou menos por ocasião da visita do Papa João Paulo II. Ele explicou aos oficiais generais que a abertura política era necessária para atalhar a tendência que ocorria de transformar a religião em canal de expressão política do povo. A referência tinha em conta especialmente o catolicismo e alguns setores de outras igrejas.
Era, no entender dele, o que vinha acontecendo em decorrência da desfiguração da representação partidária por obra do regime militar. A repressão fechara canais de expressão partidária, que vinha abrindo a caminho para a ação política e a representação alternativas por meio de canais religiosos. O que ficava claro com o envolvimento da Igreja Católica e das suas pastorais sociais no processo político.
O regime militar caiu de modo intencional e provisoriamente. Além do que, caiu na circunstância problemática da inesperada morte de Tancredo Neves. O que, na figura de Sarney, vice-presidente da República, originário da ditadura, deixou um vazio de incertezas políticas que só será preenchido com a eleição e reeleição de Fernando Henrique Cardoso.
Não nos esqueçamos de que apesar das conquistas políticas e sociais da Constituinte e da Constituição de 1988, foi nela plantada a armadilha de efeito retardado do Artigo 142 que na prática reconhecia às Forças Armadas o direito de sua intervenção no processo político como poder moderador. O que explodirá com o golpe bolsonarista disfarçado na eleição de 2018. Os militares instigados pelo próprio autor da ideia a ele recorrer com a anulação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do processo de prisão Lula.
O processo social e político é dialético. As visibilidades superficiais da realidade são invisivelmente minadas e corroídas pelas contratendências do processo histórico, expressão das contradições profundas de uma sociedade que se determina por um capitalismo anômalo, retrógrado porque rentista e adverso ao desenvolvimento social e político. O povo brasileiro foi transformado em refém e cúmplice do sistema anormal de acumulação do capital. E, também, no cenário incerto do processo político. Num quadro como esse, o que parece esquerda num momento não o é necessariamente em outro.
Já não estamos, portanto, num momento de conjuntura, isto é, num momento de oscilação da tendência histórica definida pela orientação cíclica do processo político. Estamos numa fase de crise de ruptura do pacto subjacente ao fim da ditadura militar com a eleição indireta de Tancredo para a Presidência da República no dia 15 de janeiro de 1985. Estamos vivendo o fim da era de transição aberta nessa data. Ou o país dá um passo à frente, impossível na permanência da polarização pendular entre direita e esquerda, ou o país recua no que será uma derrota da luta democrática no país. Nesse caso, uma outra era está começando. Uma era de recuos e incertezas num país que não está preparado para enfrentá-los.
O cenário não permite otimismo, especialmente com a intervenção agressiva do governo americano para forçar decisões do judiciário brasileiro em favor da mais medíocre figura que a direita brasileira já produziu. E que está sob julgamento regular e juridicamente correto por conspiração contra o Estado Democrático de Direito. Estamos sob ataque de agentes brasileiros quinta-colunas da extrema-direita, fora e dentro do país.
IHU – Alguns especulam que as ações dos EUA em relação ao Brasil visam, além de pressionar a decisão sobre o julgamento do ex-presidente Bolsonaro, influenciar o processo eleitoral de 2026. Está em curso uma clara tentativa de intervenção política dos EUA no Brasil ou tudo isso faz parte do jogo político e ideológico do governo Trump? Como está interpretando esses acontecimentos envolvendo Trump, a família Bolsonaro, a extrema-direita e o Estado brasileiro?
José de Souza Martins – O que está ocorrendo nestes dias não envolve apenas o Brasil como destinatário da reorientação geopolítica dos EUA. É um equívoco de interpretação achar que a concepção bolsonarista de Brasil tenha alguma relevância na orientação da política internacional dos EUA, mesmo na de Trump, um governante tosco e despistado. Que, no entanto, se aproveita da conspiração bolsonarista para estender e fortalecer sua redefinição da geopolítica da dominação americana à América do Sul e empurrar o Brasil para uma posição mais à direita do que tem tido. Quase uma incorporação do Brasil à territorialidade política americana, não mais a da dependência associada.
Chama a atenção que um filho de cubanos no governo americano esteja presente nas ações que ressaltam e condenam a presença dos médicos cubanos no Brasil, no governo Dilma. Esse fato, que, em princípio não tem maior relevância política e menos ainda geopolítica, de repente torna-se um fator de hostilidade ao Brasil como tentativa de apagar até mesmo a memória de um vínculo diplomático legítimo. A interferência americana indica que, para a direita de lá e a de cá, a Guerra Fria não terminou. De certo modo isso robustece indícios que estavam presentes nos pronunciamentos do general Hamilton Mourão, quando ele mesmo se propunha como candidato a candidato a presidente e, depois, candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro.
No entanto, apesar de autoritário, o atual presidente de lá tem poderes peculiares, sem dúvidas, mas limitados pelo sistema político americano, ainda que residualmente democrático. Associa-se à oposição brasileira à democracia que é liderada por gente de somenos. Eduardo Bolsonaro é apenas um ex-chapeiro de hambúrguer, com a limitada competência de uma profissão honrada que lá é secundária, de forno e fogão. E, portanto, não tem legitimidade diplomática para envolver o presidente americano numa conspiração contra a democracia no Brasil.
Para compreender a crise da relação EUA-Brasil é preciso ter em conta a mediocridade e a completa irrelevância dos Bolsonaros e seus cúmplices para o Estado americano e sua política externa. Eduardo Bolsonaro e outros apenas passam o dia monitorando a movimentação do governo americano. Cada brecha que os favoreça é por eles utilizada. Recortam e colam, difundindo a encenação de que fazem parte da corte de Trump, através das redes de seu grupo. Chegaram a fabricar a impressão, falsa, de que Trump era seu dependente, como se os Bolsonaros nele mandassem.
Alguns se lembrarão de que há algumas semanas os jornais noticiaram que Trump mandara um diplomata ao Brasil verificar quem era Bolsonaro. Aquele melancólico e infantil “Eu te amo”, de Bolsonaro, dirigido a Trump, na reunião da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, não enganou ninguém. Até porque a resposta, “Tudo de bom pra você também” do americano expressou decoro, resistência e indicação da falta de reciprocidade no gesto de puxa-saquismo de um presidente como Bolsonaro, desprovido do senso de dignidade e de respeito pelo país que governava.
Trump é outra coisa, figura própria do sistema político americano. O fim da Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlim, desencadeou um extenso processo de redefinição da geografia dos poderes no mundo. Num cenário em que as duas potências do confronto pós-Segunda Guerra Mundial saíram enfraquecidas.
A Guerra Fria empurrou a sociedade americana para a direita e afastou-a cada vez mais dos valores da democracia. Violentou-lhe as tradições, legadas pelos pais fundadores, de acolhimento dos forasteiros e da diversidade.
Um país que aboliu a escravidão a contragosto sem abolir a tutela das consciências e do espírito. E com isso escravizou também os brancos ao instituir e generalizar uma concepção de liberdade cativa do cativeiro juridicamente revogado, mas socialmente revigorado e generalizado. Simbolicamente, assassinou o autor dessa revolução, Abraham Lincoln.
Um país que não reconheceu nem entendeu as consequências revolucionárias da universalização do trabalho livre, como a de que não basta libertar juridicamente o corpo de quem trabalha. Agravou nela a discriminação e a intolerância residuais do racismo escravista. Recriou na modernidade a igualdade de que todos são iguais. Mas como lembrou George Orwell, em A Revolução dos Bichos, alguns são mais iguais.
Os Estados Unidos criaram uma nova sociedade, que não é só a americana, mas que se desdobra em vários países, como o nosso. Hoje, somos ideologicamente parte dos EUA, contaminados pelo modo de vida e pela mentalidade da sociedade de consumo e do consumismo. Que é a sociedade das aparências manipuláveis e das técnicas políticas de manipulá-las. E manipulação das consciências através da falsificação da percepção do que é a realidade. A realidade social já não é lá e muito menos aqui, a do vivencial, a da alienação mediada por um modo de produção baseado na iniquidade da sobre-exploração do trabalho e da invisível extração da mais-valia, de modo que a vítima perceba o contrário do que lhe acontece.
Hoje há brasileiros que se enrolam na bandeira americana para participar de demonstrações de massa aqui. Para eles, ser brasileiro é ser americano, compatriota do Pato Donald. Muitos já não falam porque já não pensam. Logo teremos que aprender a grasnar para nos expressarmos como semicidadãos do mais novo estado associado dos USA, como um Porto Rico dos Trópicos. Personagens da nova geografia do império. Já temos uma elite econômica que pensa como o Tio Patinhas e não propriamente como burguesia e empresariado, especialmente no agronegócio.
Deus mesmo está sendo reciclado e reinventado pelos vendilhões do templo. Ele vem se tornando um mero e falso profeta do gazofilácio, a caixa do dízimo, e do poder. As seitas e as igrejas pós-modernas representam a fé na prosperidade material, no aprisionamento do Espírito. O novo deus sanciona as ambições da classe média. É subornável pela falcatrua do dízimo antecipado em relação à ambição de enriquecimento futuro.
Os EUA se tornaram exportadores de religiões fundamentalistas fabricadas ou patrocinadas pela CIA (Central Intelligence Agency), o órgão americano de espionagem e de intervenção secreta nos países periféricos. As religiões industrializadas são um dos aríetes para arrombar as portas de nossas instituições e disseminar entre nós a ideia de um deus da servidão. Estamos sendo amansados não por pastores de ovelhas, mas por pastores de bodes, para nos tornarmos brasileiros de mentalidade carneiril.
A religiosidade indecisa e culturalmente difusa dos latino-americanos, especialmente a do brasileiro, tem sido estimulada, transformada em espetáculo das grandes manifestações de rua e do rádio e da mídia televisiva, para se instalar na mente de suas vítimas como crendice a cultura religiosa de alto-falante.
No começo desse processo, em meados dos anos 1950, em São Paulo e subúrbio, comecei a observar a estranha chegada de pastores pentecostais e fundamentalistas à região. Falavam inglês e se comunicavam por meio de intérpretes. Depois de um mês, foram embora. Já na sequência proliferaram as igrejolas em recintos em que em dias antes houvera um botequim. Brasileiros rústicos, geralmente trabalhadores, passaram a falar as bíblicas línguas estranhas, supostamente possuídos pelo Espírito Santo, vertidos para o português por pretensos tradutores, que imitavam a língua inglesa. Pessoas maravilhadas tinham certeza agora de que a língua de Deus era a língua inglesa.
Já na União Soviética, no outro polo da Guerra Fria, o comunismo ficou exposto às suas irracionalidades antissocialistas e antimarxistas, sobretudo sob a tirania stalinista e de uma concepção desatualizada e mal explicada de ditadura do proletariado.
Na URSS, a Guerra Fria aprisionou o pensamento de esquerda. Lá, Marx tornou-se subversivo e suspeito. Difundiu-se nas esquerdas de todas as partes a armadilha de que Marx precisava ser explicado, por um intermediário ideológico, para ser compreendido. O que não é verdade. Marx é um cientista social, fundador de um dos ramos da sociologia. Marx é um autor claro e até poético. Não carece de mediações descritivas. Antes, é a única fonte que propicia e gera mediações explicativas e interpretativas, atualizáveis. E, no caso, como dimensão da práxis, das condições sociais e políticas e de modos de superação dos momentos do processo histórico.
As grandes e extraordinárias possibilidades de uma sociedade pós-capitalista, anunciada em A Ideologia Alemã, de Marx e Engels, não se realizaram. A descoberta de Henri Lefebvre e de Agnes Heller, por vias distintas, de que a teoria das necessidades como motores da história, contida nesse livro, ganha sentido na modalidade específica de necessidades radicais [1]. Isto é, são socialmente causas de transformações sociais aquelas que só podem se resolver mediante superação de modos de vida que já não atendem as carências de determinada sociedade. Inovações superadoras criam, por sua vez, novas necessidades, que pedem novas transformações.
As sociedades não mudam em decorrência de voluntarismo e de uma vontade de troca de modelo de organização política. Mudam porque a mudança é objetivamente necessária e inevitável. Porém, tenho assinalado, uma vez que as necessidades radicais chegam à consciência política da sociedade, criam-se as condições da práxis transformadora ou revolucionária em que a ação política cria sociologicamente a forma social da transformação, cria socialmente a sociedade nova. Não segue um modelo. Interpreta-o objetiva e socialmente possível, imagina-o, dá-lhe forma, inventa-o, realiza-o.
Agnes Heller, assistente de Georg Lukács, que havia deixado a Hungria por razões políticas e emigrado para a Austrália e, em seguida para os Estados Unidos, num ciclo de conferências na PUC de São Paulo, em 1992, anunciou que sua teoria das necessidades radicais já não tinha aplicação. Sociedades como a americana não tinham necessidades radicais, que não podiam surgir em sociedades saciadas [2].
Ela não levou em conta que as necessidades radicais não são completamente saciáveis, pois não são apenas e simplesmente necessidades materiais e econômicas. Como a necessidade de liberdade que, saciada, amplia-se ao revelar novas dimensões de sua carência. Ou a necessidade de esperança, que passa pelo mesmo processo. Ou, ainda, a necessidade de poesia, de música e de amor. Ou a necessidade de mudar o modo de vida e atualizá-lo.
De modo geral, não se realizaram nos países atrasados, eventualmente anexados à URSS, que, como a Rússia, não haviam estruturado uma sociedade capitalista suficientemente desenvolvida para que dela resultasse, na dinâmica social, a possibilidade e a necessidade de sua própria superação no socialismo.
O socialismo da justiça social e da partilha não sai do bolso do colete do voluntarismo do chamado militante político. Desenvolvimento econômico pobre, dependente e insuficiente não cria a possibilidade do desenvolvimento social superador de irracionalidades e contradições sociais.
É inútil ler O Capital, que muitos que o citam não leram senão fragmentariamente ou por meio de obras de vulgarização, como o manual antidialético de Martha Harnecker, Conceitos Elementares do Materialismo Histórico. Livro que formou em toda a América Latina materialistas elementares e não históricos porque meramente conceituais e antidialéticos. Ela era originária da Ação Católica, vulgarizadora da obra de Althusser, também originário da Ação Católica, que, em Louvain, foi influente referência de uma das correntes da Teologia da Libertação.
IHU – O que significa o envio de forças militares dos EUA para o Mar do Caribe Meridional para combater cartéis de droga? Concorda com as análises de que a iniciativa pode desestabilizar a região ou pode ser preocupante para o Brasil?
José de Souza Martins – No momento em que estou escrevendo o texto desta entrevista, na tarde de 19 de agosto de 2025, várias notícias definem melhor a crise das relações diplomáticas entre EUA e Brasil. Em primeiro lugar, o deslocamento de naves militares americanas para o mar da Venezuela, sob argumento de combater cartéis do tráfico de drogas. Trump já havia anunciado o envolvimento militar americano na América Latina com esse objetivo. Neste mesmo dia, o tema foi o avião da CIA que pousou em Porto Alegre supostamente de maneira inesperada. Depois se esclareceu que foi para desembarque de diplomatas.
Ao mesmo tempo, no fim da tarde, o pastor Malafaia – do grupo mais próximo de Bolsonaro, mentor de sua esposa e articulador de demonstrações evangélicas em favor do ex-presidente e patrono da indicação de um evangélico para o STF, um patrono da instrumentalização da religião em favor da política e política partidária – foi abordado no aeroporto do Galeão, pela Polícia Federal quando regressava de Portugal. Foi levado para esclarecimentos em recinto do próprio aeroporto. Seu passaporte e seu celular teriam sido retidos. Está proibido de contato com Bolsonaro e de se ausentar do país.
Em perícia no telefone apreendido de Bolsonaro quando de sua prisão cautelar, foram descobertos documentos de um pedido de asilo político na Argentina, bem como troca de mensagens de WhatsApp entre Bolsonaro, o filho e Malafaia. Há conversas sobre o virar de costas de Trump em relação ao ex-presidente brasileiro.
Isso tudo indica que o centro das ações e manifestações de Trump não é o Brasil, mas a Venezuela. De qualquer modo, a nova conflitividade internacional do presidente americano e, portanto, do Estado americano, incluiu a América do Sul na geografia das tensões, particularmente um país de fronteira com o Brasil.
Portanto, estamos no calor da situação. Combate ao tráfico pode ter sido escolhido como uma das justificativas aceitáveis para uma intervenção militar na América Latina. Quando ainda achava que podia ser o candidato da direita à Presidência da República, o general Hamilton Mourão deu uma entrevista em que se referiu à questão geopolítica e mencionou um novo cenário de tensões tendo como referência a questão do tráfico de drogas. Mencionou, também, a religião como um instrumento dos conflitos.
Portanto, o que vem ocorrendo não é exatamente o que se diz. O Brasil ainda não tem centralidade nas ocorrências, mas Lula e as esquerdas não têm acolhimento nas concepções de Trump, as de quem é amigo ou inimigo. Ao que parece, estamos vivendo o momento de invenção de um novo inimigo pelos americanos. E somos candidatos.
IHU – Qual é a melhor chave de leitura para compreender o tarifaço imposto pelos EUA a diversos produtos brasileiros? O que está por trás da decisão do governo Trump? Como avalia a reação do presidente Lula e do governo?
José de Souza Martins – O governo Lula tem tratado o assunto no plano diplomático, que é a forma correta de fazê-lo. O tarifaço abrange o mundo inteiro. A diversidade das gradações nas tarifas parece indicar que o objetivo é diversificar os danos a serem causados a seus destinatários. Em função da importância política que o governo Trump dá a diferentes países.
As reações sugerem que o tiro pode ter saído pela culatra. Indica que, em função da reordenação dos poderios econômicos, com a transformação da China comunista num peculiar país de economia capitalista, e a Europa e seu capitalismo peculiar e unificado, o capitalismo americano está em crise. E que o governo americano não tem o devido controle sobre os desdobramentos das ações de Trump sobre o mercado.
IHU – Um dos símbolos da 33ª edição da Marcha para Jesus, em São Paulo, foi a bandeira de Israel. O evento evangélico também contou com a participação de lideranças políticas e religiosas. O que um evento daquela magnitude representa, significa e aponta no atual contexto sociopolítico do país?
José de Souza Martins – As igrejas e seitas fundamentalistas no Brasil vêm procurando se legitimar pelo recurso ao Velho Testamento e aos profetas. A igreja do bispo Macedo importou pedras de Israel para construir o Tempo de Salomão em São Paulo. Um professor de sociologia, de Cambridge, David Lehmann, vem fazendo pesquisas sobre o assunto e sobre a judaização da Igreja Universal do Reino de Deus. Essa apropriação de símbolos, vestes rituais judaicas e materiais israelenses não é bem-vista pelos judeus em Israel. Até porque envolve o risco real de um movimento de conversão dos judeus a um cristianismo falsamente judaizado. Os evangélicos querem se renovar pela originalidade da cópia. Tornam-se continuidade dos profetas de modo postiço. Com isso banalizam os símbolos do judaísmo.
Aparentemente, o objetivo principal é dar aos fiéis do fundamentalismo evangélico, que suas igrejas estão mais perto de Deus. Pedir aos crentes que enviassem a Deus cartas envelopadas pedindo as bênçãos e milagres que nelas descrevem. Cartas, por sua vez, colocadas dentro de outro envelope com o dinheiro para a remessa dela ao destinatário. E, depois, levadas ao Monte Sinai, em Israel, para serem queimadas e as mensagens, convertidas em fumaça, que é como funciona o empreendimento postal do céu.
Ou, ainda, o caso da igreja pentecostal que vendia pares de meias para serem envelopadas, e postas dentro de outro envelope com o dinheiro da oferta. Levadas para Israel e colocadas no Monte Sinai no mesmo local em que Deus pisara para entregar a Moisés as tábuas da Lei. O comprador poderia, assim, passar seus dias a usar meias que repousaram por um momento sobre o próprio local da pisada divina. Santa sagacidade!
IHU – O caldo cultural de extrema-direita está sendo reforçado no país após a eleição do presidente Trump? Como fazer frente ao discurso da extrema-direita, que parece se proliferar entre uma parte significativa da população?
José de Souza Martins – A americanização cultural e social do Brasil, que já era grande desde a Segunda Guerra Mundial, cresceu desde a eleição de Lula para o primeiro mandato. Os americanos sabem que têm no país uma enorme massa de adeptos, o que também cresceu pela expansão do evangelismo fundamentalista e os valores consumistas e de classe média que representam e difundem. Religião tem sido o fator principal dos evangélicos atuarem corporativamente na política, sem livre exame das opções.
As religiões evangélicas atuam em bloco. Na prática, os evangélicos foram sequestrados da política em nome de motivações de poder, mas sobretudo em nome de uma causa propriamente religiosa.
Rigorosamente falando, a maioria deles abandonou a fé e a substituiu por uma crença corporativa baseada na identidade de mentalidade. Os evangélicos, no Brasil, e não só aqui, transformaram César em deus e encerraram a polarização “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” e a reduziram “a César o que é de César e o que é de Deus também”.
IHU – Alguns pesquisadores apontam o ressentimento, a raiva e a frustração como combustível político para os dias de hoje. Como esses sentimentos estão sendo explorados no Brasil pela esquerda, direita e extrema-direita?
José de Souza Martins – A polarização política no Brasil bolsonarista foi induzida pela produção intencional do ódio ao diferente, através das “fake news”, reconfigurado como o polarmente oposto. Nomes, identidades, perfis foram satanizados com atributos alarmantes e descabidos de grande significado nas condenações morais da cultura popular. Até o general Hamilton Mourão, quando ainda pretendia ser presidente, etiquetou Lula como cachaceiro, uma designação irremovível.
Este ódio da direita atual no Brasil é criado e alimentado pelo medo arquitetado através de concepções como a do chamado “kit gay”, que as esquerdas distribuiriam nas escolas. E através dos barbarismos inventados sobre o caráter e a moralidade dos esquerdistas e materialistas a direita produz o crime perfeito contra a própria democracia. O que desqualifica a vítima para se defender da calúnia.
É impossível enfrentar esse ódio e convencer a população de que é produto de uma mentira com más e segundas intenções. Sobretudo porque a maldade que o justifica é obra de satanás. Quem a combate é suspeito, pois na verdade o personifica. É o próprio satanás. O que desqualifica qualquer reação da vítima contra a técnica política de sua desqualificação e contra o crime que a destrói.
A consciência social e politicamente crítica depende de democracia e de uma cultura política de reconhecimento e aceitação da pluralidade e da legitimidade da diferença. Estamos muito longe disso. A ditadura produzira e dera forma à intolerância e colocara o ódio no centro do nosso dinamismo político. Prisioneira dessa referência determinista, a esquerda se move num cenário e em parâmetros de extrema-direita.
IHU – Iniciativas como o plebiscito popular 2025, que propõe discussão sobre a redução da jornada de trabalho sem redução salarial, o fim da escala 6x1 e a taxação de quem ganha mais de 50 mil reais por mês ainda encontram apelo no Brasil? A mentalidade do brasileiro está mais dirigida para a justiça social ou para o aumento do ganho individual? Que ideologia ou visão de mundo diria que permeia as ideias do senso comum e do imaginário brasileiro hoje?
José de Souza Martins – Concepções de reforma social, como essas, surgem de iniciativas descoladas de mediações políticas que as viabilizem. Hoje, a Câmara dos Deputados, à qual cabe examinar e aprovar ou não aprovar projetos desse tipo, representa pouco o povo brasileiro.
A representação política no Brasil foi capturada e usurpada por grupos identitários que não são o povo. Geralmente representam, sectariamente, minorias ousadas, constituídas por grupos de interesse político e econômico.
Caso dos evangélicos fundamentalistas, gente no geral de baixa classe média que, como toda a classe média, que não é propriamente uma classe social nem tem estrutura de classe nem luta como classe. Tem como aspiração fundamental a ascensão social e o mergulho na sociedade de consumo. Só a assustam os altos salários dos outros, mas de olho na possibilidade dela própria chegar lá.
Reivindicações de reformas sociais, que podem ser e são um direito objetivo de seus destinatários, são de difícil reconhecimento como suas pelos supostos interessados, como um direito pessoal e subjetivo. Nesse sentido, não sensibilizam a maioria dos parlamentares, mais identificados eleitoralmente com as bases políticas locais e localistas, aqui marcadas por uma falsa moral de superfície que ainda valoriza o trabalho duro dos outros como um atributo de honradez. Reformas sociais, entre nós, acabam sendo concebidas como demandas de gente sem ética e sem vontade de trabalhar. O que obviamente não é verdade. As dificuldades com essas demandas descoladas da realidade culturalmente pobre e de um senso comum tosco que expressa, em grande medida, valores de uma concepção antiquada de trabalho e de trabalhador. Aqui somos partidarizados, mas não somos politizados, somos sectários e não somos altruístas, dominados por uma falsa consciência da realidade.
Essas bandeiras não são, estritamente bandeiras de esquerda. São bandeiras sociais, isto é, de todos. Aqui, aplicadas, abririam os horizontes de uma sociedade severamente alienada como é a nossa. Abririam a possibilidade de difusão de uma consciência socialmente crítica. O que fortaleceria a democracia, que seria mais autêntica, nos libertaria das armadilhas da falsa consciência política.
A questão da redução dos dias de jornada de trabalho aparentemente está mal colocada. Apresentada como reivindicação que, se atendida, beneficiaria o trabalhador, depende de combinar com o trabalhador primeiro e de convencer o capital dos benefícios e ganhos que terá. Quando comecei a trabalhar, ainda crianças, com 11 anos de idade, numa pequena e insalubre fábrica de fundo de quintal, trabalhava 8 horas por dia, 6 dias por semana. Depois, consegui emprego numa grande fábrica em que trabalhava 5 dias e meio por semana, de jornada de 8 horas por dia normal e de 4 horas no sábado. A fábrica não ficou mais pobre por causa disso.
Além do que, no novo emprego passei a receber o 13º salário, o chamado abono de Natal, que ainda não era nem legal nem obrigatório. Aí pelo mês de abril, recebi um envelope com “minha parte” na distribuição dos lucros da empresa. Para completar, em outubro, no Dia da Criança, os trabalhadores menores de idade, com mais de 14 anos e menos de 18, trabalhavam apenas meio-dia, antes do almoço. Voltavam para o refeitório cerca das 14 horas para uma festa de doces, bolos, sanduíches, refrigerantes, com um discurso sobre a importância do trabalho na educação de novas gerações, e um envelope com um 15º salário. E, finalmente, a fábrica decidiu pagar as minhas mensalidades da escola secundária noturna, o que era de fato um 16º salário. Ninguém ficou pobre na empresa por causa disso. E ninguém virou vagabundo por causa dos benefícios extraordinários.
Em outros países, a redução da semana de trabalho é acompanhada de um programa de atividades culturais obrigatórias, bibliotecas, teatro, cinema de arte, museus, como atividades substitutivas da jornada suprimida. O que incrementa a competência cultural do trabalhador num cenário de trabalho que depende cada vez mais de incremento no nível de discernimento e criatividade de quem trabalha. O que puxa a empresa para cima. O que também afeta e civiliza o discernimento do trabalhador e enriquece sua sociabilidade e sua civilidade. Coisas todas que nos afastam da concepção escravista do trabalho. Nos liberta e liberta a todos.
IHU – Que mentalidade social está sendo gestada no país a partir da polarização política?
José de Souza Martins – Justamente uma mentalidade autoritária, bloqueada à compreensão dialética da realidade plural e confusa. Uma mentalidade adversa e imprópria à gestação do que Henri Lefebvre define como práxis inovadora e transformadora. Estamos condenados ao homogêneo, mimético e repetitivo.
IHU – Numa entrevista recente, o senhor declarou que “nós queremos ser de esquerda, mas não sabemos ser de esquerda”. Que postura e atitude esperar-se-ia da esquerda frente a atual conjuntura nacional?
José de Souza Martins – Sociologicamente, em primeiro lugar, a postura de reconhecer que fomos praticamente derrotados pelos rumos do processo político. Nesses anos todos, grupos e pessoas cujo pensamento poderia ter sido de relevância para dar um rumo diverso ao nosso processo histórico, foram combatidos, excluídos do debate, satanizados, embora fossem aliados autênticos ou, ao menos, potenciais. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi aparelhada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e o PT, o que reduziu significativamente o seu potencial de referência crítica e renovadora para que o trabalho pastoral tivesse a verdadeira dimensão de práxis.
IHU – Para qual direção o país está caminhando?
José de Souza Martins – O país não está caminhando. Está bloqueado nas armadilhas ideológicas de um senso comum insensível e pobre. As esquerdas, de diferentes modos, estão condenadas a jogar o jogo de uma direita inescrupulosa e burra. Existe entre nós uma esquerda de alta competência para impasses. O justo anseio por democracia, que é um anseio de esquerda, precisa de mediações interpretativas que investiguem, descubram e decifrem o modo atualizado e anômalo como se constituem e se expressam as contradições do processo do nosso capitalismo. Cada vez mais desconectado dos graves problemas sociais que cria. Os canais alternativos do YouTube e mesmo os jornais conservadores estão tomados por um noticiário revelador da abundância de brechas no processo de reprodução do nosso fragilizado sistema político e mesmo do nosso capitalismo rentista, anômalo em relação à racionalidade característica, limitada e inevitável do capital.
IHU – O que vislumbra para as eleições presidenciais do próximo ano? O governador de São Paulo está se projetando entre possíveis pré-candidatos e ganhando apoio de setores influentes?
José de Souza Martins – O governador de São Paulo foi lá colocado para ser a alternativa de direita para a direita. Tem alguma chance, a menos que o empresariado e os democratas compreendam que Lula, em termos de pessoa, ainda é a melhor invenção que o capitalismo brasileiro já fez para se modernizar como capitalismo de desenvolvimento social. Um característico resultado de tentativas de modernização do neocapitalismo europeu dos anos 1970. Foi o único que deu certo. É inteligente, é correto, ideologicamente expressão do sindicalismo autêntico de oposição ao peleguismo carneiril de outros tempos. As esquerdas e o próprio PT têm outras alternativas, como o competente Haddad, o melhor nome do PT para a Presidência depois de Lula. O problema será o de encontrar um nome fora da esquerda para vice e para formação de uma grande e significativa frente democrática claramente antifascista.
[1] Cf. Henri Lefebvre, La Proclamation de la Commune, Gallimard, Paris, 1965, p. 20; Agnes Heller, La Théorie des Besoins chez Marx, trad. Martine Morales, Union Générale d’Éditions, Paris, 1978, p. 107 e ss. (Nota do entrevistado).
[2] Cf. José de Souza Martins, A Aparição do Demônio na Fábrica (Origens sociais do Eu dividido no subúrbio operário), Editora 34, São Paulo, 2008, p. 194. (Nota do entrevistado)