Pacificação do país é tarefa hercúlea que passa pela sensatez institucional e recuperação econômica. Entrevista especial com Bolívar Lamounier

O sociólogo vê com centralidade a questão econômica, mas também aponta que é necessário “comportamento judicioso” do presidente eleito e demais instituições democráticas

Foto: Tomaz Silva | Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | 09 Novembro 2022

O sociólogo Bolívar Lamounier reconhece a emergência de ações que pacifiquem um Brasil dividido. Porém, é cauteloso e bastante crítico do governo eleito. Isso porque vê tanto o bolsonarismo como o lulismo com raízes comuns e que levam a essas fissuras. “Os dois lados careçam de uma compreensão e de uma convicção democráticas mais profundas, uma diferença de vinte pontos percentuais ou mais não deixaria espaço para o lamentável tipo de manifestação que presenciamos”, aponta, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Assim, compreende que “pacificar o país é uma tarefa hercúlea, que necessariamente terá de estar assentada nestes dois pilares: de um lado, um comportamento judicioso por parte do presidente da República e das demais instituições e, do outro, a economia”.

Quanto à perspectiva econômica, o entrevistado defende o incremento de investimentos da iniciativa privada, pois acredita que somente o aporte estatal não será suficiente em função dos parcos recursos disponíveis. Tais esforços para ele tem só um fim: geração de empregos. Além disso, aponta a necessidade de uma “ação enérgica e inovadora do governo, nos três níveis, na área educacional”.

Outro ponto tratado por Lamounier que leva a esse estado de fissura é o que identifica como uma espécie de crise político-partidária. “O Brasil não tem mais partidos. A falta de seriedade da atual ‘entressafra’ de políticos e da legislação esfarelou-se”, analisa. Isso resulta no que tipifica como uma verdadeira falta de partidos, pois, em sua opinião, hoje temos apenas siglas. “Sigla é uma coisa simples: um cidadão rabisca três ou quatro páginas e as apresenta ao Tribunal Superior Eleitoral com não sei quantas assinaturas e, pronto! Nasce a sigla. O problema é como transformar uma sigla num partido de verdade”, questiona.

Bolívar Lamounier

Foto: Conass

Bolívar Lamounier é sociólogo e cientista político, com bacharelado feito na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Também é doutor em Ciência Política pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Foi o primeiro diretor-presidente do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo – IDESP. Entre seus livros, destacamos O império da lei: a visão dos advogados sobre a justiça brasileira (Companhia das Letras, 2016) e Liberais e antiliberais: a luta ideológica do nosso tempo (Companhia das Letras, 2016). No ano passado, publicou Da Independência a Lula e Bolsonaro (FGV-RJ, 2021).

Confira a entrevista.

IHU – Como o senhor analisa as manifestações contrárias ao resultado das eleições? O que revelam sobre a nossa democracia e nossa cultura e educação políticas?

Bolívar Lamounier – A intensidade das manifestações contrárias deveu-se, basicamente, à estreita margem da vitória de Lula sobre Bolsonaro. Embora, a meu juízo, os dois lados careçam de uma compreensão e de uma convicção democráticas mais profundas, uma diferença de vinte pontos percentuais ou mais não deixaria espaço para o lamentável tipo de manifestação que presenciamos.

A esse primeiro fator é preciso acrescentar que os dois lados têm um longo histórico de comportamento antidemocrático. Bolsonaro foi expulso das Forças Armadas por indisciplina, mas a verdade é que não foi só indisciplina. Ele chegou a ameaçar atos terroristas contra o adutor do Guandu, no Rio de Janeiro. Penso, pois, que deveria ter sido levado a processo. Ser expulso e sair como capitão, um grau acima do que ocupava, como determinam os regulamentos militares, significa que saiu no lucro.

Do lado oposto, embora Lula, pessoalmente, seja moderado, o PT também tem uma longa folha corrida de ameaças à democracia, pelo menos no plano verbal. Todos se lembram de uma renomada professora petista vituperando contra a classe média (à qual, salvo engano de minha parte) ela pertence, chegando mesmo ao disparate de a ela se referir como “ignorante” e “fascista”. José Dirceu, que parece ser o quadro mais forte do partido, só abaixo de Lula, declarou, em mais de uma ocasião, que o PT revolucionaria o Brasil “pelas urnas ou pelas armas”. Então, por aí se vê que a serpente já nasceu pondo seus malignos ovos, chocando-os durante longos anos.

IHU – Quem são os manifestantes que interditam rodovias e fazem manifestações diante de instalações das Forças Armadas? Como os identificar enquanto classe social ou linha política e como ter clareza no que de fato reivindicam, por detrás da máxima de intervenção militar?

Bolívar Lamounier – Quem são, em termos de perfil social, não sei. O que todos sabemos é que o núcleo das manifestações, o que as tornou gravemente ameaçadoras, foram caminhoneiros. Munidos de celulares, não tiveram dificuldade alguma em obstruir rodovias literalmente em todo o país.

Houve quem dissesse que as Forças Armadas deviam ter intervindo para impedir tais ações. Ora, essas pessoas devem ter se esquecido de quem convoca as Forças Armadas, e que o presidente da República era (e ainda é) o Sr. Jair Bolsonaro. Conviria acrescentar que o artigo 142 da Constituição não é um primor de clareza a esse respeito. Fato é que foi só na undécima hora que Bolsonaro decidiu fazer um tímido apelo pelo fim das referidas manifestações, talvez até após haver conferenciado com oficiais-generais.

E aqui somos obrigados a fazer uma indagação. Em circunstâncias semelhantes, Lula convocará as Forças Armadas? Seu temperamento, como antecipei, parece mais prudente, mas como ele mesmo disse, a vitória não foi só dele, ou só do PT, mas de um conjunto notavelmente contraditório de forças políticas, um perfeito bico-de-pena da balbúrdia partidária que se instalou no país.

IHU – Saímos das urnas divididos, um país fraturado. Como podemos compreender a origem dessa polarização? Quais as consequências desse cenário em curto e médio prazo para o Brasil?

Bolívar Lamounier – Sobre a origem, já disse alguma coisa acima. Poderíamos incluir entre as causas a desastrosa gestão da Dra. Dilma Rousseff. Agora, quanto ao cenário, várias indagações devem ser suscitadas. Lula será capaz de governar com prudência e moderação, inclusive segurando, como diria o general Geisel, os “radicais” dele?

Formar um bom ministério ele certamente formará, até porque saiu da eleição muito maior do que nela entrou. Mas será capaz de pacificar o país? Isso depende em parte da situação econômica, que, ao que tudo indica, será um pouco melhor da que temos visto, mas não a ponto de desarmar os espíritos. Dependerá também do comportamento da oposição, leia-se de Bolsonaro. E da entrada de capital estrangeiro, que poderá vir se o país estiver de fato em ordem, mas não se a todo momento sucumbir a novas badernas.

IHU – O debate religioso foi ainda mais intenso nessa eleição. Qual o peso do ingrediente religião nessa polarização e disputas que temos vivido? Em que medida o espaço da religião pode se converter em uma das vias para uma reconciliação nacional?

Bolívar Lamounier – Não me parece que o debate religioso tenha se tornado mais intenso por razões religiosas, mas porque Jair Bolsonaro utilizou sua ligação com os evangélicos para usá-los como força política. Reciprocamente, uma parte dos evangélicos aceitou sua convocação com objetivos de vantagens para seus respectivos. De agora em diante, a relação entre evangélicos e católicos poderá ou não se tornar mais conflituosa pelas mesmas razões, ou seja, se houver intentos de envolvê-los na disputa política.

IHU – Pelas movimentações que temos visto, qual deve ser a linha da política econômica adotada pelo novo governo Lula? Teremos um liberalismo de centro? Em que medida uma política econômica pode fazer refluir essa divisão nacional? Ou a pacificação do país passa muito mais pelo fortalecimento das instituições democráticas?

Bolívar Lamounier – Pacificar o país é uma tarefa hercúlea, que necessariamente terá de estar assentada nestes dois pilares: de um lado, um comportamento judicioso por parte do presidente da República e das demais instituições e, do outro, a economia. Isso significa mais investimento privado (para investimento público simplesmente não haverá recursos), mais emprego, e uma ação enérgica e inovadora do governo, nos três níveis, na área educacional. Rezo para que aconteça, mas confesso o meu ceticismo.

IHU – Nessas eleições, o PSDB sai extremante fragilizado, assim como grande parte da centro-direita. No Congresso, já se fala em constituir uma federação desses partidos fragilizados para reivindicar seu espaço no cenário político. Como vê esses movimentos?

Bolívar Lamounier – Tenho dito e repetido que o Brasil não tem mais partidos. A falta de seriedade da atual “entressafra” de políticos e da legislação esfarelou-se. Não temos partidos, temos siglas. Sigla é uma coisa simples: um cidadão rabisca três ou quatro páginas e as apresenta ao Tribunal Superior Eleitoral com não sei quantas assinaturas e, pronto! Nasce a sigla. O problema é como transformar uma sigla num partido de verdade.

IHU – Ao longo de todo o processo eleitoral, vimos um protagonismo do Judiciário que se arvorava contra o que classificou como ataques à democracia. Vivemos com isso a judicialização da política? Quais os riscos?

Bolívar Lamounier – Considerados individualmente, os ministros do Supremo Tribunal Federal tiveram altos e baixos nos últimos quatro anos. Não vejo por que, nesse aspecto, haveria mudanças nos próximos anos. Agora, num quadro mais amplo, percebo o Brasil imerso numa tragédia judicial, enraizada no famigerado “trânsito em julgado”, que divide o país em duas Justiças, a dos ricos e a dos pobres.

O réu que dispõe de recursos para contratar um bom advogado não precisa se preocupar; o advogado empurrará o processo com a barriga até a prescrição da causa. O que não tem passará muitos anos, ou o resto da vida, mofando em algum presídio.

IHU – Quem deveríamos ler, ou reler, para nutrir nossa imaginação para, então, conceber caminhos que levam o Brasil ao século XXI, sem esquecer dos mais pobres e das desigualdades?

Bolívar Lamounier – Modéstia à parte, eu mesmo. Leiam meu livro Da Independência a Lula e Bolsonaro (FGV-RJ, 2021).

Obra de Lamounier, publicada em 2021

Imagem: divulgação

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