Barrar o caráter predatório automático do capitalismo, eis o desafio. Entrevista especial com Acauam Oliveira

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Por: Vitor Necchi | 12 Julho 2018

“Em todo planeta, o discurso é de que a esquerda precisa se reinventar. Essa pauta, aliás, é bem antiga, e acompanha a progressiva vitória global do capitalismo, aparentemente irreversível”, avalia Acauam Oliveira. Sua análise vai além, ao discutir temas como a profunda crise de representatividade, “que se desenrola a olhos vistos e cresce à medida que nos aproximamos das eleições de 2018”, e o racismo, “um dos elementos fundamentais de estruturação da sociedade brasileira desde a colônia”.

Seu olhar com a esquerda é analítico e duro, ressalvando o que ela tem de potência. “Se é verdade que fracassamos em alterar as condições globais de existência, é certo também que a esquerda tem sido altamente criativa na capacidade de apreender as novas dinâmicas sociais”, salienta em entrevista concedida por e-mail. “Não só o marxismo se reinventa continuamente, como boa parte da melhor tradição crítica mundial relaciona-se em alguma medida com o pensamento de esquerda.” Neste sentido, Oliveira entende que a questão que se apresenta “não é sobre a capacidade de reinvenção da esquerda, e sim em que medida essas correntes de pensamento são capazes de fazer frente ao processo de destruição global da vida”.

Em suas respostas, discute o papel do PT, sobre o qual há um consenso de que, conforme o partido “foi consolidando sua hegemonia, as vozes divergentes de esquerda foram sendo silenciadas ou, ao menos, cooptadas: criticar o governo era estar contra a esquerda e, consequentemente, distante dos interesses populares, fazendo o jogo da direita”. Para o professor, “o partido usou e abusou da lógica do nós contra eles, mobilizada cada vez mais em termos morais, à medida que o dinheiro ia se acabando”.

Conforme o professor, “a tragédia farsesca da esquerda brasileira está toda contida na imagem de Lula preso”, e boa parte do seu futuro “dependerá da maneira como ela irá lidar com o legado petista e, ao mesmo tempo, sustentar novas pautas que não têm mais lugar nesse modelo que, ao que tudo indica, se esgotou”. Ele vislumbra um papel importante: “A tarefa da esquerda, contudo, em certo sentido permanece a mesma: encontrar formas de barrar o caráter predatório automático do capitalismo que ameaça a totalidade da existência do planeta”.

A versão integral desta entrevista é publicada em Cadernos IHU ideias número 274, na versão eletrônica e impressa.

Acauam Oliveira | Foto: Obvious

Acauam Oliveira é graduado em Letras, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparadada e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo – USP. É professor da Universidade de Pernambuco – UPE, atuando na graduação em Letras e no Mestrado Profissional em Letras.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Vive-se uma crise de representatividade? Qual o limite dos atuais partidos?

Acauam Oliveira – Existe uma crise profunda de representatividade, que se desenrola a olhos vistos e cresce à medida que nos aproximamos das eleições de 2018. É uma crise que assume um caráter mais geral, atingindo o próprio cerne da democracia representativa, quando o capital resolve assumir para si que não precisa mais dos pudores da ética liberal, como bem demonstram intelectuais como Jacques Rancière [1] e Achille Mbembe [2]. Deus está morto, o rei está nu, e o paraíso é para já. Ou antes, o inferno. No caso brasileiro, temos um presidente não eleito, sem nenhum tipo de credibilidade, aprovação ou carisma, e cujo único talento parece ser o uso equivocado de mesóclises. Do alto de sua irrelevância, aproveita para cumprir uma agenda regressiva, que ataca diretamente o direito dos trabalhadores da maneira mais bárbara e arbitrária. Ou melhor, para concentrar o ódio em torno de si, uma vez que não é ele sozinho quem aprova as leis.

Basicamente, estamos sendo governados diretamente pelos grupos que sempre comandaram o jogo político (a democracia aqui sempre foi uma farsa), com a diferença de que as regras antes eram manipuladas, enquanto agora simplesmente deixaram de existir. Afinal, uma coisa é comprar o juiz, outra é combinar um jogo de futebol e perceber que se está com 11 jogadores em uma quadra de tênis. Some-se a isso o fato de que o principal candidato à eleição está preso por razões que jamais seriam suficientes para condenar um político que já não estivesse condenado de antemão, e um processo sistemático de desmoralização da política que cresce vertiginosamente, assumindo a forma de uma antipetismo exacerbado que se expande com os avanços, aos tropeções, da Lava Jato.

Obviamente, a política nacional sempre foi vista com desconfiança, mas acredito que exista um dado novo nessa crença recente de que os políticos não são intocáveis, como demonstra a queda de figuras historicamente impunes como Paulo Maluf [3]. Aliada à ideia de que os políticos são uma classe congenitamente corrupta (e aqui o antipetismo também cumpre seu papel ao disseminar o sentimento de que não são só os barões ricos que odeiam o pobre e roubam, mas também os que vieram de baixo), essa crença perverte o que poderia se configurar enquanto um aumento de sentimento republicano (o poder político emana do povo) em um desejo por soluções moralizadoras verticalizadas, seja pela sanha punitivista, via Judiciário, seja através de soluções fortes e imediatas, como a eleição de um candidato simpático à ditadura, quando não a intervenção militar ela mesma. Também vale lembrar que boa parte dos principais debates políticos atuais, sobretudo após os anos 1960, migraram do campo da política institucional para o campo da micropolítica e das reflexões em torno das identidades, que é também uma maneira de pensar a política para além de limites estritos da representatividade institucional.

IHU On-Line – Qual a situação da esquerda brasileira hoje? Ela precisa se reinventar? Como?

Acauam Oliveira – Antes de mais nada, cabe lembrar que essa não é uma especificidade brasileira: em todo planeta, o discurso é de que a esquerda precisa se reinventar. Essa pauta, aliás, é bem antiga, e acompanha a progressiva vitória global do capitalismo, aparentemente irreversível. O que fazer quando as perspectivas de futuro foram sequestradas por aquilo que Paulo Arantes [4] identifica como o Novo Tempo do Mundo, centrada em um presente com horizonte de expectativas de fôlego curto? Não por acaso distopias como Walking dead e Black mirror soam mais realistas do que a própria realidade: a tarefa da esquerda, que já foi a de projetar todo o futuro da sociedade global a partir de uma cadeira dançante, reduziu-se à necessidade de se esconder envergonhada para garantir o que comer na semana seguinte. Cada vez mais a resposta à pergunta clássica de Lenin [5] sobre o que fazer parece ser uma só: respirar por aparelhos. Por outro lado, se é verdade que fracassamos em alterar as condições globais de existência, é certo também que a esquerda tem sido altamente criativa na capacidade de apreender as novas dinâmicas sociais. Não só o marxismo se reinventa continuamente, como boa parte da melhor tradição crítica mundial relaciona-se em alguma medida com o pensamento de esquerda. A questão que se apresenta, portanto, não é sobre a capacidade de reinvenção da esquerda, e sim em que medida essas correntes de pensamento são capazes de fazer frente ao processo de destruição global da vida. Pois o que temos acompanhado até agora é uma progressiva incorporação de diversas dessas demandas aos mecanismos de legitimação do status quo.

No caso brasileiro, a particularidade obviamente é a hegemonia do lulismo [6], que ao menos imaginariamente rompeu com a lógica definida por Roberto Schwarz [7] como nacionalismo por subtração, uma identidade nacional constituída a partir da exclusão sistemática dos mais pobres do campo da cidadania (daí o cuidado que precisamos ter ao falar em crise de representação, pois é preciso reconhecer que dificilmente algo que nunca existiu possa vir a entrar em crise...). De todo modo, e seguindo a interpretação de André Singer [8], o lulismo permite imaginar um outro processo de desenvolvimento, distinto daquele pregado pela cartilha neoliberal, um modo alternativo de desenvolvimento capitalista à brasileira, dessa vez incluindo os mais pobres no processo. O mito é antigo, porém sofre uma importante atualização nesse novo contexto, diretamente vinculado às demandas históricas incorporadas ao Partido dos Trabalhadores.

A questão que fica é a seguinte: o lulismo poderia ir além do que foi (inclusão dos pobres na esfera básica do consumo em benefício dos mais ricos), com as consequências que estamos vivenciando, ou seu projeto nunca foi nada muito além disso mesmo, desde o início? Parodiando Dom Casmurro, Lulinha Paz e Amor já estava presente no sindicalista que assustava os futuros eleitores de Collor [9] ou tudo mudou desde que ele começou a vestir Armani? De todo modo, há certo consenso em torno da ideia de que conforme o PT foi consolidando sua hegemonia, as vozes divergentes de esquerda foram sendo silenciadas ou, ao menos, cooptadas: criticar o governo era estar contra a esquerda e, consequentemente, distante dos interesses populares, fazendo o jogo da direita. O partido usou e abusou da lógica do nós contra eles, mobilizada cada vez mais em termos morais, à medida que o dinheiro ia se acabando.

Diga-se de passagem, a trajetória do Corinthians nessa época nos oferece um bom paralelo futebolístico para compreender o lulismo. Também a propaganda corintiana apelou continuamente para a superioridade ética e moral de “time povo”, verdadeiro representante das classes populares. Enquanto isso, a própria estrutura do futebol brasileiro ia se esfacelando, junto com o amor dos torcedores pelo esporte, culminando no “Não vai ter Copa” e no 7 x 1 como símbolos de esgotamento de certo imaginário nacional. A retórica populista, entretanto, cumpriu seu projeto: não um esporte mais democratizado, mas a transformação do Corinthians em uma potência mundial, pelo menos em termos financeiros.

Por diversas vezes ao longo desses anos, foi possível ouvir o mantra petista “não é hora de fazer autocrítica”, sob o pretexto de que era necessário fortalecer uma articulação entre as esquerdas em nome dos interesses mais amplos de defesa contra as forças conservadoras. Ao mesmo tempo em que clamava pela união, o partido se revelava bem pouco comprometido com esse projeto, a não ser em benefício próprio. Pode até ser feita a autocrítica, desde que o PT não perca a liderança do processo: caso contrário, é tudo golpista falastrão. Parte da tão aludida “arrogância” petista consistiu na crença de que esse jogo de ganha-ganha poderia continuar indefinidamente, contando apenas com o carisma de seu líder, a cegueira de alguns militantes e a produção de alguns de seus intelectuais “orgânicos”. Nada disso mostrou-se suficiente para os mais pobres, que abandonaram radicalmente o partido, pelo ódio ou indiferença. Também não convenceu os setores empresariais que viram sua torneira parar de pingar, e tampouco aqueles mais sonhadores para quem qualquer projeto social representa um entrave à regulação automática do mercado. Por outro lado, o estrago feito à militância e à intelectualidade de esquerda foram enormes, levando ao nosso próprio Eclipse da Razão, versão tupiniquim, o que não é lá essas coisas. Conforme avançávamos no tempo, o descompasso entre os interesses governistas e a esquerda se tornaria mais gritante, culminando na criminalização de Junho de 2013 e na lei antiterrorismo de Dilma.

Em parte, esse conflito segue no centro dos nossos principais embates políticos. De um lado, temos uma direita que assumiu certa consistência ao concentrar sua munição em torno de pautas como a corrupção, a degeneração política e a criminalização do PT (aliás, se existe algum ator político que possa ser considerado vitorioso nesses últimos anos, é o antipetismo). De outro, uma esquerda que não demonstra ter força o suficiente para formular um projeto amplo de resistência. O bizarríssimo cenário eleitoral de 2018 é bastante revelador do impasse: uma esquerda que perdeu suas bases populares e depende quase que integralmente da única liderança popular que teria chances claras de vitória e que, entretanto, segue preso. A metáfora não poderia ser mais adequada: uma esquerda literalmente “presa” a um passado que não a permite avançar, porque fora desse passado não existe nenhum projeto alternativo. A tragédia farsesca da esquerda brasileira está toda contida na imagem de Lula [10] preso.

A esquerda “autorizou” o – ou foi coagida pelo – lulismo a centralizar o processo de mediação com as bases populares, em um movimento até certo ponto natural dentro da lógica representativa. No processo, contudo, não se deu conta de que essas bases estavam se esfacelando. O resultado dessa movimentação foi a formação de um vínculo popular bastante real com Lula (e por mais que se tente com todas as forças, ninguém parece ser capaz de destruir esse vínculo, construído por meio de uma melhora real das condições de vida dos mais pobres) e uma progressiva ruptura desses com a esquerda, ruptura essa negligenciada pela retórica petista que, ao ser aceita sem maiores críticas (“não é hora de autocrítica”), pegou a todos desprevenidos. Afinal, como o PT perdeu apoio popular tão “rapidamente” se “nunca antes na história desse país” os pobres estiveram tão bem e, obviamente, tão agradecidos? Algo na equação não fecha.

Cabe lembrar que parte da retórica do golpe também tenta camuflar essa derrota prévia. Eu não faço parte daqueles críticos que consideram que o termo golpe não deveria ser utilizado em hipótese alguma, porque a meu ver o adjetivo golpista é uma boa designação para o que o atual governo representa, em relação aos interesses populares, além de chamar a atenção para a força do antipetismo, que é um dado real. “Golpe” também serve para destacar a anomia da situação política, absolutamente incerta e distópica, ainda que, a meu ver, esta seja melhor qualificada enquanto “sequestro”. Vivemos atualmente em um país que teve a política descaradamente sequestrada. Dito isso, é preciso reconhecer a função ideológica que a narrativa do golpe cumpre na perspectiva petista, o que leva a alguns posicionamentos contrários a seu uso.

O movimento ideológico básico aqui é a conexão óbvia com o golpe de 1964. O governo João Goulart [11] apontava para a realização de reformas populares de base, inclusive em diálogo com o Partido Comunista, e foi barrado pelos militares com o objetivo explícito de impedir o surgimento de uma nova ordem, assegurando o desenvolvimento capitalista periférico. Da mesma forma, o golpe jurídico-midiático teria tomado forma para barrar os avanços democráticos do PT, cujo apoio popular foi refletido nas urnas em 2014. Basicamente, um golpe das elites contra os interesses populares, igualzinho à ditadura...

Ora, é justamente essa analogia que pouco convence, por tudo aquilo que ela deixa nas sombras. A vitória de Dilma foi por muito pouco, quase nada, e o apoio popular iria praticamente minguar após as eleições, quando a presidenta começou a fazer exatamente o contrário do que havia prometido durante a campanha. Dilma se viu cada vez mais isolada, abandonada inclusive pelo próprio partido. Não por acaso os gritos de “Volta, querida” foram rapidamente substituídos pelos de “Lula lá”, mesmo entre a militância que mais aderiu à tese do golpe. Isso para não falar que o “golpe” funciona também dentro da chave binária, cara ao governismo: quem não adere sem restrições à tese de que houve um ataque articulado pelas elites contra o povo, representado pelo PT, é golpista. É claro que o povo se ferrou nessa, mas, pensando desde essa perspectiva binária, o PT é tão golpista quanto todos os outros grandes partidos, com sua lógica desenvolvimentista predatória e o aparelhamento completo do Estado. Mas a narrativa do golpe transforma o PT em vítima e Dilma, em heroína: de uma governante equivocada e mesmo regressiva em vários aspectos, ela passa a ser vista como a guerreira Coração Valente, perseguida pela direita raivosa, como na época da ditadura. É precisamente essa a lógica a se romper.

É perfeitamente possível reconhecer a ilegalidade do golpe e os interesses predatórios da direita, bem como a seletividade da Lava Jato em seus efeitos com relação ao PT, sem aderir ao discurso que aponta como única solução o retorno ao projeto petista, no mais, praticamente impossível no atual contexto. Ou seja, é possível declarar que foi golpe e, ao mesmo tempo, negar a chantagem do mal menor.

Boa parte do futuro da esquerda brasileira dependerá da maneira como ela irá lidar com o legado petista e, ao mesmo tempo, sustentar novas pautas que não têm mais lugar nesse modelo que, ao que tudo indica, se esgotou, tanto por escolhas equivocadas quanto pelo esfacelamento mundial de alguns pressupostos sob os quais a esquerda historicamente se assentou. Lula foi, talvez, a última grande liderança operária do século 20, uma das maiores do planeta. As mudanças radicais na forma-trabalho impedem a repetição de um fenômeno na mesma proporção. A tarefa da esquerda, contudo, em certo sentido permanece a mesma: encontrar formas de barrar o caráter predatório automático do capitalismo que ameaça a totalidade da existência do planeta. Para isso, é imperativo liberar a imaginação, da mesma forma que a direita tem feito sistematicamente – nos filmes da Marvel, por exemplo, quase todos os problemas (tanto para os mocinhos como para os vilões) envolvem formas de salvar o modelo capitalista. Onde é possível para a esquerda, em tempos tão sombrios, liberar sua imaginação e permitir-se sonhar?

IHU On-Line – Como esquerda e direita lidam com a questão do racismo? E ao tratar de um tema como a violência, como as diferentes expressões políticas se comportam?

Acauam Oliveira – A questão das formas de opressão no país é muito profunda e frequentemente extrapola as diferenças entre classes e identidades. Com relação às questões tratadas aqui, podemos dizer que ela embaralha os códigos dicotômicos que organizam boa parte das definições prévias entre direita e esquerda. Existe uma esquerda transfóbica, contrária à ideia de que transexuais assumam uma identidade feminina, pois seu pênis indicaria o privilégio masculino – o que está em pleno acordo com a opinião de setores mais conservadores. Da mesma forma, existe uma direita conservadora e liberal nos costumes que vê com muito mais simpatia a questão da proteção ao direito das prostitutas do que certos setores da esquerda que consideram fundamental a dimensão inegociável do sexismo. No campo da extrema direita, Bolsonaro diz que homossexualidade é imoral e que mulheres são seres menos capazes, enquanto o comunista Aldo Rebelo [12] afirma não existir racismo no Brasil e que povos indígenas são menos civilizados.

No caso particular do racismo, que é um dos elementos fundamentais de estruturação da sociedade brasileira desde a colônia, estamos diante de um dispositivo que atravessa todos os espectros políticos sem o menor pudor. Se existe algo profundamente enraizado na cultura brasileira, e que nos define enquanto nação, trata-se do racismo. O projeto de genocídio dos jovens negros de periferia, que perpetua relações coloniais, é a matriz constitutiva de nosso projeto de nação, as bases sobre a qual se assentam nossas relações sociais. Ora, não é nenhum segredo que os índices de violência contra o jovem negro não diminuíram ao longo dos governos petistas. Ao contrário, práticas de extermínio e encarceramento em massa não cessaram de crescer. No fundo, trata-se da bem conhecida variante da modernização à brasileira: a base para que o país assuma um projeto nacional mestiço é que em alguma medida se garanta que a identidade negra possa ser perpetuamente definida à bala.

Da mesma forma, os avanços em termo de integração do negro na educação superior e no serviço público conquistados durante a vigência do lulismo só puderam acontecer mediante a radicalização desse projeto de extermínio. A divisão política entre direita e esquerda é insuficiente para dar conta da funcionalidade que tais práticas assumem no país, pois se trata nada mais nada menos do que nosso pacto fundador. O racismo, que aqui assume formas particulares de perversidade, é a grande paixão da sociedade brasileira, seu maior motivo de gozo e instituição chave da democracia, que une todas as classes, credos e espectros políticos. Como afirma a filósofa Sueli Carneiro [13], entre esquerda e direita, o negro continua sendo negro.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Acauam Oliveira – Seria pedir muito para que as pessoas parassem de gritar “Fora Temer”? Trata-se de uma performance puramente protocolar, tão distante da política quanto ser contrário à corrupção. Parece um grito de potência, que “une” todas as tribos, mas sua força é a das fórmulas prontas, que deixaram de explicar seu tempo e agradam naquilo que os protocolos possuem de tranquilizadores. No fundo, o grito de “Fora Temer” celebra apenas a possibilidade de se gritar “Fora Temer”. Atualmente, até o próprio Temer se tranquiliza com o “Fora Temer”: sua rejeição é parte integrante de seu modelo de gestão. Até o silêncio seria mais aterrador, mas a impotência dos gritos integra-se perfeitamente às regras do jogo. No fundo, a diferença entre o “Fora Temer” para o “será que chove” é que, no segundo caso, no interior mesmo do clichê que preenche a falta de assunto, pode ser que o sujeito ainda acredite que o tempo pode, de fato, mudar.

Notas

[1] Jacques Rancière (1940): filósofo argelino, professor da European Graduate School de Saas-Fee e professor emérito da Universidade Paris VIII (Vincennes-Saint-Denis). Seu trabalho se concentra sobretudo nas áreas de estética e política. Pensa a história, a sociedade, os movimentos políticos e o cinema. Colaborador frequente da lendária revista Cahiers du Cinéma. Foi um dos colaboradores do pensador Louis Althusser no volume Lire le Capital (Ler o Capital), de 1965, antes de romper com seu antigo professor na École normale supérieure. No final dos anos 1970, Rancière organiza, com outros jovens intelectuais, como Arlette Farge e Geneviève Fraisse, o coletivo Révoltes Logiques que, sob a inspiração do poeta Rimbaud, questiona as representações tradicionais do social e publica a revista Les Révoltes logiques. Paralelamente, voltou sua atenção para a emancipação operária e os utopistas do século XIX (notadamente Étienne Cabet), com uma reflexão filosófica sobre educação e política. Desse trabalho nasceu sua tese de doutorado, publicada em 1981, sob o título La Nuit des prolétaires. Archives du rêve ouvrier, sobre os operários saint-simonianos. Alguns de seus livros lançados no Brasil são Nomes da História. Ensaio de Poética do Saber (Unesp, 2014), O Ódio à Democracia (São Paulo: Boitempo, 2014), O Inconsciente Estético (São Paulo: Ed. 34, 2009), A noite dos proletários: arquivos do sonho operário (São Paulo: Cia. das Letras, 1988), O desentendimento – Política e Filosofia (São Paulo: Ed. 34, 1996) e Políticas da Escrita (São Paulo: Ed. 34, 1995). Esteve no Brasil em 2005, quando participou do Congresso Internacional do Medo, que aconteceu em São Paulo e no Rio de Janeiro. (Nota da IHU On-Line)

[2] Joseph-Achille Mbembe, conhecido como Achille Mbembe (1957): é um filósofo e cientista político. Natural de Otélé, em Camarões Franceses, obteve seu Ph.D. em História na Universidade de Sorbonne, em Paris, França, em 1989. Referência acadêmica no estudo do pós-colonialismo e pensador das grandes questões da história e da política africana – apesar de, ele próprio, não se definir como “teórico do pós-colonialismo”. É professor de História e Ciência Política na Universidade Duke (Virgínia, Estados Unidos) e na Universidade Witswatervand (Joanesburgo, África do Sul), além de pesquisador no Wits Institute for Social and Economic Research (WISER) dessa mesma universidade. É um autor conhecido, tanto pelos seus artigos nas versões em espanhol do Le Monde Diplomatique como pelas suas contribuições para os livros coordenados por Gilles Kepel, As políticas de Deus (A proliferação do divino na África subsaariana); Jérôme Bindé, Para onde vão os valores?: colóquios do século XXI (Do racismo como prática da imaginação); Fernando López Castellano, Desenvolvimento: Crónica de um desafio permanente (Poder, violência e acumulação) e Okwui Enwezor, O desacolhedor. Cenas fantasma na sociedade global. Em Crítica da razão negra (Lisboa: Antígona, 2014), o autor elabora sobre o conceito de “Negro”, sobre a evolução do pensamento racial europeu que o origina e sobre as máscaras usadas para cobri-lo com um manto de invisibilidade. O texto é profundamente teórico, permeado por uma filosofia política latente: além de ser um acadêmico de referência, Mbembe é também um acadêmico comprometido com o tema. No Brasil, a n-1 edições lançou duas obras de Achille Mbembe: Crítica da razão negra (2018) e Necropolítica (2018). (Nota da IHU On-Line)

[3] Paulo Maluf (1931): empresário, engenheiro e político brasileiro de origem libanesa. Foi governador de São Paulo (1979-1982) e duas vezes prefeito de São Paulo (1969-1971; 1993-1996). Já foi candidato à presidência da República. Ligado constantemente a denúncias de corrupção, é conhecido pela frase “rouba, mas faz” e por ter originado o verbo “malufar”. Atualmente é deputado federal, com o mandato suspenso, e encontra-se em prisão domiciliar. (Nota da IHU On-Line)

[4] Paulo Arantes: graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, fez doutorado de Troisième Cycle na Université de Paris X, Nanterre, com a tese Hegel: l’ordre du temps (Paris: Harmattan, 2000), também disponível em português, Hegel: a ordem do tempo (São Paulo: Hucitec, 2000). Arantes é docente emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, do Departamento de Filosofia da USP. Escreveu várias obras, entre elas Um departamento francês de ultramar (São Paulo: Paz e Terra, 1994); Ressentimento da dialética (São Paulo: Paz e Terra, 1996); e Extinção (São Paulo: Boitempo, 2007). Professor aposentado da USP, o pensador marxista dirige a coleção Zero à Esquerda, da Editora Vozes, e a Coleção Estado de Sítio, da Boitempo. Sua obra associa o rigor da filosofia hegeliana e marxista com análises sociológicas e antropológicas da realidade cultural brasileira. Concedeu a entrevista “A violência institucional ilegal é exercida hoje como uma política sistêmica. Governos não fazem mais a diferença” à edição 248 da revista IHU On-Line. (Nota da IHU On-Line)

[5] Lenin [Vladimir Ilyich Ulyanov] (1870-1924): revolucionário russo, responsável em grande parte pela execução da Revolução Russa de 1917, líder do Partido Comunista e primeiro presidente do Conselho dos Comissários do Povo da União Soviética. Influenciou teoricamente os partidos comunistas de todo o mundo. Suas contribuições resultaram na criação de uma corrente teórica denominada leninismo. (Nota da IHU On-Line)

[6] Lulismo: termo cunhado pelo cientista político André Singer, que também foi porta-voz do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de 2002 a 2007. Nascido durante a campanha de 2002, o lulismo representou o afastamento em relação a componentes importantes do programa de esquerda adotado pelo PT e o abandono das ideias de organização e mobilização. Busca um caminho de conciliação com amplos setores conservadores brasileiros. Sob o signo da contradição, o lulismo se constitui como um grande pacto social conservador, que combina a manutenção da política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) com fortes políticas distributivistas sob o governo Lula (2002-2010). (Nota da IHU On-Line)

[7] Roberto Schwarz (1938): nascido em Viena, na Áustria. Crítico de literatura e cultura, poeta e dramaturgo. Mudou-se para o Brasil com a família, de origem judaica, no início de 1939, quando a Áustria foi anexada pela Alemanha. Nos anos 1950, convive com o também emigrado Anatol Rosenfeld (1912-1973), que foi seu mentor literário e filosófico. Formou-se em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP em 1960. Em 1958-1959, participou do Seminário Marx, que se organizou para estudar O Capital; o grupo era formado por José Arthur Giannotti, Fernando Novais, Paul Singer, Octavio Ianni, Ruth Cardoso, Fernando Henrique Cardoso, Bento Prado Jr., Francisco Weffort, Michael Löwy e Gabriel Bolaffi. Nos Estados Unidos, fez pós-graduação na Universidade de Yale sob a orientação de René Wellek, concluindo o mestrado em 1963, ano em que retornou ao Brasil, tornando-se assistente de Antonio Candido no Departamento de Teoria Literária da USP. Exilando-se em Paris em 1969, quando a repressão política aumentou após o golpe de 1964, fez doutorado em Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Paris III (Université Sorbonne Nouvelle III) sob orientação de Raymond Cantel em 1976. Sua tese, intitulada Ao vencedor as batatas, trata da obra de Machado de Assis. Quando retornou ao Brasil, em 1978, começou a lecionar literatura e teoria literária na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, onde aposentou-se em 1992. Nesse período, sua atuação intelectual foi marcada por algumas polêmicas importantes, como a que travou com Augusto de Campos sobre o legado da poesia concreta. Alguns de seus mais significativos ensaios são publicados em língua inglesa em forma de livro e em importantes periódicos, como a New Left Review. Um dos últimos ensaios do crítico se ocupa, aliás, da repercussão internacional mais recente de Machado de Assis. Schwarz é uma das vozes mais incisivas do ensaísmo brasileiro. É autor de dois livros clássicos sobre Machado de Assis: Ao vencedor as batatas (São Paulo: Duas Cidades, 1977) e Um mestre na periferia do capitalismo (São Paulo: Duas Cidades, 1990). Publicou também Pássaro na gaveta (São Paulo: Massao Ohno, 1959), A lata de lixo da história (São Paulo: Paz e Terra, 1977; São Paulo: Companhia das Letras, 2014), Os pobres na literatura brasileira (São Paulo: Brasiliense, 1983), A sereia e o desconfiado (São Paulo: Paz e Terra, 1965), Sequências brasileiras (São Paulo: Companhia das Letras, 1999) e Duas meninas (São Paulo: Companhia das Letras, 1997). (Nota da IHU On-Line)

[8] André Singer (1958): cientista político, professor e jornalista nascido em São Paulo. Foi secretário de redação do jornal Folha de S. Paulo (1987-88), secretário de Imprensa do Palácio do Planalto (2005-2007) e porta-voz da Presidência da República no primeiro governo Lula, (2003-2007). Filho do economista Paul Singer. É professor do departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP. Graduado em Ciências Sociais e em Jornalismo, mestre, doutor e livre docente em Ciência Política pela USP. (Nota da IHU On-Line)

[9] Fernando Collor de Mello (1949): político, jornalista, economista, empresário e escritor brasileiro, prefeito de Maceió de 1979 a 1982, governador de Alagoas de 1987 a 1989, deputado federal de 1982 a 1986, 32º presidente do Brasil, de 1990 a 1992 e senador por Alagoas de 2007 até a atualidade. Foi o presidente mais jovem da história do Brasil e o presidente eleito por voto direto do povo, após o regime militar (1964/1985). Seu governo foi marcado pela implementação do Plano Collor e a abertura do mercado nacional às importações e pelo início de um programa nacional de desestatização. Seu Plano, que no início teve uma boa aceitação, acabou por aprofundar a recessão econômica, corroborada pela extinção, em 1990, de mais de 920 mil postos de trabalho e uma inflação na casa dos 1200% ao ano; junto a isso, denúncias de corrupção política envolvendo o tesoureiro de Collor, Paulo César Farias, feitas por Pedro Collor de Mello, irmão de Fernando Collor, culminaram com um processo de impugnação de mandato (impeachment). Atualmente, está entre os denunciados da Operação Lava Jato, que investiga esquema de corrupção envolvendo agentes políticos e empresários. (Nota da IHU On-Line)

[10] Luiz Inácio Lula da Silva (1945): Trigésimo quinto presidente do Brasil, cargo que exerceu de 2003 a 1º de janeiro de 2011. É cofundador e presidente de honra do Partido dos Trabalhadores – PT. Em 1990, foi um dos fundadores e organizadores do Foro de São Paulo, que congrega parte dos movimentos políticos de esquerda da América Latina e do Caribe. Foi candidato a presidente cinco vezes: em 1989 (perdeu para Fernando Collor de Mello), em 1994 (perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e em 1998 (novamente perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e ganhou as eleições de 2002 (derrotando José Serra) e de 2006 (derrotando Geraldo Alckmin). Lula bateu um recorde histórico de popularidade durante seu mandato, conforme medido pelo Datafolha. Programas sociais como o Bolsa Família e Fome Zero são marcas de seu governo, programa este que teve seu reconhecimento por parte da Organização das Nações Unidas como um país que saiu do mapa da fome. Lula teve um papel de destaque na evolução recente das relações internacionais, incluindo o programa nuclear do Irã e do aquecimento global. É investigado na operação Lava Jato e foi denunciado em setembro de 2016 pelo Ministério Público Federal (MPF), apontado como recebedor de vantagens pagas pela empreiteira OAS em um tríplex do Guarujá. No dia 12 de julho de 2017, Lula foi condenado pelo juiz federal Sérgio Moro, em primeira instância, a nove anos e seis meses de prisão em regime fechado por crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. No dia 24 de janeiro de 2018, por unanimidade, os três desembargadores da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região confirmaram a condenação de Lula, elevando a pena para 12 anos e um mês de prisão. No dia 7 de abril de 2018 Lula, após mandado de prisão expedido pelo judiciário, entregou-se à Polícia Federal onde se mantém sob custódia na Superintendência do órgão em Curitiba. (Nota da IHU On-Line)

[11] João Goulart [João Belchior Marques Goulart] (1919-1976): também conhecido como Jango, foi presidente do Brasil de 1961 a 1964, tendo sido também vice-presidente, de 1956 a 1961 – em 1955, foi eleito com mais votos que o próprio presidente, Juscelino Kubitschek. Seu governo é usualmente dividido em duas fases: fase parlamentarista (da posse, em janeiro de 1961, a janeiro de 1963) e fase presidencialista (de janeiro de 1963 ao golpe militar de 1964). Jango fora ainda ministro do Trabalho entre 1953 e 1954, durante o governo de Getúlio Vargas. Foi deposto pelo golpe militar do dia 1º de abril de 1964 e morreu no exílio. Confira a entrevista "Jango era um conservador reformista", com Flavio Tavares, de 19-12-2006; João Goulart e um projeto de nação interrompido, com Oswaldo Munteal, de 27-8-2007. Confira também as entrevistas com Lucília de Almeida Neves Delgado intitulada O Jango da memória e o Jango da História, publicada na edição 371 da IHU On-Line, de 29-8-2011, e Dúvidas sobre a morte de Jango só aumentam, de 5-8-2013. Veja ainda João Goulart foi, antes de tudo, um heroi, com Juremir Machado, de 26-8-2013, e Comício da Central do Brasil: a proposta era modificar as estruturas sociais e econômicas do país, com João Vicente Goulart, de 13-3-2014. (Nota da IHU On-Line)

[12] Aldo Rebelo (1956): político nascido em Viçosa (AL), atualmente filiado ao Solidariedade, já tendo passado por PCdoB e PSB. Foi vereador na cidade de São Paulo entre 1989 e 1991, pelo PCdoB, deputado federal por São Paulo por seis mandatos, ministro da Secretaria de Coordenação Política e Relações Institucionais, vinculada à presidência da República, de 23 de janeiro de 2004 a 20 de julho de 2005, e presidente da Câmara dos Deputados entre 28 de setembro de 2005 e 31 de janeiro de 2007. Entre 27 de outubro de 2011 e 1º de janeiro de 2015, foi ministro de Estado dos Esportes, deixando o cargo para assumir o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, do qual saiu em 2 de outubro de 2015 para assumir o Ministério da Defesa, no qual ficou até 12 de maio de 2016. (Nota da IHU On-Line)

[13] Sueli Carneiro (1950): filósofa, escritora e ativista antirracismo do movimento social negro brasileiro, doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP. Fundadora e diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra e considerada uma das principais autoras do feminismo negro no Brasil. (Nota da IHU On-Line)

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