30 Dezembro 2025
"Das elaborações da seção sobre o pensar, mas também dos numerosos textos de Arendt daqueles anos, podemos concluir que na seção sobre o julgar teria tomado forma mais elaborada sua apropriação dessa capacidade como capacidade reflexiva."
O artigo é de Claudia Hilb, publicado por Nueva Sociedad, 15-12-2025.
Claudia Hilb é doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires e possui um diploma de pós-graduação em Estudos Latino-Americanos (com ênfase em Ciência Política) pela Universidade de Paris III. É pesquisadora independente do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (Conicet) da Argentina.
Eis o artigo.
Em 1972, numa conferência sobre sua obra organizada em Toronto, Hannah Arendt respondeu assim a seu amigo Hans Morgenthau, que lhe pedia que esclarecesse se era conservadora, liberal ou qual era, afinal, sua posição: “Não sei, realmente não sei e nunca soube. E suponho que nunca tive uma posição propriamente dita. Como sabem, a esquerda considera que sou conservadora e os conservadores às vezes pensam que sou de esquerda, ou inconformista, ou só Deus sabe o quê. E devo dizer que isso me é totalmente indiferente”. Nessa mesma conferência, Arendt recorreu à metáfora de “pensar sem corrimãos”. “Quando subimos e descemos escadas”, explicava, “sempre podemos nos segurar nos corrimãos para não cair. Mas perdemos esses corrimãos. É isso que digo a mim mesma, e é certamente o que tento fazer [pensar sem eles]”.
Nas últimas décadas, o interesse pela obra de Arendt cresceu exponencialmente dentro e fora dos círculos especializados em pensamento político. Provavelmente a impossibilidade de enquadrar a autora não seja alheia a esse fenômeno e, embora isso mesmo possa dar lugar a apropriações muitas vezes superficiais ou ao uso de citações soltas com fins banalmente estetizantes, permitiu ao mesmo tempo enriquecer de modo notável a reflexão política tanto sobre os acontecimentos do século XX quanto sobre nossos olhares para o mundo contemporâneo.
É possível identificar, na obra arendtiana, elementos que a atravessam desde seus inícios, assim como distintos momentos que podem ser associados a acontecimentos que marcam sua biografia. Assim, desde sua tese sobre o amor em Santo Agostinho (1929) até A vida do espírito, publicada postumamente em 1978, após sua morte em 1975, é possível detectar uma preocupação permanente em situar a experiência no espaço, como aprendera com um de seus grandes mestres, Karl Jaspers, e no tempo, na trilha de seu outro grande mestre, Martin Heidegger.
Não parece abusivo dizer que um dos modos de percorrer cada um de seus textos ou cada um dos momentos de sua obra poderia consistir em fixar a atenção na maneira como essas dimensões atravessam sua reflexão. Isso, novamente, sem deixar de atender ao modo como ela é impactada pelos acontecimentos que a provocam, lembrando que para Arendt – como assinala no prólogo de Entre o passado e o futuro – “o pensamento surge dos acontecimentos da experiência vivida e deve permanecer vinculado a eles, como únicos pontos de referência pelos quais se orientar”.
Assim, seria possível traçar um primeiro arco que vai de seus estudos sobre a vida da escritora alemã Rahel Varnhagen (1771-1833), no início da década de 1930, aos textos que precedem seu grande livro Origens do totalitarismo (1951). Por meio da vida de Varnhagen, delineia-se a reflexão sobre o destino daqueles judeus que, no calor da emancipação política na Alemanha do final do século XVIII, buscaram assimilar-se à sociedade em que viviam. Isso supôs, em termos gerais, o esforço individual de inserir-se em um espaço de pertencimento, renunciando ao legado da própria tradição. Mas, aos olhos de Arendt, a assimilação como projeto individual tenta contornar – e ao mesmo tempo evidencia – o fato de que, embora os judeus tivessem alcançado a emancipação política, continuavam sendo, como grupo, socialmente marginalizados.
O advento do nazismo encerra de maneira brutal aqueles sonhos individuais de assimilação, lançando todos os judeus, indistintamente, à condição de “párias”. Em diversos textos desses anos, e de modo destacado em A tradição oculta (1944), Arendt elabora a possibilidade de outra tradição, a tradição do pária consciente, tecendo um relato que reúne os retratos de autores e atores – Heinrich Heine, Franz Kafka, Charles Chaplin, Bernard Lazare – que, em sua ação ou em sua obra, se diferenciaram tanto da busca individual de assimilação do arrivista quanto da aceitação resignada da marginalização do pária.
Em 1933, Arendt, nascida em 1906 em um lar judeu laico de Königsberg, foge da Alemanha para a França, de onde conseguirá fugir novamente, desta vez para os Estados Unidos, em 1941. Entre 1945 e 1949, dedica-se à elaboração daquela que provavelmente seja sua obra mais repercutida, Origens do totalitarismo, parte da qual surge da reelaboração de textos produzidos nos anos anteriores e então não publicados, “ainda em total desalento e tristeza, mas já saindo da indignação muda e do horror impotente”. Chegara o momento de tentar compreender como pôde acontecer o inimaginável. “O que aconteceu, por que aconteceu, como pôde acontecer?”, são as perguntas com as quais tentava lidar, observa Arendt no prólogo de 1966 à reedição dessa obra.
Como ninguém antes dela, Arendt insistirá que o totalitarismo não pode ser simplesmente deduzido de seus antecedentes nem compreendido nos termos de regimes já conhecidos – ditaduras, despotismos. Seus antecedentes, analisados em profundidade nas duas primeiras partes, “Antissemitismo” e “Imperialismo”, permitem perceber como se desenvolvem os diversos elementos que cristalizarão de maneira catastrófica em um regime de novo tipo, o regime totalitário, objeto da terceira parte do volume.
O totalitarismo é um regime inédito, na medida em que inova radicalmente na compreensão da lei, substituindo a lei positiva e o ordenamento jurídico pela voz do Führer como enunciadora de uma suposta lei da natureza ou da história à qual todos devem se submeter. Nos termos clássicos herdados de Montesquieu, trata-se de um regime cuja natureza é o governo do terror, sustentado e reproduzido pelo princípio de ação que lhe fornece a ideologia enquanto subordinação da ação à lógica implacável de uma ideia, como anulação do pensar reflexivo; um regime que anula a pluralidade, a diferença, e elimina toda distância – isto é, toda liberdade – entre os seres humanos, aos quais, ao mesmo tempo, isola e amontoa.
Podemos traçar um segundo arco que nos leva do início da década de 1950 até a crônica do julgamento de Eichmann, em 1963, e identificar um fio que liga três livros fundamentais da obra arendtiana – A condição humana (1958), Entre o passado e o futuro (1961) e Sobre a revolução (1963) – em torno da reflexão sobre a ação política como ação livre em um espaço compartilhado e sobre seu destino na modernidade.
A condição humana é, junto com o póstumo A vida do espírito, um dos livros mais propriamente filosóficos de Arendt. Propõe uma investigação das diferentes esferas do agir humano: o labor enquanto reprodução vital; o trabalho como produção de um mundo de objetos duráveis; a ação propriamente dita como capacidade de iniciar o novo, de fazer aparecer o “quem” de cada um em uma cena compartilhada, que só existe enquanto agimos e que se dissipa quando deixamos de agir. Mas é, simultaneamente, um diagnóstico do ocaso da ação na modernidade: a substituição do poder (exercido na cena pública por meio de atos e palavras) pela administração; e a dissolução do ator singular, que se revela em seu aparecer em um espaço comum, na massa impessoal.
Os textos reunidos em Entre o passado e o futuro retomam, à sua maneira, as perguntas com que se encerra A condição humana, mas reconectam-se ao mesmo tempo com a preocupação arendtiana, presente em A tradição oculta, sobre a dificuldade de agir e pensar livremente quando perdemos o chão seguro que nos oferecia uma tradição – estamos, mais uma vez, diante do desafio de pensar sem corrimãos ou, na frase de René Char que abre seu prólogo, de enfrentar uma herança sem testamento. Assim, na interrogação sobre a liberdade, torna-se evidente que a associação entre liberdade e política, ou a compreensão da liberdade прежде de tudo como liberdade mundana, pública, e não como atributo do indivíduo isolado, já não é algo dado no mundo contemporâneo.
Na investigação sobre a autoridade – o que é, ou talvez seja melhor dizer o que foi a autoridade?, pergunta Arendt – o foco recai sobre a maneira como a ruptura da autoridade da tradição, e com ela da tradição da autoridade, nos confronta com a dificuldade de termos de fundamentar sempre nossas ações e convicções na própria ação, em nossa capacidade de julgar, sem poder contar com o chão seguro daquilo que é transmitido como acervo comum de significações e sentidos, de geração em geração. Certamente, dirá Arendt, é possível que apenas agora, nessa brecha entre o passado e o futuro em que nos encontramos diante da ruptura do fio da tradição, o presente possa aparecer diante de nós em toda a sua novidade. Mas existe o risco – e não é pequeno – de que essa ruptura nos deixe imersos em um presente sem espessura, ou que convoque à adesão a qualquer conteúdo que preencha esse vazio de sentido em que nos encontramos.
Por fim, em Sobre a revolução, Arendt se confronta com as revoluções modernas, a francesa e a estadunidense, para encontrar nesta última um momento de fundação da liberdade, isto é, de um poder surgido da ação dos seres humanos entre si e assentado nas promessas – isto é, que emana da única fonte efetiva do poder, aos olhos de Arendt. Mas também aqui o diagnóstico final é pouco alentador: não apenas a revolução moderna ficou associada à experiência francesa de apropriação dos mecanismos de mando por uma minoria, e não à experiência fundacional estadunidense, como também esta última acabou derivando, em última instância, em uma forma de governo na qual a administração da prosperidade se impôs acima da busca da felicidade pública.
Tracemos, finalmente, um terceiro arco que conduz de Eichmann em Jerusalém (1963) até seu livro póstumo, o inacabado A vida do espírito. O julgamento de Eichmann, ao qual Arendt assistiu a seu pedido como cronista da New Yorker, marcaria sua reflexão nos anos seguintes. Sua avaliação da incapacidade do hierarca nazista de pensar por si mesmo, para além de clichês e frases feitas, levou-a a aprofundar a investigação sobre a atividade do pensar e do julgar, e sobre a relação dessas atividades com o mal. A noção de banalidade do mal, tão levianamente rejeitada por seus detratores, longe de exculpar os criminosos ou, por assim dizer, banalizá-los, colocava-nos, segundo Arendt, diante de um horror ainda mais difícil de conceber do que a maldade diabólica, e contrariava o modo como a tradição havia concebido o mal.
Os textos de suas aulas de 1965 e 1966, reunidos em Responsabilidade e julgamento, retomam, sob diversos ângulos, o impacto que essa constatação produziu nela. Neles, Arendt investiga a relação do mal com a ausência de pensamento e a incapacidade de julgar – a ausência do diálogo de cada um consigo mesmo, do dois-em-um da consciência, a incapacidade de se relacionar com o mundo e com os outros por meio do julgamento. Nessa incapacidade de pensar em diálogo consigo mesmo, de rememorar as ações como próprias e de julgar de modo ampliado – concluirá em “Algumas questões de filosofia moral” – “reside o horror e, ao mesmo tempo, a banalidade do mal”.
A vida do espírito deveria compor-se de três partes: “O pensar”, “A vontade” e “O julgar”. Arendt não chegou a escrever a terceira e dizia sentir-se desconfortável com a segunda. Cabe assinalar brevemente que a primeira retoma e aprofunda as meditações desses anos sobre o diálogo do dois-em-um da consciência e explicita o modo como essa capacidade, que opera com invisíveis (conceitos, ideias, significados, diálogo silencioso consigo mesmo), prepara a capacidade de julgar, que opera com casos particulares.
Das elaborações da seção sobre o pensar, mas também dos numerosos textos de Arendt daqueles anos, podemos concluir que na seção sobre o julgar teria tomado forma mais elaborada sua apropriação dessa capacidade como capacidade reflexiva. Isto é, uma capacidade, uma atividade, que longe de subsumir sob uma máxima já dada os juízos que formulamos, nos convida a elevar nosso juízo a partir de um caso particular, com uma pretensão de validade universal que não se sustenta em uma verdade exterior, mas em nossa busca por julgar o que acontece a partir de um olhar ampliado que – partindo de nossa posição – possa imaginar outros olhares, outras posições, em uma cena compartilhada. Que possa elevar um juízo, portanto, desprovido de corrimãos, sejam eles os da tradição ou os de uma autoridade, que não ceda à tentação de submeter-se a alguma nova verdade de qualquer tipo que tornaria desnecessário o exercício, o esforço, de pensar e julgar diante desta, nossa herança sem testamento.
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