A indignação com os feminicídios no Brasil está ganhando força no debate público e tomando as ruas

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

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15 Dezembro 2025

Diversos casos de extrema crueldade despertam a sociedade para a expressão mais brutal do machismo, que deixa quatro mortos e dez sobreviventes todos os dias.

A informação é de Naiara Galarraga Gortázar, publicada por El País, 15-12-2025

A ativista feminista Brisa Batista participou, no último domingo, de uma das maiores manifestações realizadas no Brasil contra o feminicídio, esse fluxo diário que mata quatro mulheres brasileiras todos os dias. Desta vez, a socióloga sentiu-se amparada ao lado das milhares de mulheres que foram às ruas de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e dezenas de outras cidades para expressar sua indignação contra os assassinatos sexistas e a normalização da misoginia… gritando “Parem de nos matar”. Um protesto massivo, nada parecido com a solidão que ela sentiu um dia em 2019.

O feminicídio de Elitania de Souza a afetou profundamente, conta Batista. Para ela, foi fácil se identificar com a jovem baiana, assassinada a tiros pelo namorado de quem tentava se separar. Universitária, negra, ativista. “Como pude viver até agora sem perceber que essa é uma forma tão dramática de violência?”, questionou, chocada. Ela queria gritar para o mundo: “Parem de nos matar!”. Então, escreveu a frase em um pedaço de papel, acrescentou a hashtag #Elitania e, em uma estação de metrô movimentada de São Paulo, ergueu o cartaz e pediu a um desconhecido que fotografasse o protesto solitário. Publicou a foto nas redes sociais. Sua mensagem não repercutiu; a publicação nunca viralizou.

A série de feminicídios extremamente cruéis ocorridos em poucos dias — por volta do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres — conferiu ao tema uma proeminência sem precedentes. A violência de gênero atraiu uma atenção midiática e política sem precedentes.

As imagens de Tainara Santos sendo atropelada e arrastada por um quilômetro no asfalto por um ex-namorado em uma via expressa de São Paulo chocaram o país; ela sobreviveu, mas teve que amputar as duas pernas. Allane Matos, diretora de uma escola no Rio de Janeiro, e Layse Pinheiro, psicóloga, foram assassinadas a tiros por um subordinado que não suportava ter chefes mulheres. Isabele de Macedo e seus quatro filhos (com idades entre um e sete anos) foram mortos pelo marido, pai de seus filhos, quando ele incendiou a casa deles em Recife. Maria de Lourdes Matos, cabo do Exército e saxofonista, foi assassinada pelo namorado, também militar, em um quartel em Brasília; ele a esfaqueou e ateou fogo em seu corpo.

Essas doses extremas de crueldade finalmente tocaram em um ponto sensível. Os assassinatos de mulheres por seus parceiros ganharam manchetes, foram destaque em noticiários e são tema de artigos de colunistas renomados em grandes jornais. Entre as propostas estão a adoção de um pacto nacional contra a violência de gênero, semelhante ao acordo espanhol de 2017, e a implementação de um modelo integrado de atendimento similar.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu as penas mais severas para os autores de feminicídio e instou os homens a se mobilizarem contra feminicidas, estupradores e abusadores.

Nesse contexto, diversas mulheres uniram forças para organizar às pressas as marchas de domingo, dia 7, que reuniram 10 mil pessoas em São Paulo e milhares em todo o país. Um sucesso.

A ativista Batista entende bem como as percepções mudaram, pois colabora com o projeto Quem Ama Liberta, um memorial nas redes sociais que homenageia cada vítima contabilizada nos últimos 18 anos.

Batista acredita que houve um movimento clandestino que veio à tona graças a uma série de fatores, entre os quais ela destaca três mulheres: a juíza Carmen Lúcia Rocha, a única mulher no Supremo Tribunal Federal, que com seu discurso incisivo contra a desigualdade de gênero se tornou um ícone feminista no Brasil; a presidente do México, Claudia Sheinbaum, poderosa e vítima recente de agressão sexual; e Janja da Silva, esposa de Lula e arquiteta da inclusão de mais questões femininas e feministas em seu discurso político.

No ano passado, 1.492 mulheres foram assassinadas no Brasil. Pelo terceiro ano consecutivo, a média diária chegou a quatro mulheres. Quatro mulheres são assassinadas todos os dias desde o início de 2022.

Outras formas de agressão aumentaram significativamente, alerta Manoela Miklos, pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, organização focada na análise da violência. “Os números relativos às vítimas fatais indicam que a violência continua a crescer, e isso é importante porque sabemos que a agressão não começa com o feminicídio”, afirma, chamando a atenção para o enorme aumento das tentativas de feminicídio.

A pesquisadora da FBSP aponta diversas razões para esse aumento da violência que precede o feminicídio: “Há um certo efeito rebote, um efeito retaliatório, devido às conquistas feministas e à ascensão de comunidades que promovem uma masculinidade que odeia as mulheres, juntamente com a retórica de líderes que legitimam esse discurso”.

No Brasil, todos se orgulham da Lei Maria da Penha, uma legislação poderosa contra a violência de gênero, promulgada em 2015, embora ainda haja muito a ser aprimorado. Criminalizado há uma década, o feminicídio, com pena de até 40 anos de prisão, é o crime mais severamente punido pelo Código Penal.

Hannah Maruci, doutora em Ciência Política, enfatiza que o foco das autoridades públicas está nas consequências, no aspecto penal, na punição, o que ela considera necessário, mas insuficiente para erradicar a violência de gênero.

O presidente Lula se manifestou nesse sentido nos últimos dias durante um evento em uma refinaria de petróleo. Até mesmo um bispo católico, o bispo de Cachoeiro de Itapemirim, aderiu à causa com uma “carta aos homens”.

Ano após ano, os feminicídios batem novos recordes, embora o ritmo de crescimento tenha diminuído.

O cientista político Maruci, do Cebrap (Centro Brasileiro de Análises e Planejamento), prefere não prever se esse crescente interesse é uma moda passageira ou o início de uma mudança mais profunda.

A maneira mais direta de entender o preço extremamente alto que a violência de gênero cobra no Brasil é observar o perfil Quem Ama Liberta no Instagram, que Regina Jardim vem desenvolvendo pacientemente desde 2007, quando um homem assassinou sua filha Priscila. Lá, ela publica breves perfis das quatro mulheres assassinadas a cada dia, como Maria Katiane da Silva, Indianara da Silva, Maria Graciele Santos e Auriscléia do Nascimento.

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