Foi Apenas um Acidente. Comentário de Neusa Barbosa

Cena do filme "Foi Apenas um Acidente" | Foto: Divulgação

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12 Dezembro 2025

Um ex-preso político julga reconhecer na rua um antigo algoz que o torturou na prisão. A partir daí, fica obcecado com a captura do suposto agente, recorrendo a outros ex-presos que sofreram em suas mãos, para tentar identificá-lo sem erro. Dirigido pelo iraniano Jafar Panahi, o filme foi vencedor da Palma de Ouro em Cannes. Nos cinemas.

O comentário é de Neusa Barbosa, jornalista e crítica de cinema, publicado por CineWeb, 02-11-2025.

Eis o comentário.

Por 15 anos, o diretor iraniano Jafar Panahi esteve proibido de viajar ao exterior, uma das muitas restrições de quem, nesse período, foi condenado à prisão, esteve em solitária, fez greve de fome e foi proibido de filmar - o que não impediu que continuasse realizando filmes como Isto Não é Um Filme, Táxi Teerã, Três Faces e Sem Ursos, colhendo prêmios em festivais internacionais como Cannes e Berlim.

A proibição foi suspensa em 2025 e Panahi pôde, em maio último, estar presente na concorrida sessão oficial de seu novo filme em Cannes, Foi Apenas Um Acidente, que terminou vencendo a Palma de Ouro, concedida por um júri presidido pela atriz Juliette Binoche. Em 2010, quando o cineasta foi preso no Irã e por isso impedido de vir a Cannes para integrar o júri, a atriz francesa ergueu um cartaz com o nome dele ao receber o próprio prêmio de interpretação, por outro filme iraniano, Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami.

Toda essa circunstância trabalhou a favor do filme, mas nada disso deve obscurecer o fato de que a obra fala por si só, em sua complexidade política e força dramática. No enredo, um homem, Vahid (Vahid Mobasseri), julga reconhecer um antigo algoz que o torturou na prisão - que se deu também por motivos políticos. A partir daí, fica obcecado com a captura do suposto agente, Eghbal (Ebrahim Azizi), recorrendo a outros ex-presos que sofreram em suas mãos, como a fotógrafa Shiva (Mariam Ashfari), uma noiva em seu vestido de casamento, Gol (Hadis Pakbaten)i, e outro homem, Hamid (Mohammed Ali Elyasmehr), para assegurar-se de que sua identidade, sobre a qual restam dúvidas.

Numa trama que se desenvolve entre uma caminhonete, as ruas da cidade e alguns lugares ermos, Panahi constrói seu drama ético, que suscita todo tipo de questão. Se de um lado é um thriller - este homem é ou não o agente Eghbal? -, também é um relato moral. Até que ponto é legítimo que vítimas exercitem o olho por olho, dente por dente, contra aqueles que, contra elas, impuseram agressões, execuções encenadas e ameaças, inclusive de estupro?

O cineasta dá voz às vítimas, que carregam cicatrizes profundas, porque os efeitos da tortura, de algum modo, nunca se dissipam completamente, especialmente os psíquicos. E cada uma tem seu entendimento sobre a vingança. Mas também, a certa altura, se dá voz a este agente do Estado, que perdeu uma perna lutando na Síria e tem uma noção bastante pessoal do que é servir ao governo. No auge da sua forma como roteirista e diretor, Panahi cria um filme denso, cheio de camadas, inclusive de humor - a noiva e a passagem pelo hospital são dois desses momentos exemplares, sem nunca comprometer o grande arco de valores sendo colocados em primeiro plano.

A própria filmagem de Foi Apenas um Acidente ocorreu cheia de percalços. Mesmo filmando em parte dentro de uma caminhonete, também para atrair menos atenção, a equipe recebeu a visita de fiscais e se mobilizou para esconder o filme, prevenindo a hipótese de que fosse confiscado - conforme relatou o diretor na coletiva em Cannes. Depois do anúncio de que o filme iria a Cannes, sobretudo nas duas semanas anteriores, vários membros da equipe, como as atrizes Hadis e Mariam, foram intimadas para interrogatórios e pressionadas. Ebrahim Azizi contou que recebeu telefonemas estranhos de números desconhecidos. Um corroteirista do filme foi preso.

As restrições do regime iraniano contra os artistas, no entanto, continuam. Nesta semana em que o filme estreia no Brasil, chega a notícia de que o diretor foi novamente condenado a um ano de prisão, proibido por dois anos de viajar para fora do Irã e também de associar-se a grupos políticos e sociais.

No entanto, como afirmou Panahi em Cannes: “É um absurdo e até surrealista que se coloquem artistas na prisão. Ao fazer isso, lhes damos ideias, lhes abrimos um mundo novo”. Seu próprio filme, segundo ele, nasceu de inúmeras conversas com pessoas que conheceu na prisão. “Na verdade, não fomos nós que criamos o filme, foi a República Islâmica. Então, eles devem saber que, quando prendem um artista, devem assumir as consequências”.

Ficha técnica

Nome: Foi Apenas um Acidente

Nome original: Yek Tasadef Sadeh

Ano: 2025

País: França, Irã, Luxemburgo

Gênero: Drama

Duração: 102 minutos

Classificação: 14 anos

Cor da filmagem: Colorido

Direção: Jafar Panahi

Elenco: Vahid Mobasseri, Ebrahim Azizi, Mariam Ashfari, Hadis Pakbaten, Mohammed Ali Elyasmehr

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