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Argentina sob Milei, rumo a um modelo peruano? Artigo de José Natanson

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15 Novembro 2025

Para além das razões conjunturais – antiperonismo, medo de um colapso financeiro se o oficialismo perdesse – da vitória de La Libertad Avanza (LLA) nas eleições legislativas argentinas, a conexão do presidente libertário com seu eleitorado se explica por mudanças de longo prazo na sociedade argentina, hoje distante de um passado mais igualitário e de um Estado de bem-estar muito incompleto, mas presente. Nessa medida, o peronismo busca representar uma sociedade que já não existe como no passado.

O artigo é de José Natanson, jornalista, cientista político e diretor, publicado por Nueva Sociedad, 14-11-2025. 

Eis o artigo. 

Argentina sob Milei, rumo a um "modelo peruano"?

No último 26 de outubro, o partido de Javier Milei obteve um triunfo contundente nas eleições legislativas argentinas de meio de mandato. Alcançou 41% dos votos, contra 35% da oposição peronista, impondo-se em quase todas as províncias, inclusive a de Buenos Aires, a mais populosa do país. Apesar dos efeitos sociais dramáticos do ajuste implementado por seu governo, da fragilidade do plano econômico – duas semanas antes das eleições, Milei teve de ser resgatado por Donald Trump – e do estilo agressivo do presidente, que não se priva de insultar dirigentes e jornalistas com palavras que oscilam entre o sexual e o escatológico, o certo é que o triunfo foi límpido.

Três explicações ajudam a entendê-lo. As duas primeiras aludem a questões mais circunstanciais, por isso vou descrevê-las sinteticamente para passar ao coração deste artigo: as mudanças profundas que a sociedade argentina vem experimentando desde o esgotamento do modelo desenvolvimentista em meados dos anos 1970, que se aceleraram nas últimas duas ou três décadas, e sem as quais não seria possível entender a chegada de Milei ao governo em dezembro de 2023, nem a afirmação política de seu projeto nas eleições legislativas deste ano.

Antiperonismo e voto medo

A primeira explicação é a capacidade do governo de ativar o tradicional voto antiperonista. Como há 80 anos, quando os trabalhadores industriais marcharam até a Praça de Maio para exigir a libertação de seu líder preso, Juan Domingo Perón, o eixo peronismo/antiperonismo continua sendo o principal ordenador da vida política argentina, e o antiperonismo, a identidade política mais forte.

Neste caso, o que aconteceu foi que, um mês e meio antes das eleições nacionais de outubro, realizaram-se eleições na província de Buenos Aires. Embora se tratasse de eleições para definir os representantes da Legislatura local, funcionaram, pelo peso natural do distrito, que concentra 38% do eleitorado argentino, e pela “nacionalização” de fato que acompanhou a campanha, como uma espécie de primeiro turno nacional. O peronismo, liderado pelo governador Axel Kicillof, impôs-se por quase 14 pontos de diferença em relação aos candidatos de Milei.

Mas essa derrota da direita, que golpeou com força o governo libertário, acabou por despertar o gigante antiperonista adormecido, como um silencioso 17 de Outubro – data de nascimento do peronismo – ao contrário. A capacidade de Milei de apresentar seus candidatos como o melhor instrumento para frear o peronismo, em sua versão kirchnerista, ficou evidente no fracasso das terceiras forças, e sobretudo na evolução eleitoral na província de Buenos Aires, onde os libertários de Milei obtiveram em outubro um milhão de votos a mais do que em setembro. Mas, embora a operação tenha sido bem-sucedida, também encerra um risco: Milei chegou à Presidência como um outsider que tentou transcender o universo antiperonista (para o Milei do primeiro turno de 2023, o país não tinha se “ferrado” com o peronismo, mas muito antes, com o “socialismo”). Ainda assim, no segundo turno somou ao seu núcleo original de 30% (muitos deles homens jovens) o voto mais tradicionalmente antiperonista proveniente da Proposta Republicana (PRO), o partido do ex-presidente Mauricio Macri – um voto clássico de classe média, mais envelhecido e muito menos plebeu que o de Milei.

Se no segundo turno de 2023 Milei chegou a 54% dos votos, desta vez La Libertad Avanza (LLA), seu partido, alcançou 41%, o que sugere que parte de seu eleitorado começou a abandoná-lo (a participação caiu em relação à eleição presidencial). A atual coalizão mileísta, que incluiu a maior parte do macrismo, se parece hoje mais com a base histórica do antiperonismo, o que resulta em um Milei mais parecido com Macri, que é também um Milei mais previsível (seus primeiros passos após a vitória buscaram ir nesse sentido), mas também menos original e fresco.

A segunda explicação do resultado é o “voto econômico”. Desde a publicação de The American Voter em 1960[1], uma das teorias mais recorrentes da ciência política é aquela que propõe que o comportamento eleitoral é guiado sobretudo pela percepção econômica, em particular dos meses que antecedem os pleitos: há centenas de artigos que modelam essa hipótese, correlacionando tantos pontos de crescimento com tal porcentagem de votos. Contudo, os meses anteriores às eleições não foram bons. Para entender o ponto, então, é preciso considerar o processo mais longo. Assim que chegou ao governo, Milei ordenou uma desvalorização da moeda de 80%, um duro ajuste fiscal, um aumento das tarifas dos serviços públicos e uma contração da base monetária. Depois do primeiro choque inflacionário, a combinação de corte do gasto público, alta da taxa de juros e queda brutal dos salários possibilitou uma diminuição drástica da inflação, que passou de 25% mensal nos últimos dois meses do governo peronista para cerca de 2%. Com o passar dos meses, o atraso do tipo de câmbio (dólar barato) permitiu somar mais uma âncora ao plano desinflacionário e impulsionar o consumo de bens intensivos em dólares (carros, eletrodomésticos) e o turismo ao exterior, ainda que ao custo de uma perda de reservas que obrigou o governo a pedir auxílio primeiro ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e depois aos EUA: o Tesouro desse país, chefiado por Scott Bessent, chegou ao ponto de vender diretamente dólares no mercado de câmbio argentino nos dias anteriores às eleições para evitar uma desvalorização do peso.

Diante das turbulências financeiras, das inconsistências do próprio plano e do risco eleitoral, a economia vinha efetivamente aos trancos, com o consumo e a renda em queda. No entanto, Milei apostou tudo em uma ideia: a estabilidade e a queda da inflação seriam premiadas pelos eleitores. E ganhou. O “voto econômico” operou, mas de uma forma sutilmente diferente de outros momentos do passado. Boa parte dos argentinos decidiu dar mais tempo ao governo; um crédito condicionado. As pesquisas qualitativas entre os seguidores de Milei colhiam a ideia de que se trata de uma gestão repleta de problemas, até desagradável, mas que ainda merece uma oportunidade. O que ocorre é que, ao contrário de outros países da América Latina (no Peru, por exemplo, tomou posse o décimo-segundo presidente em décadas sem que o sol se desvalorizasse nem a inflação disparasse), na Argentina a debilidade política e a instabilidade econômica são indissolúveis. A hiperinflação de 1989 e a explosão da conversibilidade em 2001 foram sedimentando uma memória social que associa as derrotas eleitorais ao caos econômico. A ajuda dos EUA reforçou essa percepção a níveis quase extorsivos: explicitamente, tanto Bessent quanto Trump condicionaram o auxílio a um triunfo libertário – em caso contrário, disse Trump, “deixaria de ser generoso” com a Argentina.

Esse foi o marco em que diversos escândalos que afetaram o governo, e que supostamente prejudicariam seu desempenho eleitoral, passaram a segundo plano, como a fraude com a criptomoeda Libra, áudios que envolviam a irmã do presidente, Karina Milei, em um suposto caso de propinas, e a queda de José Luis Espert, um dos principais candidatos de Milei, denunciado por ter recebido dinheiro, em 2019, de um acusado por narcotráfico nos Estados Unidos.

O caminho do Inca

Esses movimentos circunstanciais se recortam sobre um cenário de fundo, que é o da “peruanização” da sociedade argentina. Trata-se, na realidade, de um termo com um duplo uso: vários funcionários elogiaram o modelo peruano – que combina forte instabilidade política com uma surpreendente estabilidade econômica –, enquanto os críticos do governo de Milei veem o Peru como um exemplo de sociedade desigualitária que não seria desejável imitar.

Mas, antes de desenvolver a ideia, alguns dados para matizá-la. O processo pelo qual a Argentina foi se tornando um país mais desigual, com mais pobreza e informalidade, com uma classe média em retrocesso e serviços públicos insuficientes, está longe de ser total. Em muitos aspectos, a comparação com outros países latino-americanos continua deixando um saldo positivo para a Argentina. A cobertura previdenciária, próxima de 95%, é a mais alta da região, e a principal política de transferências de renda – a Asignación Universal por Hijo – chega a 4,2 milhões de crianças (2,5 milhões de lares recebem, além disso, transferências via Tarjeta Alimentar). A educação alcança padrões comparativamente altos: a taxa líquida de frequência ao ensino médio é de 94%, a segunda mais alta da América Latina, e a cobertura da educação infantil é quase total, 97%[2], além de contar com um sistema de educação superior amplo, vibrante e bastante inclusivo, produto da diversificação das universidades públicas dos últimos 30 anos. As classes médias mantêm um lugar central na vida política e cultural do país: os argentinos realizam 120 visitas ao teatro por cada 1.000 habitantes ao ano, contra 25 do Brasil e 60 do Chile; gastam em média 10 dólares em livros por pessoa ao ano, contra 3 do Brasil e 4 da Colômbia, e vão mais ao cinema (5 vezes ao ano, contra 2 no México)[3]. A vida noturna de Buenos Aires, e em menor medida de outras grandes cidades do país, é lendária, porque há mais dinheiro, por uma tradição cultural de longa data e porque… ainda é segura.

Com efeito, apesar do declínio econômico, das súbitas mudanças de orientação política e da sensação geral de decadência, a Argentina tem um dos índices de homicídios per capita mais baixos da região: 4,2 homicídios a cada 100.000 habitantes, o que situa o país em níveis semelhantes aos da Europa Oriental (como sempre, a média esconde a armadilha da desigualdade: se se considera o mesmo índice nos bairros acomodados de Buenos Aires, ele é similar ao de Madri ou Paris; se se considera o das zonas mais pobres da região metropolitana, poderia assimilar-se aos do Panamá ou da Costa Rica, mas sempre muito distante do Brasil, Colômbia ou México)[4].

Esses dados alentadores referem-se a conquistas do passado que se conseguiu conservar — alto nível educativo, baixa violência social —, mas também a avanços que se obtiveram mais recentemente — a cobertura previdenciária e um piso mínimo, na verdade muito mínimo, de renda. No entanto, isso não deveria ocultar o fato de que, considerada em seu conjunto, a evolução é negativa. Até meados dos anos 70, com efeito, a sociedade argentina era, junto às de Uruguai e Chile, uma das menos desiguais da região, com um índice de Gini de 0,34, próximo ao da Espanha naqueles anos (0,33) e muito inferior ao da maioria dos países latino-americanos. A pobreza era de 6,5% e o desemprego de 2,7%, quase pleno emprego. Com um PIB per capita de 2.200 dólares, a Argentina ostentava o terceiro PIB per capita mais alto da região, superado apenas por Venezuela e Uruguai (mais ou menos o dobro de Brasil, Colômbia ou México)[5].

Essa Argentina foi se desfazendo. Desde que o golpe de Estado de 1976 começou a desmantelar o modelo estatal de industrialização por substituição de importações (que já havia dado mostras de esgotamento), a economia cresce pouco e de maneira muito espasmódica. Períodos limitados de expansão (os primeiros anos do governo de Raúl Alfonsín, o neoliberalismo de 1991 até o Efeito Tequila de 1994, a recuperação kirchnerista de 2003 até a crise financeira de 2009) são sucedidos por crises explosivas (1982, 1989, 2001, 2019). Cada crise deixa a economia vários degraus abaixo e, ainda que com o tempo ela se recupere, não consegue superar o estágio anterior. Entre 1975 e 2025, a economia argentina cresceu 0,55%, contra 2,8% do Chile e 1,3% do Brasil. A Argentina é o único país da região que não duplicou sua riqueza nos últimos 50 anos (o Chile a multiplicou por 3,8)[6]. Se um olhar de longo prazo revela uma trajetória de decadência, um olhar mais curto mostra um processo francamente desolador: desde 2011 até hoje, a economia argentina manteve-se estagnada, ao contrário de uma América Latina que, sem alcançar os recordes do período do boom das commodities, continuou crescendo; nesses mesmos anos, o Chile cresceu 2,8% e o Brasil, 1,4%. Esse estancamento persistente é reflexo de uma volatilidade extrema: a Argentina é, junto com a Venezuela, o único país da região que não conseguiu resolver o problema da inflação e que sofre alterações permanentes do tipo de câmbio.

Seria longo — e não é objeto deste artigo — entender as causas profundas desse obstinado declínio, que não pode ser colocado na mochila de uma determinada orientação ideológica: se nos últimos 50 anos houve governos progressistas e conservadores, ditatoriais e democráticos, nos últimos 15 houve gestões desenvolvimentistas (o segundo governo de Cristina Fernández de Kirchner), moderadamente neoliberais (Mauricio Macri) e moderadamente desenvolvimentistas (Alberto Fernández). As três, em maior ou menor medida, fracassaram. Os últimos três presidentes (Cristina Fernández de Kirchner, Macri, Alberto Fernández) terminaram com o dobro da inflação com a qual assumiram. E os três perderam: Cristina Fernández de Kirchner não conseguiu a eleição de seu candidato em 2015, Macri não pôde se reeleger e Alberto Fernández nem sequer tentou.

Desde o fim do modelo industrialista, a Argentina se sacode ao ritmo do enfrentamento entre duas perspectivas opostas, que conseguem prevalecer durante certo tempo, mas cuja força não é suficiente para impor um modelo de desenvolvimento duradouro: a tradição liberal-aperturista, que aposta no “campo” (agroindústria) como motor do crescimento, e a tradição nacional-desenvolvimentista, defensora da indústria (e dos trabalhadores que ela emprega). Ao longo da história, o campo pressionou por uma economia aberta, que lhe permita exportar livremente as matérias-primas, o que por sua vez implica impostos mais baixos, maior desregulamentação e uma política externa alinhada com as grandes potências (que são seus clientes). A indústria, em contraste, exige proteção, um mercado interno robusto (trabalhadores e classes médias que comprem seus produtos) e uma política externa orientada para a integração regional. Na Argentina, o preço do dólar não é uma variável técnica, mas o coração do conflito distributivo; a dificuldade para resolver essa disputa reflete-se em suas tremendas oscilações e na inflação que as acompanha. O jornalista Martín Rodríguez sintetizou isso na frase: “governar a Argentina é governar o dólar”.

Mas o objetivo deste artigo não é tanto analisar a trajetória decepcionante da economia argentina — o caminho do Inca —, mas sim descrever sua consequência: a erosão progressiva da sociedade igualitária e sua transformação em uma sociedade mais próxima de outras da América Latina; em outras palavras, a “peruanização”.

Peruartina

A desigualdade argentina vem aumentando de maneira constante. O índice de Gini situa-se hoje em 0,42, um nível mais baixo do que o da maioria dos países da região, mas muito mais alto do que o dos anos 70. Paralelamente a esse processo, consolidou-se um núcleo duro de pobreza estrutural em torno de 25%, que pode diminuir após alguns anos de crescimento e disparar na primeira crise, mas que sempre está ali. Tanto a alta desigualdade quanto essa pedra dura da pobreza estavam praticamente ausentes na estrutura social de meio século atrás; mas foram se afirmando e agora não há governo, nem de direita nem de esquerda, que consiga lidar com elas: são traços permanentes da sociedade argentina. Junto a isso, outras duas novidades sociais.

A primeira é a crise dos rendimentos. Ao contrário de outros países da região, historicamente o emprego assalariado formal na Argentina era predominante e desfrutava de ampla cobertura de serviços, altos níveis de sindicalização e um generoso sistema de proteção. Desde meados dos anos 70, essa classe operária relativamente homogênea foi se dividindo em três partes: assalariados formais, assalariados informais e desempregados. Mas ainda assim, aqueles que conseguiam emprego podiam viver relativamente bem, ou pelo menos evitar cair na pobreza. Nos últimos 15 anos, a persistência da inflação e a dificuldade das empresas e do Estado para ajustar os salários ao aumento dos preços criaram uma nova realidade: o trabalhador pobre [7]. Estima-se que 22% dos assalariados argentinos encontram-se hoje abaixo da linha da pobreza — e, ainda mais notável, calcula-se que 9,7% dos assalariados formais sejam pobres[8]. Essa situação, sintetizada na frase “Ao meu salário sobram 15 dias”, levou por sua vez a um recorde de endividamento das famílias, que tomam empréstimos com cartões e carteiras virtuais para pagar gastos correntes.

O segundo traço novo é uma explosão da economia informal, uma das marcas mais chamativas do modelo peruano. Mais do que a pobreza ou a desigualdade, que por outro lado diminuíram, o traço principal da economia peruana é a informalidade. Segundo a Pesquisa Nacional de Domicílios, 75,7% da força de trabalho peruana desempenha empregos informais, 25 ou 30 pontos a mais do que em países latino-americanos comparáveis em termos de PIB per capita, como Colômbia ou Equador. É um mundo de capitalismo popular no qual prosperam personagens como Felicito Yanaqué, o pequeno empresário de transporte piurano que é o “herói discreto” que dá título ao romance de Mario Vargas Llosa. (O fato de que o sucesso empreendedor de Yanaqué seja ensombrecido pela ameaça de alguns mafiosos que exigem que ele pague por proteção é uma amostra das oportunidades que o mercado abre, mas também dos problemas que a desproteção estatal do neoliberalismo acarreta.)

Na Argentina, como em todo país em desenvolvimento, sempre houve bolsões de atividade não registrada, mas a economia desfrutava de níveis de formalização — trabalhista, tributária, previdenciária — bastante altos. Isso se verifica no fato de que as feiras ou mercados populares eram pequenos e marginais, em contraste com os gigantescos mercados populares de Gamarra (Lima), El Alto (Bolívia) ou Tepito (México). Mas hoje, as feiras fazem parte do cenário comercial e da vida cotidiana dos setores populares, desde as mais organizadas, como La Salada, até as mais desordenadas, como a de Solano, ambas na chamada periferia de Buenos Aires.

Essa nova conformação da estrutura social vem consolidando novas subjetividades que contribuem para explicar o triunfo de Milei. Mencionemo-las brevemente, apenas com o objetivo de conectar as mutações sociais com a ascensão da extrema-direita em sua versão libertária. Para os argentinos mais jovens, a ideia de um trabalho formal, com holerite e plenos direitos, é quase uma quimera. Provavelmente nem seus avós, nem seus pais, nem eles mesmos conheceram o décimo terceiro, o plano de saúde[9] ou o sindicato, de modo que o discurso peronista clássico de organização e direitos sociais carece totalmente de sentido. Enquanto isso, Milei propõe liberdade para trabalhar, empreender e ganhar dinheiro — e garante uma inflação em queda que dá previsibilidade a qualquer ganho, por menor que seja. A adesão das novas gerações ao neoliberalismo — e agora ao libertarismo — deve-se menos a uma “penetração ideológica” por meio de algum dispositivo imperialista do que ao resultado do lugar que ocupam no capitalismo globalizado.

O discurso peronista clássico pró-Estado também perde sentido. No meio do século passado, a Argentina foi um dos poucos países da região a construir um Estado de bem-estar, incompleto e cheio de falhas, mas presente. Como resultado do declínio econômico mencionado, esse Estado vem perdendo capacidades. Embora mantenha agências altamente eficientes, como a Administração Nacional da Seguridade Social (Anses), o organismo previdenciário responsável pela Asignación Universal por Hijo (AUH) e que, durante a pandemia, conseguiu implementar em tempo recorde um salário social complementar, o certo é que a saúde e a educação atravessam uma crise de longo prazo, em grande medida por sua transferência aos Estados provinciais, o que aprofundou a desigualdade entre jurisdições e dificultou os esforços dos governos populares para articular uma política nacional de recuperação. Para muitos argentinos, a ideia de um Estado presente, garantidor de direitos e última barreira contra a exclusão e a pobreza soa como um eco distante de algo que talvez existiu em algum momento, mas que não conheceram. Pior ainda: o Estado aparece como algo exclusivo de alguns poucos privilegiados, o que alimenta o discurso de Milei, que chegou a dizer: “Sou um toupeira que vem destruir o Estado por dentro”.

Em amplos setores populares das periferias urbanas empobrecidas, algumas funções tradicionais do Estado são exercidas por associações de bairro, clubes, igrejas evangélicas, pela Igreja católica e até pelo narcotráfico. Sem chegar ao extremo de outros países da região (na Argentina, por exemplo, há poucas “zonas liberadas” do controle estatal), o certo é que a estatalidade foi se deteriorando. A escola pública existe, mas encontra-se muito deteriorada: se parte da classe média foi se inclinando por serviços privados de saúde e educação, os setores populares que podem optam por escolas paroquiais (católicas de baixo custo). Perfurado e diminuído, o Estado aparece então em sua face menos amável: a polícia, vista como vetor de segurança, mas também como perigo ou simplesmente como corrupta e/ou ineficiente, e a autoridade tributária.

O sonho de Milei

O êxito inicial de Milei, que obteve 54% dos votos no segundo turno de 2023, explica-se em parte por sua capacidade de conectar-se com esse novo eleitorado informal, que vive desconectado do Estado, lutando no dia a dia de uma cotidianidade impossível, integrado em sua maioria por homens jovens, ao qual se somou o tradicional voto antiperonista de classe média e alta. Seu primeiro sucesso de gestão — a estabilização da economia e a queda da inflação — foi possível graças a um ajuste inédito na história nacional. Diante daqueles que argumentavam que a sociedade argentina, com sua memória igualitária e tradição de lutas sociais, não toleraria um corte fiscal tão severo, Milei aplicou um ajuste equivalente a 5% do PIB, que incluiu uma queda de 23,3% no poder aquisitivo das aposentadorias no primeiro ano, uma queda de 22% nos salários reais dos funcionários públicos e a paralisação das obras públicas.

Milei entendeu as condições reais em que se encontrava a sociedade argentina, as mudanças estruturais que ela havia experimentado e o profundo mal-estar gerado pelos últimos governos de “profissionais da política”. De pé sobre o terreno lamacento dessa decepção geral com a elite, empunhou a motosserra como sinônimo de ajuste fiscal e denunciou a “casta” como desqualificação da política tradicional, para pôr de pé um programa básico de governo: ordem fiscal, ordem macroeconômica e ordem nas ruas (a repressão ao protesto social e a política de “mão dura” contra o crime, duas questões que o governo deliberadamente confunde em seu discurso, são outros eixos de sua gestão)[10]. Se a isso somarmos a batalha cultural antiprogresso — uma dimensão que Milei ativa e desativa conforme o momento —, o quadro completa uma oferta de governo limitada, mas contundente.

Ao mesmo tempo, o programa econômico de Milei aprofunda o “modelo peruano”. A primarização da produção, a dificuldade de agregar valor às exportações e a consolidação de enclaves de riqueza que pouco se derramam sobre o restante da economia são traços constitutivos desse modelo (apenas o ouro e o cobre explicam 45% das exportações peruanas, e o restante é composto por outros minerais, café, frutas e pescado). O ponto de partida da Argentina é muito diferente. Por mais expansão que tenha ocorrido na fronteira agrícola do monocultivo, o complexo da soja explica apenas 20% das exportações, seguido pela indústria automotiva, o complexo petrolífero-petroquímico e o milho. Ainda hoje, apesar de tudo, entre 25% e 30% das vendas ao exterior são manufaturas de origem industrial. Mas o rumo é claro. Desde a chegada de Milei ao poder, os setores que mais cresceram foram a mineração, o agro e a intermediação financeira, e os que mais caíram foram a construção e a indústria. Segundo dados oficiais, apenas um dos 16 ramos que integram o índice de produção industrial manufatureira cresceu: a refinação de petróleo. Isso, por sua vez, se reflete no emprego. Como explica o especialista Luis Campos, os únicos setores que geram postos de trabalho formal hoje são o agro, a mineração e a pesca, mas não são suficientes para compensar os empregos com carteira assinada perdidos na construção (66.000) e na indústria (29.600). No total, no último ano, foram destruídos cerca de 200.000 empregos formais, que em sua maioria se reconverteram para alguma modalidade desprotegida[11].

O objetivo é claro. O choque de desvalorização já fez seu trabalho de “liquefação” das rendas e redução do gasto público, enquanto o atraso do tipo de câmbio, em combinação com a abertura comercial, produziu uma reconversão produtiva que afeta os setores menos competitivos, que também são mão de obra intensivos. A longo prazo, a aposta do modelo libertário centra-se no agro, nos hidrocarbonetos e na mineração, um pouco da economia do conhecimento, turismo e não muito mais: o sonho de “Peruartina” é o sonho de um país com menos indústria, isto é, menos sindicatos, socialmente mais heterogêneo, sem Estado de bem-estar, com salários mais baixos e maior informalidade. Em suma, Milei chegou ao governo e obteve uma reafirmação política surpreendente porque leu melhor do que ninguém o processo vivido pela sociedade argentina nas últimas décadas; agora, com suas políticas, está consolidando-o.

Referências

[1] Angus Campbell, Philip E. Converse, Warren E. Miller y Donald E. Stokes: The American Voter, University of Chicago Press, Chicago, 1960.

[2] Secretaría de Evaluación e Información Educativa: «Tasas de escolarización. Consideraciones sobre las fuentes y métodos de cálculo», Ministerio de Educación de la Nación, 2023, disponible en www.argentina.gob.ar/sites/default/files/tasa_de_escolarizacion_-_consideraciones_sobre_las_fuentes_y_metodos_de_calculo.pdf

[3] Unesco: UIS Data Browser, disponible en https://databrowser.uis.unesco.org/

[4] Juliana Manjarrés, Christopher Newton y Marina Cavalari: «Balance de InSight Crime de los homicidios en 2024» en InSight Crime, 26/2/2025, disponible en https://insightcrime.org/es/noticias/balance-insight-crime-homicidios-2024/

[5] Fuente: Comisión Económica para América Latina y el Caribe (Cepal).

[6] Fuente: Banco Mundial.

[7] Ernesto Mate y Ana Natalucci: «El trabajador pobre» en Le Monde diplomatique edición Cono Sur N° 275, 5/2022.

[8] Datos de la Encuesta Permanente de Hogares del Indec.

[9] En Argentina, la seguridad social depende de cada sindicato, que controla sus propios servicios de salud mediante las llamadas «obras sociales».

[10] Esto se expresa en el protocolo antipiquetes desplegado por la ministra de Seguridad Patricia Bullrich, que impide cortar calles como forma de protesta.

[11] Lucía Ortega: «Luis Campos: ‘Con la Ley Bases le dieron muchísimo más poder a los empleadores’» en La Izquierda Diario, 9/12/2024.

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