12 Novembro 2025
"Sensibilidade social (teologia espiritual), indignação ética frente à injustiça social (teologia do pecado social) e a opção prático-social em favor dos que têm a sua vida negada (teologia prática) são pressupostos e comprovações de que estamos no caminho correto (teologia dogmática) da compreensão da revelação de Deus", escreve Jung Mo Sung, teólogo católico e cientista da religião.
Eis o artigo.
Na exortação Dilexi Te, que trata sobre “o amor para com os pobres”, o Papa Leão XIV, assumindo o documento preparado pelo Papa Francisco, afirma algo que teologicamente é muito importante para a Igreja e para a comunidade teológica: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes (Mt 25, 40). Não estamos no horizonte da beneficência, mas no da Revelação” (n. 5).
O amor aos pobres e a crítica às injustiças sociais que negam aos pobres o direito de viver com dignidade não é uma mera questão do campo da beneficência ou da teologia moral ou da doutrina social da Igreja. Mas, sim da Revelação. Com isso, esse documento critica a forma “tradicional” moderna de separar
(a) a teologia dogmática ou sistemática, – que trataria do “ser” de Deus e, por isso, seria o mais importante e a que merece, de fato, o título de “teologia” – da
(b) teologia moral ou teologia ética, que seria uma teologia de segunda categoria que aplicaria as teses da teologia dogmática na vida pessoal e na sociedade.
Apesar de que não se diz explicitamente assim, na prática funciona assim nas faculdades de teologia do mundo católico e protestante. E, ao lado desses departamentos de teologia, encontramos o de teologia pastoral ou prática onde se discutiria questões práticas, já bem distantes da teologia dogmática, e o departamento de exegese ou o estudo dos textos bíblicos não muito articulados com temas da dogmática, da moral ou da pastoral.
Essa visão um pouco simplificada da estrutura curricular de uma faculdade de teologia nos tempos de hoje nos ajuda a entender a novidade da afirmação da exortação Dilexi Te de que o tema do amor e cuidado dos pobres é fundamental à compreensão da revelação de Deus. Sem entrar em discussão aqui as razões da divisão de teologia em três ou quatro departamentos que têm dificuldade em dialogar entre si ou de articulá-los em torno de um eixo prático comum, podemos dizer que há um consenso de que o departamento de teologia dogmática/sistemática tem a função de ensinar as características do ser de Deus “em si” e/ou na história humana. E nesse consenso mais amplo, a “opção pelos pobres” pode ser aceita ou não no interior da eclesiologia ou da teologia pastoral. Isto é, essa opção não faria parte da essência do que se discute sobre o “ser” de Deus. Mostrando assim, que podemos ter divergências na eclesiologia ou na teologia moral e continuarmos sem romper com a teologia dogmática.
Os manuais e livros de teologia dogmática usados nas faculdades de teologia ou usados para as pregações ou discussões teológicas pressupõem essa divisão. Em parte, porque a maioria desses livros foi escrita na e para a Europa e/ou os Estados Unidos com a finalidade de justificar a fé cristã em uma sociedade secularizada ou em crise. Por isso, não faz muito sentido para estudantes de teologia, padres e pastores estudarem a relação entre o ser de Deus, que se revela, e o tema do amor aos pobres.
Pessoas formadas nesse horizonte de teologia dogmática não entendem e não aceitam a linha teológico-pastoral assumida pelo Papa Francisco e também agora pelo Papa Leão XIV. Em parte, porque vai contra tudo que estudou ou entende sobre Deus e a revelação. Por isso, a frase “Não estamos no horizonte da beneficência, mas no da Revelação” é tão importante e conflitante.
Para formação teológica “tradicional”, a Igreja pode e é bom que ajude os pobres porque essas “beneficências” seriam uma “prova” de que somos de uma igreja e religião de pessoas “boas”. Mas, essa ajuda não define se a nossa teologia é correta ou não no que se refere ao ser Deus. Porém, o Papa Francisco e o Papa Leão XIV dizem algo diferente. Para eles, amar aos pobres e fazer opções práticas para defender a vida dos pobres é a revelação do quem Deus é. Isto é, na opção pelos pobres e vítimas de injustiça entendemos corretamente a revelação do ser de Deus.
Deus se nos revela na pessoa de Jesus, Jesus esse que amou aos pobres e a todas as pessoas sofridas. Nem todas as imagens de deuses anunciados nas igrejas ou nas religiões são verdadeiramente de Deus. Muitas delas são apenas ídolos, deus-falso que é insensível aos sofrimentos dos pobres e oprimidos. Uma imagem do ser de Deus que justifica as injustiças do mundo é apenas de um ídolo. Por isso, os temas da opção pelos pobres e das estruturas do pecado social – temas fundamentais no Dilexi Te – estão diretamente ligados à revelação do quem e como Deus é.
Sensibilidade social (teologia espiritual), indignação ética frente à injustiça social (teologia do pecado social) e a opção prático-social em favor dos que têm a sua vida negada (teologia prática) são pressupostos e comprovações de que estamos no caminho correto (teologia dogmática) da compreensão da revelação de Deus.
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