30 Outubro 2025
Quando os megaprojetos de energia solar são controlados por corporações multinacionais, as desigualdades sociais, econômicas e de gênero aumentam. Em resposta, as Comunidades de Energia promovem energia justa, coletiva e sustentável, inspiradas pelo ecofeminismo.
A opinião é de Teodora Castro Hernández, membro do Conselho de Administração da EnVerde, e Esther Párraga Gómez, secretária da EnVerde, em artigo publicado por El Salto, 30-10-2025.
Eis o artigo.
Para a EnVerde, um projeto cooperativo da Estremadura, Espanha, focado no acesso a energia 100% renovável, discutir painéis solares significa mudar nossa perspectiva sobre um produto aparentemente neutro que vemos proliferar na Estremadura. Seu uso exacerba as desigualdades econômicas, de gênero, territoriais e ambientais, bem como a pobreza energética, entre outras, quando concentrado em megaprojetos de corporações multinacionais. Os riscos ambientais, sociais e econômicos desses projetos de grande escala incentivam novas iniciativas para a geração, distribuição e consumo de energia por meio de opções menos prejudiciais às pessoas e ao meio ambiente. A pobreza energética na esfera social e as mudanças climáticas na esfera ambiental são duas das consequências desse modelo.
Não basta simplesmente consumir energia renovável da mesma empresa que lhe vendeu combustíveis fósseis ontem, e em ambos os casos, com o mesmo objetivo de lucro. Tampouco basta manter a ideia de que os métodos de produção de energia são neutros em termos de gênero. Portanto, o compromisso com uma transição energética deve surgir de iniciativas mais ecológicas e socialmente sustentáveis, como a energia fotovoltaica.
Redirecionar nosso foco para uma transição energética justa, equitativa e sustentável significa abraçar o ecofeminismo: uma corrente filosófica, um movimento social e uma prática política que une o cuidado com as pessoas ao cuidado com o planeta. Alicia H. Puleo, uma filósofa de destaque na interseção entre feminismo e ecologia, questiona se nossa visão da natureza é influenciada pelo gênero, e sua resposta é clara: “Adotar uma perspectiva ecofeminista implica que a política ambiental não pode ser feita às custas das mulheres, ou seja, favorecendo papéis tradicionais”. Assim, a crítica feminista ao sistema patriarcal se entrelaça com a crítica derivada do ambientalismo e sua defesa da natureza.
Yayo Herrero, uma antropóloga de destaque nessa área, expressa uma visão semelhante. O feminismo se concentra nas tarefas que sustentam a vida, como o trabalho de cuidado, enquanto o ambientalismo se concentra nas consequências do atual modelo de crescimento econômico capitalista para as pessoas e a natureza. O diálogo entre essas duas correntes de pensamento desafia o sistema patriarcal e o capitalismo em defesa de uma sociedade igualitária e ecológica.
Dois pilares principais sustentam essa filosofia: interdependência e ecodependência. O primeiro relaciona-se à necessidade genuinamente humana de ser cuidado e de receber cuidados. Esse conceito defende uma sociedade igualitária que coloca as pessoas no centro da vida, baseada no respeito aos direitos humanos. Essa premissa torna-se urgente quando percebemos como os efeitos catastróficos das mudanças climáticas estão ampliando as desigualdades entre pessoas e regiões. O segundo refere-se à natureza, ou seja, aos recursos que encontramos nela e que precisamos para sobreviver. Esses recursos são limitados e finitos, embora o sistema capitalista (e o consumismo desenfreado que ele fomenta) nos leve a crer que sua disponibilidade é ilimitada.
O ecofeminismo deu origem a iniciativas que geram processos de transição alternativos, priorizando o desenvolvimento humano e sustentável. Uma dessas opções é a criação de Comunidades Energéticas. Estas são definidas como grupos de pessoas (indivíduos, pequenas empresas e/ou organizações locais) que se unem para produzir, gerir e consumir coletivamente e de forma sustentável a sua própria energia. O seu principal objetivo é promover o uso de energias renováveis e reduzir a dependência de fontes tradicionais. Apresentam-se também como uma das alternativas com maior impacto ambiental positivo.
Todos os modelos de Comunidades Energéticas compartilham o objetivo comum de reduzir os custos de energia para os usuários. Muitas comunidades existentes estão ligadas a grandes empresas de eletricidade, impulsionadas pelo desejo de manter um oligopólio e aumentar os lucros. Cada vez mais, outras promovem uma transição energética justa. Seguindo essa linha, e em consonância com o Ecofeminismo, a cooperativa EnVerde promove e apoia grupos de pessoas na região na criação de Comunidades Energéticas. É importante lembrar que o Ecofeminismo não é apenas uma corrente de pensamento, mas também um movimento social e uma prática política.
Este processo, que como vimos, rompe, ou deveria romper, com os sistemas patriarcais e capitalistas, não pode ser realizado sem a participação das mulheres. Pelo contrário, a sua participação nas Comunidades Energéticas é essencial para garantir a igualdade e prevenir a exclusão social. Isto é reconhecido por regulamentações internacionais como o Acordo de Paris, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, o Marco de Sendai para a Redução do Risco de Desastres (2015-2030) e a Estratégia para a Igualdade de Género 2020-2025. Na Espanha, temos a Lei da Igualdade e a Estratégia Espanhola para uma Transição Justa, para citar apenas algumas das regulamentações mais relevantes. A EnVerde também contribuiu ao aprovar, na sua última Assembleia, o primeiro Plano de Igualdade Social, um guia para a transversalização da igualdade de gênero em todas as áreas de atuação da cooperativa.
Comunidades energéticas, lideradas por cidadãos e caracterizadas pela colaboração intersetorial, representam pequenas revoluções num contexto em que os argumentos negacionistas ganham terreno. Em contrapartida, a democracia participativa, com a implementação de novos modelos de empoderamento e governança, a democratização da energia para combater a exclusão e a pobreza energética, e a sustentabilidade ecológica são essenciais para uma transição energética justa, equitativa e sustentável.
Ao observarmos parques fotovoltaicos (fazendas solares, campos solares são os eufemismos usados por grandes empresas), devemos nos perguntar se este é o modelo de transição energética que desejamos seguir. Se a resposta for que outra fonte de energia é possível, não devemos permitir que as multinacionais deste setor decidam o nosso futuro.
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