20 Outubro 2025
"O que mudou, fazendo que a opinião pública, que apesar de tudo tinha visto os bombardeios como uma parte dolorosa, mas "normal" de uma guerra, agora se revoltasse diante da fome? Por que fotos de crianças desnutridas de Gaza foram aparecendo cada vez mais ao lado de fotos de reféns durante manifestações israelenses contra o governo?", escreve Anna Foa, estudiosa da história judaica e da memória do Holocausto, em artigo publicado por La Stampa, 19-10-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Fala-se muito sobre a fome, por ocasião do 80º aniversário da FAO, celebrado em Roma com grande ênfase, na presença do Presidente Mattarella e do Papa Leão. Ambos enfatizaram os "novos cenários de carestia" (Mattarella) e o "uso da fome como arma de guerra" (Papa Leão). De fato, a fome tem sido protagonista nos últimos meses — e ainda é — em pelo menos um dos cenários de guerra destes tempos terríveis, Gaza, com a recusa de Israel em permitir a entrada de suprimentos suficientes na cidade para aquela população já dizimada pelas bombas. E vimos as cenas horríveis de civis estendendo uma tigela para conseguir pelo menos um pouco de comida, enquanto a comida apodrece intocada nas fronteiras da Faixa.
O uso da fome nas guerras e como arma de guerra em si não é novo. Em todos os cercos das cidades, da Idade Média à Segunda Guerra Mundial, nas cidades sitiadas se morria de fome e as lendas, ou aquelas que gostaríamos que fossem apenas lendas, nos falam de canibalismo, de crianças devoradas pelos pais. É o "da fome mais que a dor, pôde a agonia" de Dante, pelo menos em uma de suas interpretações. A fome acompanha a guerra, tanto que, assim que sopram ventos da guerra que poderiam nos tocar, imediatamente esvaziamos as prateleiras dos supermercados.
De fome se fala muito nas memórias da Segunda Guerra Mundial, embora para muitos fosse uma fome temperada pelo mercado negro. Mas os primeiros sobreviventes dos campos nazistas ouviram muitas vezes contar daqueles que haviam vivido mais ou menos tranquilos em suas casas que eles também haviam padecido de fome.
Depois, há a fome do Terceiro Mundo, basta pensar na terrível carestia do Biafra, não exatamente uma arma de guerra, mas, ainda assim, induzida por uma guerra e pelos bloqueios de suprimentos. E depois há a fome na Ucrânia na década de 1930, o Holodomor, quando havia as colheitas mas eram destinadas ao resto da URSS e os famintos eram até proibidos de deixar o país. Mas ali, se falou, com razão, de genocídio.
E então, se a fome paira à nossa volta, seja como realidade ou como espectro, por que a carestia induzida nos últimos meses por Israel, e insistentemente negada pelo governo de Bibi, nos causou tamanha impressão? Por que, com a retomada da guerra em março de 2025 e o bloqueio quase total de suprimentos, aquela carestia induzida, com caminhões parados atrás da fronteira, despertou a indignação de povos e governos?
O que mudou, fazendo que a opinião pública, que apesar de tudo tinha visto os bombardeios como uma parte dolorosa, mas "normal" de uma guerra, agora se revoltasse diante da fome? Por que fotos de crianças desnutridas de Gaza foram aparecendo cada vez mais ao lado de fotos de reféns durante manifestações israelenses contra o governo?
Essa diferença de percepção em relação a duas maneiras diferentes de infligir a morte me impressiona, e não tenho certeza de ter respostas. Talvez seja porque a morte por fome atinge primeiro as crianças e é longa e dolorosa. Talvez seja justamente pelo antigo fantasma da carestia que nos aterroriza, e talvez seja a fartura de alimentos que nessa parte do mundo nos torna a morte por fome tão inexplicável e particularmente cruel. Enquanto nós buscamos constantemente novas dietas, eles literalmente morrem de fome. Talvez seja a nossa complicada relação com a comida, que oscila entre anorexia e bulimia, que torna aquela morte inaceitável.
Seja qual for o motivo, aqueles que paravam os caminhões e impediam que a comida chegasse aos seus destinatários rapidamente entenderam que, se com as bombas ainda se podia falar em "danos colaterais", com a fome isso era impossível, que a conversa de deixar uma população inteira morrendo de fome para impedir ao Hamas de administrar as ajudas era absurda. E então simplesmente se começou a negar: "A fome não existe, nunca existiu." "Vejam como estão gordos", dizem as vozes cínicas daqueles prontos a usar a fita métrica para medir o definhamento dos palestinos em Gaza. E enquanto isso, os hospitais nos contam outra história, mas, como se sabe, os médicos, também na Europa, estão todos do lado do Hamas.
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