07 Outubro 2025
Vivemos em tempos em que a verdade está sitiada e, para Javier Cercas, a coragem civil é a virtude indispensável para sobreviver a esta época de instabilidade. Em Lucca, no Festival Pianeta Terra, o escritor espanhol destrinchou as últimas perguntas para um mundo instável. Nesta entrevista, Cercas, um dos mais lúcidos na descrição dos pontos de ruptura da história, parte do momento em que a Espanha correu o risco de perder sua democracia. Ele o utiliza como paradigma para tentar se orientar em um presente frágil.
A entrevista é de Pino Di Blasio, publicada por La Stampa, 06-08-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Em seu "Anatomia de um Instante", você narrou um momento crucial na democracia espanhola. Hoje, o mundo assiste a uma nova tentação autocrática: de Trump a Putin, de Xi Jinping a Erdogan. O que falta às democracias para resistir a essa onda?
Mais que uma tentação, eu o definiria um tsunami autocrático. Tudo começou com a crise de 2008, comparável apenas à de 1929, que levou à ascensão ao poder de regimes totalitários, que então desencadearam a Segunda Guerra Mundial. Não uso o termo fascismo para definir essas autocracias; prefiro o rótulo de nacional-populismo. Aprendemos a derrotar os fascismos em 1945, mas ainda não sabemos como derrotar o nacional-populismo. É mais perigoso que o fascismo; é uma máscara e ainda não mostrou sua verdadeira cara. E o símbolo disso é Donald Trump.
Trump está no centro do debate mundial. Sua ascensão, sua linguagem e suas ações são um fenômeno estadunidense ou o sinal de uma profunda crise no Ocidente liberal?
Não é de forma alguma uma crise exclusiva dos Estados Unidos, mas o centro da nova tentação autocrática. Como podemos combater essa onda? A Europa deve realmente se unir, tornar-se uma União real e não continuar sendo uma confederação. A UE é um grande bastião para a democracia no mundo; para defendê-la eficazmente, deve se federar para conter todos os tipos de nacionalismo. Que também estão se infiltrando na Europa.
Você escreveu que "verdade e justiça são revolucionárias". Hoje, parecem palavras vazias, usadas até mesmo pelos populismos. Como democracia.
Existem muitas diferenças entre nacional-populismo e fascismo. A mais evidente é que, enquanto todos os fascismos queriam destruir abertamente as democracias, os novos autocratas as usam para destruí-las a partir de dentro, para esvaziá-las de significado. Aqueles que invadiram o Capitólio o fizeram em nome de um suposto voto traído, em defesa da democracia.
Como se defende a verdade em tempos de manipulação global?
Muito fácil, dizendo a verdade e o que está acontecendo. Hoje acreditamos que se contam mais mentiras do que no passado. Isso não é verdade; o poder sempre mentiu. A mentira é a ferramenta mais poderosa de dominação e hoje tem uma capacidade de se espalhar como nunca antes, graças às redes sociais. Por isso é mais complicado contar a verdade, mas é essencial. O Evangelho diz que a verdade nos libertará, o poder quer nos escravizar por meio das mentiras. Com as mídias sociais, criamos monstros, as Big Techs têm um poder enorme, precisamos encontrar uma maneira de controlar esses monstros.
O Papa Francisco denunciou a economia do descarte, as finanças predatórias e as desigualdades. O Papa Leão XIV clama pelo fim das guerras. Mas quem pode mudar a situação e se opor ao enorme poder das Big Techs? Quem pode imitar Theodore Roosevelt, que destruiu os gigantes dos monopólios?
O Papa não tem poder real. O Papa Leão gritou 'Chega de guerras' três vezes, e nenhuma guerra parou. Muitas pessoas dizem coisas justas, mas a situação não muda. É uma tarefa que cabe a todos, ninguém excluído. Os movimentos populares são os únicos que pressionam os políticos a agir. A UE queria taxar os gigantes da tecnologia, provocando a ira de Trump. Isso prova que a Europa ainda tem muito poder; continua sendo um perigo para Trump e Putin. Precisa encontrar a coragem para usá-lo.
Em um cenário marcado por guerras, crise climática e colapso social, existe uma ideia de "heroísmo civil"? Quem são hoje os Suárez, Santiago Carrillo e Gutiérrez Mellado?
Não podemos saber no presente; descobriremos no futuro. Heróis civis são aqueles capazes de dizer não; são homens rebeldes. Não por dizer não aos outros, mas aos seus. Esses três são ‘heróis da traição’, parece um oximoro. O general Gutiérrez Mellado disse não aos militares de Franco para criar um exército democrático, e ele era um militar franquista. Santiago Carrillo, secretário do Partido Comunista Espanhol, disse não a todos os símbolos republicanos, à ditadura do proletariado e à bandeira, porque para ele a escolha não era entre república e monarquia, mas entre democracia e ditadura. Adolfo Suárez foi considerado o maior traidor de todos: franquista por toda a sua vida, aboliu o franquismo, legalizou o Partido Comunista e convocou eleições livres. A virtude fundamental para criar um mundo novo é a coragem; sem coragem, todas as outras são inúteis.
Qual é a última pergunta em um mundo instável?
No meu livro El loco de Dios en el fin del mundo, fiz a mim mesmo a pergunta fundamental: existe vida após a morte? Os crentes têm a resposta, quem não crê, não. Eu me dei uma resposta: tenho ojeriza à morte.
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