Como a indústria do cigarro planeja lavouras para vapes no Brasil

Foto: Mylene2401/Pixabay

26 Setembro 2025

Empresas de tabaco prometem “nova fonte de renda” para agricultores com nicotina para cigarros eletrônicos. Porém, os vapes exigem pouquíssimos agricultores e fumo diferente dos cultivados no país.

A reportagem é de Pedro Nakamura e Raquel Torres, publicada por O Joio e o Trigo e reproduzida por Extra Classe, 24-09-2025.

No fim da década de 1970, o veterano Benício Werner, hoje diretor da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) há 50 anos, levou cigarros a uma farmácia de manipulação. A meta era descobrir quanto de tabaco havia neles e cruzar o dado com números de vendas. “Se você sabe uma média, consegue calcular e alertar o produtor”, explica. “Nós temos que saber quanto há de demanda para adequar a produção.” É a lógica de mercado: uma oferta controlada de fumo significa melhor preço na hora do agricultor vender a folha.

Só que com o avanço global de cigarros eletrônicos, as regras mudaram. Proibidos no Brasil desde 2009 por decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), eles têm baterias e bobinas no lugar de papel e filtro. Também é difícil saber se há tabaco neles. Muitos usam nicotina, a substância altamente viciante que está na folha e no cigarro comum. No vape, ela é misturada a químicos e sabores, mas não necessariamente é extraída da planta do fumo. Pode vir de outras folhas ricas na molécula ou ser sintetizada em laboratório.

A indústria do cigarro, que poderia esclarecer produtores sobre os impactos da novidade no cultivo, não se importa de mantê-los no escuro. “A parte de conhecimento técnico, informações precisas, tudo isso é uma incógnita muito grande para nós”, disse ao Joio o presidente da Afubra, Marcílio Drescher. A entidade de classe, criada para garantir seguro rural a fumicultores nos anos 1950, defende a liberação desses produtos desde que eles usem tabaco nacional e os produtores não percam sua demanda. “Não sabemos exatamente como a indústria quer trazer essa nicotina para o mercado”, afirma.

Por que importa?

No país, esses produtos – todos ilegais – têm uso mensal por 2,2% dos brasileiros, cerca de 4,2 milhões de pessoas, segundo o Ministério da Justiça. De olho nesse mercado, empresas como Philip Morris International (PMI), a dona do Marlboro, e British American Tobacco (BAT), fabricante de marcas como Kent e Lucky Strike, têm feito um lobby pesado contra as restrições da Anvisa. As duas gigantes do fumo dizem que os vapes trariam mais renda aos agricultores.

“Para nós, e inclusive (para) a fumicultura, seria muito benéfica a extração dessa nicotina no Brasil”, disse um diretor da BAT, Lauro Anhezini Júnior, em 2023, durante audiência no Senado.

Uma série de documentos internos da fabricante norte-americana de cigarros eletrônicos JUUL revisados pelo Joio, no entanto, revela que fumicultores brasileiros têm muito a perder com o avanço desses produtos. São atas de reuniões, e-mails, slides e planilhas disponibilizados pelo site Truth Tobacco Industry Documents, da Universidade da Califórnia, que reúne arquivos do setor obtidos em ações judiciais. Nos Estados Unidos, a JUUL pagou mais de 460 milhões de dólares em indenizações por viciar jovens em vapes. Uma das punições foi abrir ao público seus dados internos.

Vários desses documentos tratam de negociações feitas no Brasil. Em 2019, uma das principais fornecedoras de tabaco para a indústria do cigarro, a multinacional Universal Leaf, que tem sua maior unidade de pesquisa agronômica do mundo no país e tem a BAT entre seus clientes, propôs abastecer os vapes da JUUL com fumo brasileiro. A reportagem teve acesso a um arquivo que detalha o plano, além de estimativas e levantamentos sobre como seria comprar o fumo nacional.

O projeto incluía restringir a produção voltada aos eletrônicos para agricultores “específicos” que plantariam “safras de alta nicotina”. No Brasil, a produção de fumo opera em um sistema integrado em que as fumageiras decidem quais variedades os fumicultores “contratados” devem plantar e quais diretrizes seguir. Elas fornecem insumos, sementes, treinamento e descontam esse custo do pagamento pelo fumo ao fim da safra. Ou seja: apenas agricultores selecionados entrariam neste mercado.

Hoje, são mais de 138 mil produtores de tabaco no país, a maioria pequenos agricultores da região Sul – por volta de 24 mil deles “integrados” da Universal Leaf. Segundo as estimativas calculadas pela reportagem, cerca de 600 – menos de 0,5% dos fumicultores brasileiros – já seriam suficientes para abastecer a operação global de uma marca de grande porte, como a JUUL.

No total, 1,6 mil toneladas de fumo do tipo burley, uma variedade cujo teor de nicotina é o dobro do virgínia, o mais plantado do país, garantiriam 100 toneladas de nicotina pura. Isso corresponde a menos de 3% da produção nacional de burley no Brasil

Como o consumo de cigarros vem caindo no mundo inteiro, o setor busca maneiras de frear a queda em seus lucros no longo prazo. Por isso, cigarreiras têm apostado em novos produtos, como dispositivos eletrônicos. Só que esse “bote salva-vidas” não acomoda a fumicultura.

No papel, as multinacionais prometem incentivar fumantes a abandonarem o cigarro comum, e a apostarem em alternativas “menos nocivas”. A BAT disse que até 2035 pretende que metade dos seus lucros venha de novos produtos, como vapes e sachês. Em 2024, esta receita era de 13%.

Já a Philip Morris diz estar “determinada a fazer algo bastante drástico – substituir os cigarros pelos produtos sem fumaça”, segundo e-mails enviados ao Ministério da Justiça com pedidos de reunião para apresentar a “missão e estratégia” da empresa ao governo brasileiro. A meta global da multinacional de se tornar uma empresa “livre de fumaça” foi anunciada em 2016. Em 2023, a companhia disse ter a meta de que sachês e vapes respondam por 2/3 de seus lucros até 2030.

Em termos de impactos para o campo, o plano a longo prazo dessas empresas inclui impulsionar a troca de um cultivo que demanda 138 mil fumicultores pelo que exige algumas centenas de produtores.

Em outubro de 2024, o Joio publicou detalhes de um outro estudo interno da JUUL que identificou que, conforme a demanda por eletrônicos abocanhe a de cigarros comuns globalmente, vapes devem gerar só 24,8 mil empregos no campo de 2015 até 2045. Por outro lado, o setor perderia três milhões de empregos na fumicultura ao longo do caminho. “O sucesso comercial da entrada da JUUL em novos mercados vai substituir o tabaco produzido localmente por nicotina fornecida globalmente”, apostou um dos executivos da empresa na época.

Arte: O Joio e O Trigo

Arte: O Joio e o Trigo 

As diferenças são tão gritantes porque, como não há combustão no cigarro eletrônico, as substâncias são inaladas de uma forma mais eficiente. O tipo de nicotina usado no vape – o sal de nicotina – também é mais viciante do que o encontrado no cigarro comum. Ao todo, em uma comparação direta entre um pod e um maço, o dispositivo usa até 24 vezes menos folhas de tabaco, indicam os cálculos da JUUL revisados pelo Joio.

As estimativas de poucos empregos gerados pelo vape contradizem o discurso oficial do setor no Brasil, que promete que os dispositivos trarão mais empregos à agricultura familiar se forem liberados. Um estudo feito pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG), mas pago e divulgado pela BAT em 2024, diz que legalizá-los poderia gerar até 124 mil empregos no país, inclusive no campo.

O Joio aplicou os mesmos cálculos usados nas estimativas da JUUL para a demanda projetada da BAT e chegou a números muito menores: cerca de 90 produtores já dariam conta da demanda nacional de nicotina projetada pela empresa.

O cenário é tão drástico que, mesmo baixíssima, essa estimativa pode estar superestimada. Isso porque o levantamento da cigarreira usa um cenário hipotético que ignora o peso do contrabando no consumo de cigarros eletrônicos – e assume que, se o Brasil legalizá-los, 100% do mercado será de empresas formais, o que é fantasioso.

No mundo inteiro, vapes ilícitos – fabricados na China a baixíssimo custo – costumam dominar os mercados. Nos EUA, por exemplo, 86% das vendas de dispositivos eletrônicos são de produtos ilegais, segundo a Truth Initiative, uma tradicional ONG antitabagista norte-americana.

O estudo da BAT, por exemplo, trabalha com estimativas de que um produto regular custaria em média R$ 150. Já um levantamento feito por uma equipe da Universidade de São Paulo (USP), pago pela Philip Morris, estimou que cigarros eletrônicos legalizados poderiam custar entre R$ 143 e R$ 429. Hoje, no Paraguai, é possível encontrar vapes de nicotina sintética por preços tão baixos quanto R$ 6.

A Universal Leaf não respondeu à tentativa de contato do Joio por meio de um formulário em seu site. A BAT, por meio de sua assessoria de imprensa, forneceu uma cópia do relatório produzido pela FIEMG. No entanto, a empresa preferiu não responder às dúvidas encaminhadas pela reportagem. Já a Philip Morris ignorou os contatos da equipe.

Em maio de 2019, um trio de funcionários da JUUL desembarcou em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, cidade tida como a “capital nacional do tabaco” por abrigar multinacionais do fumo e entidades do setor, como a Afubra. E-mails revisados pela reportagem mostram que, a convite da Universal Leaf, os três visitaram fazendas, unidades de processamento e centros de pesquisa da empresa.

O gancho da viagem partiu de uma proposta da fumageira batizada de “o futuro da nicotina”. Em uma apresentação obtida pelo Joio, a Universal Leaf lista o valor do tabaco, o teor da nicotina na folha e os custos de extração e purificação como os três principais fatores que compõem o “preço da nicotina”. Um gráfico mostra variedades de fumo e os países onde são plantadas. Quatro das cinco opções mais baratas eram da Índia. Em sétimo lugar, estava o Brasil. Só que, mesmo longe de ter o melhor custo, a Universal Leaf preferia o país latino-americano e queria convencer a JUUL disto.

“Por que o Brasil? Primeiro: teor de nicotina (da folha) mais alto, local da unidade de extração, sem problemas com licenças, lançamento de produto mais rápido, conexões políticas fortes”, disseram diretores da empresa ao trio da marca de vapes, segundo a ata de uma das reuniões realizadas na cidade gaúcha. Ou seja: no país, a marca teria uma logística favorável, não enfrentaria problemas regulatórios para extrair nicotina da folha e haveria apoio político.

Arte: O Joio e O Trigo

Em um segundo documento, um funcionário da JUUL registrou anotações do encontro que detalham como a Universal Leaf pretendia colocar seus fumicultores integrados à disposição da empresa. “(A Universal) isolaria fazendeiros para cultivar safras de alta nicotina”, escreveu. “Poderemos isolar (a produção) para fazendas específicas – fazendas JUUL?”, ele prossegue. Em seguida, as anotações indicam que sim.Para isso, seria selecionado o fumo escuro do tipo burley. Essa variedade de tabaco é plantada por menos de 25% dos produtores brasileiros e, no geral, em regiões próximas à fronteira com a Argentina. Ao contrário do fumo do tipo virgínia, o mais cultivado e exportado do país, o burley é curado em galpões, e não em estufas à lenha, além de ser colhido inteiro, não folha por folha. O preço pago ao produtor, na média, é 14% menor. Nesse caso, o documento falava precisamente da variedade KY 171, que não é cultivada no Brasil nem tem cadastro junto ao Ministério da Agricultura (Mapa). Só que o plano da Universal Leaf não vingou. A JUUL preferiu, no curto prazo, usar nicotina indiana, feita a baixo custo com as sobras do preparo industrial do bidi, um fumo típico do país asiático, e apostar na produção em laboratório de nicotina sintética no longo prazo. A visita ao Rio Grande do Sul, na realidade, era apenas para aprender sobre o mercado. “Essa viagem é mais para visualizarmos o processo de extração da folha deles (da Universal)”, afirmou um funcionário da JUUL em uma troca de e-mails que discutiu a vinda ao país.

Naquele momento, a empresa até avaliava contratar a Universal Leaf como fornecedora, mas preferia se instalar na Ásia, em localidades como Filipinas ou Indonésia. Também não ajudou o fato de cigarros eletrônicos serem proibidos no país desde 2009. “Kevin (Burns, CEO da empresa na época) não está otimista com o Brasil e, basicamente, o vê como um sumidouro de dinheiro”, escreveu uma executiva da JUUL ao longo da série de e-mails.

Um dos fatores que convenceu a JUUL a preferir a nicotina sintética à extraída do tabaco no longo prazo foi justamente o preço. Na época, a substância produzida no laboratório era mais cara devido à falta de escala – a maior parte do mercado até hoje é dominada pelo bidi indiano de baixo custo. As planilhas da JUUL indicam, contudo, que para a demanda que a marca projetava, enquanto a nicotina da Universal previa custos de até 350 dólares o quilo (cerca de R$ 1,9 mil), a sintética sairia por volta de 300 dólares (algo em torno de R$ 1,6 mil) se fosse comprada em volumes maiores.

Uma fonte ligada a uma fabricante de nicotina entrevistada pela reportagem disse que hoje, seis anos depois das estimativas da JUUL, os custos da produção de nicotina sintética estão mais baixos. São os preços menores dela, por exemplo, que garantem escala e competitividade para vapes produzidos na China, que dominam mesmo mercados legais, como o dos EUA, e ilegais, como o brasileiro.

“A nicotina sintética é muito mais barata”, confirmou ao Joio o consultor sênior para a indústria da nicotina Erwin Henriquez, da Euromonitor, uma consultoria internacional de inteligência de negócios que assessora várias indústrias, como a do tabaco. “Isso, na verdade, é um dos motivos pelos quais produtos como os vapes descartáveis conseguem ser produzidos em grande escala e com tanta rapidez.”

Na avaliação de Henriquez, no longo prazo, nicotina sintética e a extraída do fumo devem atrair diferentes perfis de consumidores, e a própria ideia de tabaco como sinônimo da substância vai perder espaço. “A indústria deve começar a tentar desvincular a imagem da nicotina da imagem do tabaco, numa tentativa de apresentar a substância de forma positiva”, diz o consultor. “De forma geral, acredito que a participação da nicotina sintética no mercado global cresça de forma constante nos próximos cinco anos, conquistando uma fatia significativa, especialmente à medida que a indústria continua a desvincular o consumo de nicotina da queima e, cada vez mais, do próprio tabaco.”

No entanto, o impacto no curto prazo será mínimo. “As grandes empresas de tabaco têm um controle muito forte sobre a cadeia global de fornecimento da folha de tabaco, então é do interesse delas manter essa estrutura como uma barreira de entrada para novos concorrentes menores que possam ameaçar sua posição”, ele avalia. Além disso, reguladores podem tentar favorecer a nicotina extraída do fumo para evitar o avanço da produzida em laboratório.

O projeto da Universal Leaf, no entanto, não morreu com a recusa da JUUL. Na equipe da multinacional que participou das reuniões de 2019 estava Valmor Thesing, diretor administrativo da companhia.

Anos depois, em 2024, ele deixou o cargo para assumir a presidência do Sindicato Interestadual das Indústrias do Tabaco (SindiTabaco), entidade que reúne as principais empresas atuantes no setor no Brasil, como a própria Universal Leaf, e é uma das responsáveis pelo lobby do fumo junto a políticos, governos e à imprensa. Ao Joio, o sindicato confirmou a participação de Thesing nas reuniões com a marca de vapes.

“Naquele momento, a JUUL estava prospectando, a nível internacional, futuros fornecedores para a matéria-prima e uma das empresas selecionadas foi a Universal Leaf através de sua matriz nos EUA”, disse a entidade em nota. “Em razão de compromissos contratuais de confidencialidade, que continuam vigentes após o desligamento do executivo, não há comentários a se fazer sobre o conteúdo de reuniões internas da empresa.”

Desde o momento em que assumiu a presidência do SindiTabaco, no ano passado, um dos principais argumentos de Thesing para a legalização dos cigarros eletrônicos é o de que eles abririam o mercado brasileiro para a produção de nicotina extraída do fumo.

“Penso que o Brasil está perdendo uma oportunidade muito grande de se inserir nesse novo mercado não liberando os produtos finais (vapes) aqui no Brasil”, disse Thesing ao Joio no fim de março, semanas antes de os documentos que detalham seu encontro com a JUUL terem sido disponibilizados pela Truth Tobacco Industry. “Falo da produção da nicotina líquida e outros subprodutos da folha que o Brasil tem em abundância, e nós estamos discutindo isso em função de uma resolução da Anvisa que não faz o menor sentido”, afirmou.

À reportagem, no entanto, a agência reguladora disse que “não estabelece regras para a forma como a nicotina é extraída da planta” e nem “regulamenta a extração da substância”. Ou seja, o país não teria restrições à produção e exportação da nicotina pura, apenas à “conversão em produto fumígeno”. Isto é, à mistura aos solventes que produzem os líquidos dos dispositivos eletrônicos.

A situação brasileira é próxima à da Índia, a maior fabricante desse insumo no mundo. Vapes foram banidos do país em 2019, mas é a nicotina de origem indiana que abastece a maior parte do mercado global. A conversão da nicotina do país em líquidos para vapes costuma ser feita em fábricas na China, EUA e Suíça.

O SindiTabaco, no entanto, culpa a Anvisa pela “oportunidade perdida”. A entidade afirmou ao Joio que, ainda que a agência não vede a extração da nicotina em si, ela proíbe a exportação se o destino comercial da matéria-prima for a produção de líquidos de vapes. Na mesma época em que a Universal Leaf apresentou seu plano à JUUL, a empresa teria buscado autorização da Anvisa para produzir nicotina líquida e exportá-la, mas o pedido teria sido negado e “o estudo de prospecção” encerrado, disse o sindicato.

Além disso, a entidade afirmou que a preferência pelo burley “seria uma oportunidade para esses produtores, que vinham vendo uma diminuição da demanda, de terem oportunidade para continuarem produzindo”.

A promessa de renda ao campo com a extração de nicotina virou argumento para a liberação dos vapes na boca de políticos que dizem defender os fumicultores. O discurso colou, por exemplo, junto à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, estado que é o maior produtor de fumo do país, responsável por cerca de 40% da produção brasileira.

Arte: O Joio e O Trigo

No início de julho deste ano, deputados estaduais gaúchos aprovaram um relatório, com apoio do SindiTabaco e da , que sugeriu que vapes podem proteger a fumicultura da diminuição global no consumo de fumo. “Produtores de tabaco e indústrias associadas têm seus potenciais de inovação e diversificação limitados, agravando a dependência de mercados tradicionais que enfrentam queda no consumo global de cigarros convencionais”, diz o documento.

“Ao regulamentar os DEFs e fomentar a produção de nicotina líquida, extraída de produtos da agricultura do tabaco, o Brasil estaria criando uma nova fonte de renda para o setor”, garante o relatório. Seu relator, o deputado estadual Marcus Vinícius, do Progressistas, não respondeu aos pedidos de entrevista do Joio.

A preocupação com o futuro do setor até tem fundamento, já que governos têm se esforçado para combater o consumo de cigarros no mundo inteiro. O produto mata mais de oito milhões de pessoas ao ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O índice supera o total de mortes da pandemia da Covid-19, que vitimou cerca de oito milhões de pessoas entre 2020 e 2023. Só no Brasil, são 161 mil mortes ligadas ao tabagismo ao ano, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca).

Por isso, não é à toa que o consumo global do produto tenha saído de 5,9 trilhões de unidades em 2007 para 5,1 trilhões em 2020, uma queda impulsionada por medidas de saúde pública, de acordo com anuários do tabaco revisados pelo Joio. A diminuição na demanda também impactou no número de produtores de fumo no Brasil: eram 236 mil fumicultores em 2005, 71% a mais do que hoje.

Maior exportador de tabaco do mundo, o Brasil também vê as exportações em queda. De 626 mil toneladas em 2005 para 446 mil em 2024, segundo dados de comércio exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).

Enquanto as multinacionais pressionam pela liberação dos dispositivos eletrônicos para abrir esse mercado no Brasil, indústrias menores já se movimentam para exportar o tabaco brasileiro e atender a demanda por nicotina pura, que também pode ser usada em dispositivos de tabaco aquecido e sachês, ambos populares em diferentes países da Ásia e Europa. É o caso da indústria de processamento de fumo Unicruz, sediada em Vera Cruz, cidade vizinha à “capital do tabaco” Santa Cruz do Sul, que tem projetos – ainda em desenvolvimento – de compra e venda de fumo para extratoras de nicotina.

A falta de cultivo de variedades de altos teores da substância, como o planejado pela Universal Leaf, no entanto, é um empecilho. “Procura-se um tabaco de nicotina muito alta, que aqui não se produz como em outros países”, explica o diretor de operações da Unicruz, Jonas Lara. “Hoje o tabaco plantado no Brasil é voltado diretamente para o cigarro, mas, com o passar do tempo, provavelmente irão produzir aqui alguma variedade com um teor maior (de nicotina)”, ele avalia.

O agricultor Ernani Konzen, 50 anos, observa parte dos oito hectares de sua lavoura – cinco próprios, três arrendados – em que sua família irá plantar cerca de 100 mil pés de tabaco nesta safra. É ali que ele, seu filho João, 21, e a esposa Cristiane, 41, produzem há 14 anos a folha que hoje fornecem à BAT e à Philip Morris.

A família da zona rural de Santa Cruz do Sul tem dificuldade para viver de outros cultivos que não o fumo na pouca área que dispõe em sua propriedade. “Já entrei no ramo do milho anos atrás e paguei pra plantar porque, na hora da venda, o preço não cobre o custo de produção”, diz Ernani. “A única coisa para nós hoje que tá dando dinheiro, lucro, é o tabaco.”

Em várias das regiões fumicultoras do Sul do país, produtores que se “arriscam” em outras culturas têm dificuldades, já que a logística econômica em muitas dessas cidades está voltada inteiramente para a cadeia produtiva do tabaco. Em municípios como Vera Cruz e Santa Cruz do Sul, por exemplo, a maioria dos mercados da região compram alimentos a mais de 150 quilômetros dali, de centrais de abastecimento da capital Porto Alegre, e não de produtores locais.

O país até tem uma política pública, o Programa Nacional de Diversificação de Áreas Cultivadas com Tabaco (PNDACT), para ajudar fumicultores a acharem outras fontes de renda fora o fumo – já que pela queda no uso de cigarros comuns, a tendência é de uma diminuição na demanda pela folha no longo prazo. O programa teve algumas edições entre 2011 e 2019, mas nunca deslanchou. Hoje, ele segue engavetado pelo governo Lula no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).

No entanto, ainda não há clareza para fumicultores sobre o que são cigarros eletrônicos e quais riscos eles podem trazer à lavoura. “A gente ouve falar na mídia, mas em questão das empresas, elas não relatam nada sobre isso ainda com a gente, né?”, diz Ernani. “A única coisa que dizem é que o produtor que fizer qualidade nunca vai precisar se preocupar porque esse sempre vai ter comércio.”

Mesmo políticos que defendem a produção fumageira, como o deputado federal Heitor Schuch (PSB), que é de Santa Cruz do Sul, não têm recebido respostas claras da indústria ao questioná-la se cigarros eletrônicos demandam menos fumo que os comuns. “A impressão é que há poucos dados ainda concretos sobre o real impacto dos dispositivos eletrônicos na demanda por tabaco”, ele disse em nota ao Joio. “O agricultor, de modo geral, quer produzir e ter renda para o sustento da família, e não está diretamente envolvido nessa discussão.”

No fim de março, o presidente do SindiTabaco Valmor Thesing, que participou das reuniões da Universal Leaf com a JUUL, disse ao Joio não ter “dados técnicos” sobre a nicotina líquida precisar ou não de menos folhas para ser produzida, e disse que a entidade iria iniciar um “diálogo” com as cigarreiras para conversar com representantes dos produtores sobre o assunto.

O líder da entidade também sugeriu que seria “excelente para o Brasil” uma queda na demanda por fumo com impactos na produção rural. “O nosso governo só fala que devemos ‘diversificar’ os produtores, ou melhor, devemos acabar com a produção de tabaco para que eles produzam alimentos”, disse. “Então se reduzir a necessidade de produtores para tabaco, a gente coloca a diversificação com eles e atende o que o governo quer.”

Ao longo da conversa, Thesing disse que, com os cigarros eletrônicos, o setor está de olho nos “fumantes do futuro”. “Tu acredita que as gerações futuras vão fumar os cigarros tradicionais, se fumarem, ou vão fumar os novos produtos? Quem define o que (se) vai consumir? É a indústria ou é o usuário?”, questionou. “Sem vícios, a humanidade não vive.”

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