Por: Elstor Hanzen | 01 Mai 2025
O Rio Grande do Sul é o estado brasileiro responsável pela maior produção de tabaco do país. A atividade é uma das mais insalubres e degradantes para o ser humano e sua saúde, apontada como um “regime de trabalho surreal” pela escritora Mariana Salomão Carrara. Ela trouxe o universo das famílias plantadoras de fumo para a literatura no livro A árvore mais sozinha do mundo.
O RS também é recordista no número de suicídios no Brasil, índice considerado alarmante no cenário mundial pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Em cidades como Venâncio Aires, Paraíso do Sul e Santa Cruz do Sul, por exemplo, as taxas são maiores ainda que a média estadual”, ressalta a professora de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Tatiana Dimov. Para descobrir as causas e as especificidades do problema, os pesquisadores foram a campo. “Dentro do grupo de agricultores, os fumicultores homens são as maiores vítimas e de forma recorrente”, explica.
Ela é uma das autoras do artigo publicado em 2023, que analisa como as relações econômicas com as fumageiras impactam a saúde mental de fumicultores, contribuindo para desfechos desfavoráveis às famílias envolvidas nessa cadeira produtiva. Entre os motivos, segundo a pesquisadora, estão o uso excessivo de agrotóxicos, abusos econômicos e fatores socioculturais, como a visão de homem provedor e a identidade religiosa.
Os cientistas realizaram entrevistas com familiares de fumicultores que cometeram suicídio e atores sociais, como vizinhos e amigos, que acompanham esses agricultores, buscando entender o contexto e a realidade das famílias. “Chamou a atenção que a família inteira estava trabalhando no plantio, em lavoura que vai até ao lado da horta e na janela de casa. Muito difícil que todos não fossem contaminados pelos agrotóxicos”, observa Tatiana, nesta entrevista por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
A relação predatória com as fumageiras – endividamento e a falta de autonomia nas negociações relacionadas aos índices de reajustes de preços do fumo e comercialização – está por trás do drama que afeta a vida e a saúde dos produtores de fumo. Segundo o estudo, a precarização da condição de trabalho dos fumicultores, estabelecida a partir da relação de trabalho com as fumageiras, é outro fator prejudicial e problemático nesta cadeia produtiva.
Tatiana Dimov (foto: Arquivo pessoal)
Tatiana Dimov é professora do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e uma das autoras da pesquisa Trabalho, exploração e suicídio de fumicultores no Rio Grande do Sul.
IHU – Qual a relação e a importância do fumo na vida dessas famílias?
Tatiana Dimov – É possível observar que a fumicultura se constitui como parte de uma cultura e identidade local, orientando modos de existir, de produzir e de se relacionar na sociedade rural. Também é possível identificar que a fumicultura apresenta fortes traços da religião protestante, que valoriza muito o trabalho, refletindo-se na cultura da produção de tabaco no RS.
Ou seja, a cultura e a identidade germânica estão muito presentes em boa parte das regiões de plantio de fumo, inclusive onde realizamos nosso estudo. Isso afeta a relação laboral com a fumicultura, porque a lógica protestante valoriza muito o trabalho, perpassando a forma como o produtor se engaja na cultura do fumo.
Nós estudamos um universo pequeno de famílias, mas, dentro dos grupos que estudamos, a fumicultura era a maior parte da renda da família, inclusive envolvendo a mão de obra de diversas pessoas ou de todo o núcleo familiar mesmo, assim sendo um modo de vida e a principal fonte de renda.
IHU – Existe uma subordinação e dependência dos fumicultores às fumageiras?
Tatiana Dimov – A produção de tabaco tem características específicas se comparada a outras produções agrícolas, sobretudo quanto à comercialização. Com a instalação do monopólio das indústrias beneficiadoras de fumo, a produção passou a ser estabelecida através do Sistema Integrado de Produção de Tabaco.
Esse sistema se materializa por meio do contrato de compra e venda firmado entre a fumageira e o fumicultor, em que são estabelecidos deveres e obrigações de ambas as partes. Em linhas gerais, ao agricultor cabe produzir os volumes contratados, ou seja, a estimativa do contrato, utilizando sementes e insumos recomendados pela indústria, e comercializar a totalidade estimada da sua produção pelos valores negociados entre representações das fumageiras e dos fumicultores.
Às indústrias fumageiras cabe prestar assistência técnica aos fumicultores, repassar insumos certificados e aprovados para uso na cultura, avalizar os financiamentos de insumos e investimentos e comprar integralmente a safra contratada por preços negociados com a representação dos produtores.
IHU – Fumicultor não tem autonomia nem garantia de preço justo?
Tatiana Dimov – Nas famílias de fumicultores que entrevistamos, havia uma questão central: o preço chega para o produtor depois que todo o fumo é recolhido, e depois da fumageira o levar para o galpão da indústria. Ou seja, não há autonomia nem garantia para o trabalhador sobre sua própria produção de um ano inteiro, por exemplo.
Muitos relataram ainda que existe um sistema de empréstimo para poder fazer o plantio e a colheita. Os produtores dependem dessa condição; eles acabam envolvidos e se tornam reféns desse processo.
Então ele só sabe o preço do fumo depois da colheita e quando a indústria contar. Aliás, nem mesmo assim o fumicultor não vai saber quanto fica para ele, porque tem empréstimo para os insumos, por exemplo. Por isso, é uma relação de muita insegurança, nada benéfica para o fumicultor. Essa questão da precificação é muito desfavorável para o agricultor, porque é sempre o lado mais fraco e sem poder de barganha.
IHU – Qual a relação do tabaco com o suicídio?
Tatiana Dimov – O RS é recordista no número de suicídios no Brasil. Inclusive a OMS categoriza os índices do Estado como alarmantes no cenário mundial. Em cidades como Venâncio Aires, Paraíso do Sul, Santa Cruz do Sul, as taxas de pessoas que tiram a própria vida são maiores ainda. Dentro do grupo de agricultores, os fumicultores homens são as maiores vítimas e de forma recorrente. Isso está confirmado por diversos pesquisadores em variados estudos.
Por que o homem? Por questões socioculturais, porque se vê como o provedor sem, muitas vezes, conseguir atender a esta expectativa. Intoxicado e endividado, então tira a própria vida. O endividamento foi decisivo para os suicídios, segundo a visão dos familiares.
Ao mesmo tempo, o uso excessivo de agrotóxicos, abusos econômicos e fatores socioculturais, como a visão de homem provedor e a identidade germânica/religiosa, tudo contribui e se soma para o problema.
Um ponto que chamou a nossa a atenção e ajuda a explicar isso são as famílias que estavam trabalhando no plantio, em lavoura que vai até ao lado da horta e da janela de casa. Com isso, é muito difícil que todos não fossem contaminados pelos agrotóxicos.
IHU – Além disso, o fumo causa outros problemas de saúde?
Tatiana Dimov – É bastante danoso para a saúde humana, está associado ao câncer de pulmão e de bexiga. Tanto a produção do tabaco quanto o hábito de fumar matam as pessoas, e a indústria não para de fomentar a produção porque lucra muito.
IHU – Na literatura, recentemente a escritora Mariana Salomão Carrara lançou o livro A árvore mais sozinha do mundo, em que mergulha no universo das famílias plantadoras de fumo. Ela afirma que “o regime de trabalho é surreal” neste meio. Concorda com esta avaliação do regime de trabalho?
Tatiana Dimov – Em relação ao regime de trabalho ser surreal, verificamos que sim. As entrevistas evidenciaram um regime desgastante, extenuante fisicamente em algumas etapas. A colheita é bastante desgastante e cansativa, inclusive com muitos danos físicos relatados pelas famílias, destruição da coluna e aceleração do processo de envelhecimento. Nessa lógica, em que você pega dinheiro emprestado, há um desgaste mental bastante significativo que implica toda a família.
Além de tudo, o retorno desse trabalho nem sempre é satisfatório, o que cria um ciclo de precarização do trabalho. Se você for olhar do ponto de vista dos direitos trabalhistas, esse fumicultor não tem acesso a nada nem ninguém que vai fazer o trabalho no lugar dele. Por exemplo, se a pessoa tem uma hérnia de disco e precisa se afastar, quem é que vai auxiliá-lo?
Portanto, o fumicultor não tem acesso a uma verba de subsistência ou a possibilidade de pagar alguém para fazer esse serviço. Se for olhar a fundo, o que entendemos por direitos trabalhistas não está sendo atendido nesse processo. Isto significa a precarização do trabalho neste meio também.
IHU – Existem alternativas razoáveis para o produtor deixar de plantar fumo?
Tatiana Dimov – Acho que depende do que que você chama de razoável nessa correlação de forças. De forma geral, precisa de políticas públicas que sejam voltadas à produção saudável de alimentos, tanto para quem produz quanto para quem consome.
Além disso, há a necessidade de vinculações de políticas públicas que possam estimular o comércio local. A merenda escolar, por exemplo, pode vir da produção local para o consumo nas escolas, além de estimular restaurantes populares e feiras. Claro, é necessário que a população possa ter o dinheiro para comprar esses alimentos saudáveis.
Isso contribui para a própria saúde mental. Neste sentido, estudos mostram que o consumo de alimentos naturais e não processados são um fator de maior proteção para não desenvolver depressão. Por isso, precisamos de políticas públicas que fomentem essa cadeia produtiva.