25 Setembro 2025
Em poucos anos, Moraes deixou de ser uma figura conservadora para se tornar o carrasco da extrema-direita brasileira, que está manobrando no Parlamento para anular a condenação do ex-presidente por golpe.
O artigo é de Bernardo Gutiérrez, publicado por El Diario, 24-09-2025.
Bernardo Gutiérrez é jornalista, escritor e pesquisador hispano-brasileiro. Cobre a América Latina desde 1999, atuando como correspondente no Brasil durante a maior parte desse tempo. É autor dos livros Calle Amazonas (Altaïr), #24H (Dpr-Barcelona), Pasado Mañana (Arpa Editores) e Saudades de junho (Liquid Books).
Eis o artigo.
“Alexandre de Moraes é o responsável pela libido do nosso país.” Essa frase foi o tema central da coluna da popular escritora e roteirista brasileira Tati Bernardi no jornal Folha de S.Paulo em 31 de julho. “Se você é uma mulher heteroprogressista, está na moda sentir emoções pélvicas ao assistir Xandão (apelido de Alexandre de Moraes) confrontar fascistas de todos os tipos, incluindo poderosas forças do mal e golpistas imbecis que se filmam cometendo crimes”, escreveu ela.
A coluna foi a cereja do bolo para completar o retrato benevolente e heroico que a esquerda brasileira vem construindo de Alexandre de Moraes desde que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu confrontar o bolsonarismo de frente, esforço que culminou na recente condenação do ex-presidente por tentativa de golpe. A tentativa parlamentar de anular a sentença com uma anistia levou multidões às ruas no último fim de semana em diversas cidades do país.
O ministro do Supremo Tribunal Federal, cujo cargo no Brasil carrega consigo o status de ministro, é o grande inimigo a ser derrotado pelo outro lado do espectro político, que o chama de demônio comunista e líder de uma "ditadura da toga".
Desde que Alexandre de Moraes solicitou à X (antiga Twitter) que nomeasse um representante legal no Brasil em agosto de 2024, para cumprir a legislação nacional, sua notoriedade se espalhou para o cenário internacional. O excêntrico milionário Elon Musk, dono da X, descreveu-a como um cruzamento entre Lord Voldemort (o vilão da saga Harry Potter) e Darth Vader (o antagonista de Star Wars).
O próprio Donald Trump acusou recentemente Alexandre de Moraes de abusar de sua autoridade judicial "para atacar oponentes políticos, proteger aliados corruptos e reprimir dissidências, muitas vezes em coordenação com outras autoridades brasileiras".
Amado e odiado em igual medida, reverenciado pela esquerda e vilipendiado pela extrema-direita, Alexandre de Moraes tornou-se nos últimos anos o protagonista inesperado da história brasileira, nas palavras da jornalista Thais Bilenky, diretora da série de podcasts Alexandre, sobre a vida do "superjuiz". A realidade é mais complexa. O juiz, longe de ser de esquerda, tem um passado conservador. Chegou a se filiar ao Partido da Frente Liberal (PFL), que na época contava com Jair Bolsonaro como deputado.
Família conservadora
De Moraes (São Paulo, 1968) cresceu em uma família conservadora de classe média. Filho de um empresário e uma professora, formou-se em Direito pela prestigiosa Universidade de São Paulo (USP), onde estudaram muitos presidentes brasileiros. Em 1991, foi o primeiro colocado no concurso público para procurador-geral de Justiça em São Paulo. Exigente, workaholic e vaidoso, De Moraes vendeu mais de 700 mil exemplares de seu livro, Direito Constitucional (1997). Um conversador cordial e irônico, cultivou amizades estreitas entre a elite do país.
A política logo cruzou seu caminho. Em 2002, quando Lula da Silva venceu sua primeira eleição presidencial, Moraes aceitou o cargo de secretário de Justiça e Defesa do Cidadão do estado de São Paulo, então governado pelo conservador Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
Foi membro do Conselho Nacional de Justiça (2005-2007) e secretário Municipal de Transportes e Serviços de São Paulo durante o governo de Gilberto Kassab (2007-2010), uma das grandes lideranças da direita brasileira. No início de 2015, ano em que teve início a campanha política e social contra a então presidente Dilma Rousseff, Alexandre de Moraes assumiu o cargo de Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, tornando-se, aos 47 anos, o mais jovem da história a ocupar o cargo.
O historiador Edson Aparecido, chefe de gabinete do presidente daquele governo, disse ao jornal francês Le Monde que Moraes havia conquistado a reputação de durão. "Ele tinha mais de 130 mil policiais sob seu comando. Mais do que muitos exércitos do mundo!", lembrou. Xandão então decidiu raspar a cabeça.
Em 2015, ele participou das manifestações na Avenida Paulista, em São Paulo, pedindo o impeachment de Dilma Rousseff e criticou os contraprotestos em defesa da ex-presidente. "Se vocês se envolverem em violência, serão tratados como criminosos", afirmou na época, quando reprimiu duramente manifestações de esquerda.
O desentendimento com a esquerda se aprofundou após sua chegada ao Supremo Tribunal Federal. Seu mentor foi ninguém menos que Michel Temer, que assumiu a presidência em 31 de agosto de 2016, após um trágico processo de impeachment contra Dilma Rousseff, um verdadeiro golpe parlamentar. Acirrou-se ainda mais quando De Moraes negou a Lula um pedido de habeas corpus em 2018 e não considerou que o juiz Sérgio Moro estivesse cometendo abuso de poder. Vinte e quatro horas após sua negação, Lula foi preso. Um amigo pessoal falou ao Le Monde sobre suas poucas inclinações esquerdistas. "A última coisa que ele teria na parede seria um pôster do Che", disse ele.
Inimigo do bolsonarismo
Em março de 2019, durante o terceiro mês do governo Bolsonaro, Alexandre de Moraes tornou-se o juiz principal de uma investigação do Supremo Tribunal Federal sobre ataques e notícias falsas que o tornariam o inimigo número um do ex-presidente. Em 2020, Moraes bloqueou a nomeação de Alexandre Ramagem, um confidente próximo da família Bolsonaro, como diretor da Polícia Federal (PF), alegando o risco de interferência política.
As tensões aumentaram. Xandão iniciou investigações sobre a condução da pandemia por Bolsonaro, sobre as milícias de desinformação digital (sediadas no palácio presidencial) e sobre os atos antidemocráticos que começavam a ocorrer em todo o país.
Depois, vieram mandados de busca e apreensão contra o próprio Jair Bolsonaro. Em 7 de setembro de 2021, durante a comemoração da Independência do Brasil, o ex-presidente instigou a população contra o sistema judiciário e declarou que não reconheceria as decisões do Supremo Tribunal Federal. Chegou a sugerir que Alexandre de Moraes pendurasse o cargo.
Em 16 de agosto de 2022, pouco antes das eleições presidenciais, Moraes foi empossado como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Seu discurso foi duro. "Liberdade de expressão não é liberdade de agressão. Liberdade de expressão não é liberdade de destruir a democracia, as instituições, a dignidade e a honra alheia. Liberdade de expressão não é liberdade de disseminar discurso de ódio", afirmou. Bolsonaro não aplaudiu.
Seu papel como presidente do TSE no combate às fake news foi extremamente decisivo. Quando a Polícia Rodoviária Federal, em conluio com os bolsonaristas, começou a bloquear o trânsito com barreiras em regiões propensas a votar em Lula, ele interveio rapidamente. Muitos analistas, como o correspondente do The New York Times, argumentam que o papel de Alexandre de Moraes foi crucial nas eleições de 2022, nas quais Lula triunfou.
Golpe de Estado
Alexandre de Moraes cultiva uma imagem misteriosa e guarda com zelo sua vida privada. Casado com a advogada Viviane Barci de Moraes e pai de três filhos, raramente concede entrevistas.
"Alexandre parece gostar desse enigma", diz a jornalista Thais Bilenky. Apesar dos comentários sarcásticos e de algumas imagens polêmicas que publica com estratégia estudada (como uma em que foi visto erradicando plantações de maconha ao lado da polícia em 2017), Moraes raramente perde a compostura. Uma foto recente no estádio do Corinthians, seu time de futebol, na qual ele fez um gesto ofensivo com o dedo após ser assobiado por uma parte da torcida, é uma exceção.
"Ele oscila rotineiramente entre piadas e pronunciamentos jurídicos contundentes", escreveu o veterano repórter Jon Lee Anderson após entrevistá-lo para a revista The New Yorker. Na entrevista, o juiz da Suprema Corte atacou duramente as redes sociais, alegando que, se X tivesse trabalhado na época de Joseph Goebbels (ministro da propaganda de Adolf Hitler), "os nazistas teriam conquistado o mundo". Xandão argumenta que as plataformas tecnológicas "não querem respeitar a jurisdição de nenhum país, porque, na verdade, buscam imunidade das nações".
O confronto feroz de Alexandre de Moraes com Elon Musk foi mais um marco em sua carreira. Após determinar o fechamento de muitos perfis X por meses, em alguns casos beirando a ilegalidade, Moraes bloqueou a rede social em agosto de 2024 por desobediência às leis brasileiras.
Após retornar à Casa Branca, Donald Trump tornou o juiz um alvo. Transformado em vilão pelas grandes empresas de tecnologia americanas , o governo americano o proibiu de viajar para os Estados Unidos, possuir propriedades no país e até mesmo usar cartões de crédito americanos. Sua esposa também foi sancionada.
Moraes, um corredor assíduo e praticante dedicado de jiu-jitsu (uma arte marcial que utiliza a força dos inimigos para derrubá-los), resistiu ao ataque. Continuou correndo e redobrou a pressão: apertou o cerco em torno de Jair Bolsonaro. Obrigou-o a usar uma tornozeleira eletrônica para monitorar sua prisão domiciliar. Mais tarde, atuou como um repórter dedicado ao julgamento histórico, que terminou com sentenças mais duras do que o esperado para os oito réus acusados de tentativa de golpe.
Durante os protestos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, o gabinete de Alexandre de Moraes foi um dos mais vandalizados. Alguém destruiu o armário onde guardava a toga que ele usava no tribunal. Mais tarde, a polícia descobriu um plano, envolvendo membros do governo Bolsonaro, para assassinar Xandão. "Os apoiadores mais fervorosos argumentavam que, depois do golpe, eu deveria ser preso e enforcado na praça", afirmou Moraes em janeiro de 2024.
O que teria acontecido se o plano de assassiná-lo tivesse dado certo? A democracia brasileira teria sobrevivido? Juristas e analistas políticos debatem o impacto a longo prazo que Moraes terá. Alguns argumentam, como relata o New York Times, que suas ações são medidas extraordinárias, mas necessárias, diante de uma ameaça igualmente extraordinária. Outros argumentam que, ao agir sob a bandeira da salvaguarda da democracia, ele está prejudicando o equilíbrio de poder do país.
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