23 Setembro 2025
Análise de conjuntura política e indigenista na XXVI Assembleia Geral do Cimi buscou conectar contexto global e nacional às situações enfrentadas localmente pelos povos indígenas.
A informação é publicada por Conselho indigenista Missionário (Cimi), 22-09-2025.
A primeira tarde da XXVI Assembleia Geral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que ocorre em Luziânia entre os dias 21 e 24 de setembro, foi marcada por reflexões que buscaram conectar a conjuntura global às situações enfrentadas localmente pelos povos indígenas.
As reflexões ajudaram a compor, a partir de perspectivas complementares, o quadro formado pela pressão sobre os territórios indígenas e as ofensivas institucionais contra os direitos dos povos originários. E, a partir deste cenário, imaginar caminhos para enfrentar estes desafios.
Capital territorializado
Paulino Montejo, indígena Maia e assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), apresentou uma leitura ampla do contexto global em que se dão as disputas em torno dos direitos indígenas.
“Estamos diante de um cenário mundial marcado por crescentes conflitos, guerras e múltiplas crises ambientais, climáticas, hídricas. Crise alimentar, econômica, social, cultural e civilizatória. É tão complexo, que a gente se vê pequeno diante desse cenário”, resumiu. “O império estadunidense, diante da perspectiva de um debacle, está querendo se afirmar. Não admite nenhuma iniciativa multipolar”.
Para Montejo, não se trata apenas de mais uma crise do capitalismo, mas de um “momento metamórfico do capital, que vai se transformando o tempo todo, não importa se tem que atropelar vidas – em todos os aspectos, não apenas humanas. Ao ponto de nos depararmos com um inaceitável genocídio do povo palestino, sob o olhar omisso da comunidade internacional, inclusive com apoio externo”, sintetizou.
Para o secretário executivo do Cimi, Luis Ventura, esse momento é marcado por dois fenômenos principais: o avanço do totalitarismo dentro das instituições do Estado e uma nova fase de expansão do capitalismo.
“O avanço do totalitarismo, no Brasil e em outros lugares do mundo, consegue alcançar espaços de poder dentro do Estado para destruí-lo, para fragilizar suas estruturas. É por isso que a gente vive sob a sensação de um Estado permanente de golpe. É um Estado permanente de ruptura, que gera insegurança contínua e manipula a consciência coletiva”, apontou Ventura.
“Em termos de Estado, os consensos mínimos, a perspectiva constitucionalista, essas formas já frágeis e precárias da democracia burguesa, deixam de ser referentes seguros. Mas não é só o aparente equilíbrio institucional entre os poderes, entre as instituições democráticas que se rompe. A sociedade se rompe”, refletiu o secretário do Cimi.
Esse contexto político, pontuou Paulino, favoreceu o “enraizamento” da extrema direita na sociedade e no Congresso Nacional, onde as forças que buscam anistiar políticos e militares condenados por tentativa de golpe e se blindar contra possíveis investigações são as mesmas que investem cotidianamente contra os direitos indígenas.
“Quando a gente fala de golpe, não está falando apenas da quebra das institucionalidades. Os golpes vêm um atrás do outro”, afirmou Paulino, rememorando medidas legislativas que afetam negativamente os povos indígenas, como a Lei 14.701/2023, a Lei do Marco Temporal; a Lei nº 15.190/2025, conhecida como Lei da Devastação; e diversas outras iniciativas legislativas que buscam fragilizar os direitos territoriais indígenas.
“Quem sai ileso dessa fragilização do Estado sempre é o mercado. É o mercado e o capital que continua se espalhando, se expandindo e conseguindo seus objetivos. E quando se fala do capital, tudo passa pelo território”, analisou Luis Ventura.
“A gente conhece como avança o agronegócio, a mineração, os grandes projetos, a BR-319, o petróleo na foz do Amazonas, e aí vai. A questão é que nessa pauta desenvolvimentista, todos os poderes aparentemente coincidem. Todos estão na mesma página, entendendo que o caminho do Brasil continua passando pela expansão do capital”, resumiu o secretário executivo do Cimi.
Disputa por direitos
A vigência da Lei 14.701 foi apontada pelos expositores como um elemento central para as atuais violações contra os povos originários e para as lutas que os povos indígenas travam neste momento.
Para a jurista Deborah Duprat, ex-subprocuradora-geral da República, a promulgação da lei foi uma “derrota total”. A lei retomou dispositivos que fragilizam os direitos indígenas e que, depois de terem sido incluídos no julgamento do caso Raposa Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal (STF), foram considerados inconstitucionais pela Corte no processo de repercussão envolvendo o território do povo Xokleng, em 2023.
“A Lei 14.701 é o ressurgimento de todos os males contra os quais os povos indígenas tinham lutado”, afirmou. A jurista destacou o fato de que apenas três meses depois de tomar uma decisão de repercussão geral favorável aos direitos indígenas, o STF reabriu o mesmo debate na Câmara de Conciliação criada pelo ministro Gilmar Mendes para analisar as ações que discutiam a constitucionalidade da Lei.
“O Supremo, lá atrás, já reconheceu que o Poder Judiciário lida muito mal com os tempos indígenas, que o Poder Judiciário captura os povos indígenas num tempo da eternidade. Nunca julga, nunca termina e as coisas sempre voltam. Foi o que aconteceu nesse caso”, disse Duprat.
Para Paloma Gomes, advogada e assessora jurídica do Cimi, a disputa no poder judiciário depende de uma “luta política permanente”. “A gente está tendo discussões no Supremo onde todos os direitos que foram conquistados em 1988 estão sendo rediscutidos. E a gente tem que disputar, obviamente, esse espaço”, defendeu.
Entre os principais componentes desta disputa, Paloma ressaltou a pulverização das pautas que discutem questões essenciais para os direitos territoriais indígenas e o uso de ferramentas de conciliação para discutir esse tema, sob a justificativa de “pacificação” do país.
“Grandes temas hoje no Supremo estão sendo discutidos e resolvidos mediante conciliação, e estão querendo trazer para a discussão do direito indígena a conciliação como resolução de um conflito histórico, que traria paz aos territórios indígenas. E quem se opõe ou questiona seria contra a pacificação no país, e o que não é verdade”, avaliou Paloma.
“Quando a gente vai ver no concreto, as soluções propostas são coisas velhas, que já foram tentadas lá atrás. É redução de território, é permuta, é pagamento de indenização”, enumerou a advogada.
“Estão abrindo as portas, os caminhos, de fato, para a mineração. E o Judiciário está sendo um ator importantíssimo nesse negócio. O que não se consegue no Congresso, está se conseguindo dentro do Poder Judiciário. Então, é preciso muita atenção a isso”, alertou Deborah Duprat.
O movimento indígena entre mundos
As consequências deste cenário complexo para o movimento indígena foram apontadas pelas lideranças que participaram da discussão. Eva Canoé, liderança indígena de Rondônia e integrante da Organização dos Povos Indígenas de Rondônia e Noroeste de Mato Grosso (Opiroma), refletiu sobre as formas de ação política que os povos originários e suas lideranças têm adotado.
“Nós, povos indígenas, fazemos parte de uma política social, uma política que faz um trabalho pelo bem comum de todos, pela defesa da casa comum. Nós não somos da política partidária, nós somos política social”, pontuou a liderança.
“E nessa política social a prioridade é trabalhar sempre pela coletividade, porque a política partidária é individualista e causa divisão entre os povos. Hoje também precisamos estar dentro dessa política partidária, mas não podemos jamais perder a essência da política coletiva, que é a essência da luta do movimento indígena e do próprio indígena”, defendeu Eva Canoé.
Para Kretã Kaingang, liderança indígena do Paraná e integrante da coordenação nacional da Apib, a intersecção entre estas formas de ação política resultou no surgimento de perspectivas antagônicas dentro do movimento indígena.
“Nós estamos vivendo em dois mundos”, sintetizou. “Um é o mundo daqueles que estão fazendo a resistência na retomada e nos territórios, contra o garimpo, contra madeireiros, contra invasores de áreas de territórios. E o outro é o mundo que está dentro do governo e é movimento indígena nacional”.
“Ter os nossos parentes dentro do governo era um sonho do movimento indígena nacional, sempre foi. Houve essa vontade. Mas era para que os nossos parentes usassem esse espaço para trabalhar as políticas e os direitos dentro do governo, não para fazer o papel de movimento indígena”, destacou Kretã.
Para ele, a superação desta cisão passa pelo fortalecimento de uma perspectiva crítica, distanciada do Estado e baseada nas comunidades locais.
“Faço questão de morar numa retomada, porque para mim é desobedecer o Estado. Quando você retoma um território, você está falando: ‘eu não te obedeço, crie as leis que você quiser, nos enfrente, mas eu não vou deixar retrocederem as retomadas e nossos territórios’”, defendeu a liderança.
“Os povos indígenas estão em permanente estado de levante”, refletiu Luis Ventura. “Nós aprendemos com os povos indígenas que o levante é uma condição de vida. O horizonte se disputa no próximo passo. E para isso precisamos, junto com os povos indígenas, encarnar essa condição permanente de levante”.
“Nós aprendemos com os povos indígenas que a sua luta é uma luta antissistêmica. E, ou a gente reforça esse paradigma, ou realmente nós vamos estar com muitas dificuldades até para conseguir pequenas vitórias. Já falava Pedro Casaldáliga: não serão os governos de baixa democracia os que resolverão os problemas dos povos indígenas”, relembrou o secretário executivo do Cimi.
“Claro que a luta passa pelo Estado, mas a partir de onde? De que forma a luta com esse Estado? Se trata de disputar o Estado para fazer parte e tentar transformar ele de dentro? Ou se trata, talvez, de disputar um projeto libertador em interação histórica com esse Estado?”, questionou Ventura.
“Se a gente não fizer esse tipo de luta, não garantiremos as nossas futuras gerações”, afirmou Kretã Kaingang.
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