16 Setembro 2025
Se há uma leitura profunda e perspicaz sobre o fenômeno de época global é a oferecida pelo psicanalista e colunista do Página/12, Jorge Alemán. Seu novo livro tem como título Ultraderechas (Ned Ediciones), no plural. Isto tem a ver com a forma de chamá-la na Espanha – onde reside, após seu exílio em 1976, durante a ditadura argentina – ou você considera que existe mais de um tipo de ultradireita? “É a construção de uma nova metodologia política que assume diferentes formas, de acordo com os lugares do mundo”, explica o autor da recente publicação.
“Ou seja, por um lado, ancora-se em realidades históricas anteriores e, ao mesmo tempo, introduz novos elementos. Portanto, é um plural porque não há a reprodução de um mesmo modelo em todos os lugares, mas, sim, há uma matriz, uma agenda, que se estabelece de diferentes maneiras”, completa um dos intelectuais mais respeitados internacionalmente, tanto no campo psicológico quanto na esfera política.
A partir de diversos pontos de vista, seu livro explora toda a complexidade do principal fenômeno político do momento e, nesse sentido, Alemán observa que a ordem mundial está mudando: aqueles que há uma década estavam reduzidos a pequenos grupos isolados, hoje, alcançam o poder. Figuras como Trump, Milei ou os “tecno-oligarcas” são “nosso presente e provavelmente sejam o nosso futuro. Mas como explicamos sua ascensão meteórica?”. Esta é uma das questões que busca desvendar em seu novo livro.
A entrevista é de Oscar Ranzani, publicada por Página/12, 15-09-2025. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Quais aspectos das mudanças ocorridas no mundo têm a ver com a consolidação da ultradireita em nível global?
Em primeiro lugar, a pandemia foi o buraco por onde a loucura entrou na política. Às vezes, tem-se a sensação de aqueles que queimavam máscaras, negavam os efeitos benéficos da vacina e a participação do Estado em tudo isso é que triunfaram. Ou seja, há uma espécie de negacionismo geral que alimentou muito o campo ideológico das ultradireitas.
Depois, em uma ordem de coisas mais filosófica, o niilismo: o triunfo de algo prognosticado por pensadores tanto do século XIX quanto do século XX de que não há mais como estabelecer a verdade, que nenhuma verdade é operante, que não há nenhum tipo de sentido com consequências éticas, que não há projeto político que transforme as coisas. Isto gerou essa ideia de despolitização, de desistoricização, para muitas pessoas que consideram que as argumentações citadas antes ou a história dos legados não dizem absolutamente nada. Esta foi outra das condições.
Além disso, se olharmos para o lado material, há muito tempo, o capital vem incutindo a ideia de que seu excedente não deve mais ser distribuído para auxílios sociais ou subsídios. E iniciou uma batalha cultural muito séria para isso, e a ultradireita é o seu instrumento. Mas, aqui, quero me referir à ultradireita, não ao partido de ultradireita, mas a algo que também intervém diretamente nas direitas clássicas e históricas.
Você disse “a batalha cultural”. Considera que a ultradireita está vencendo a batalha cultural da utilização da tecnologia comunicacional?
Nesse aspecto, possui uma vantagem porque a tecnologia, com as grandes corporações com seus projetos de prolongar a vida ao infinito, com sua ideia onipotente de ir para outros planetas, com suas literaturas de ficção científica consumidas pelos grandes capitalistas, está bastante conectada ao espírito da ultradireita. Não apenas da ultradireita, pois você deve ter observado a conversa entre Putin e Xi Jinping, outro dia, sobre a possibilidade de se viver talvez até os 150 anos.
É uma visão tecnobiopolítica muito presente neste novo espírito de época e que a ultradireita também promove: a ideia de não gastar mais dinheiro com os pobres, não ajudar mais os vulneráveis e criar um mundo onde haja seres humanos tecnologicamente enriquecidos.
Em quais aspectos a ultradireita na Argentina faz parte de um fenômeno mundial? E em quais tem a sua marca local?
O fenômeno mundial é que ela compartilha a matriz neofascista contemporânea: ódio aos frágeis, ódio aos deficientes, ódio, zombaria e crueldade contra tudo o que se apresente como vulnerável. Isto esteve no ideário dos nazistas e dos fascistas e, agora, está sendo recriado novamente nas ultradireitas mundiais. Agora, na particularidade argentina, por meio de personagens sumamente peculiares, estamos habitados por certezas que não mantêm nenhum tipo de relação dialética com a realidade e que estão absolutamente bloqueadas.
Então, houve um fenômeno curioso. Quando o presidente argentino apareceu, toda a ultradireita mundial se interessou pelo personagem porque parecia que, ao contrário das ultradireitas de outras partes do mundo, que ainda tem uma estética antiga parecida com os fascismos anteriores, o presidente argentino trazia um certo estilo de contemporaneidade, uma estética contemporânea. Agora, ocorre o fenômeno inverso. Toda a esquerda internacional e europeia se interroga por Kicillof: como isto foi possível, porque em nenhum país se imagina que há verdadeiramente possibilidades de construir uma subjetividade política capaz de frear a ultradireita.
Portanto, o que aconteceu na Argentina agora ganhou uma relevância mundial e voltou a colocar em cena o mistério do peronismo, de como o peronismo se ressignifica de diferentes maneiras. E, neste caso, estabeleceu um limite, ao contrário de outros países. Na Espanha, há uma pesquisa que diz que os jovens entre 18 e 24 anos, em sua maioria, vão votar na ultradireita.
E já que você levanta o tema, Milei teve tanta aceitação da juventude porque os adolescentes não tinham vivido um governo de direita?
Eu penso que há vários fenômenos de época que se conjugam aí: a desconfiança do Estado na pandemia, a falta de interesse pela leitura, a questão de ter virado moda ser imbecil, a questão de que se pode ostentar ser racista, a questão de que, além disso, desinibidamente, é verdadeiramente possível transgredir todas as normas da cortesia e insultar qualquer pessoa. Tudo isso, em dado momento, tornou-se muito atraente.
Claro, depois há os problemas da governabilidade e dos assuntos sobre como uma sociedade pode se ajeitar para viver. E isto é o que me parece que se manifestou outro dia na eleição. Mas, sim, entre os jovens houve um gosto por essas supostas irreverências que, ao mesmo tempo, escondiam uma grande submissão ao poder.
Se o neoliberalismo não oferece sinais de felicidade, mas, como você destaca, “uma gestão da miséria”, por que tem aceitação entre os setores populares?
Porque o sujeito contemporâneo vive entre duas instâncias. Por um lado, imagina que tem de ser o único responsável por suas possibilidades de felicidade, de riqueza e de realização, e que isto não depende de nenhum coletivo. Precisa ser o próprio empresário de seu “eu”. E, ao mesmo tempo, o reverso disto é que se sente culpado por sua própria desgraça. Sente, mais uma vez, individualmente, que é o culpado. E há algo que oscila entre essas duas posições, que descreve bastante a subjetividade contemporânea.
É por isso que você diz que sujeitos que também se viram prejudicados por governos de direita tenham visto na ultradireita uma opção válida?
Sim, sim, a promessa de que não haverá mais gastos de dinheiro com os supostamente inúteis seduziu de um modo mundial, teve uma adesão incrível. Depois, vem o outro efeito, o de que, na realidade, não se gastará dinheiro com nada. É um momento de ressentimento niilista que se espalhou de uma forma muito penetrante.
Você considera que a chegada da ultradireita ao poder na Argentina se deve ao fato de que soube capitalizar o descontentamento popular ou, na verdade, é especialista em fabricar mal-estar e exacerbá-lo?
Estou inclinado ao segundo elemento que você disse. É especialista o tempo todo em tirar proveito da inquietação, que começou com a pandemia de uma forma muito mais intensa, e depois em fomentá-la e culpar aqueles que verdadeiramente não entram na dança.
E em relação ao que vinha dizendo, mas aprofundando um pouco mais, a questão é: Por que alguém é capaz de votar em uma ideia política que o desfavorece?
Porque é necessário mudar urgentemente o conceito de interesse. É desfavorecido do ponto de vista de seus interesses vitais, mas os seres humanos não são movidos pelos interesses vitais. Aqui, é necessário voltar a repensar Freud e Lacan. A pulsão de morte nos indica que existem interesses mais obscuros que buscam se realizar e que não dependem de interesses vitais.
Por exemplo, na Espanha, há pouco, houve um montão de incêndios. Muitos desses incêndios não foram iniciados por incendiários, mas por membros da sociedade que quiseram queimar o campo ao lado e acabaram queimando o seu próprio campo. Isto ilustra muito bem uma cena contemporânea, que é buscar destruir o outro e acabar se destruindo.
É por isso que medidas tão desumanas contam com a aceitação popular?
Bem, até agora foi assim. Vamos ver se a Argentina muda o rumo da história contemporânea. Mas, sim, até agora foi assim. E isto está muito disseminado: “os vagabundos eram financiados”. Agora, por exemplo, na Espanha, com os imigrantes que em sua maioria trabalham para sobreviver, é dito que “são vagabundos que vêm estuprar as mulheres”. Isto pega. Isto está nos estádios de futebol. E isto se dissemina.
Por que você diz que escrever sobre a ultradireita não é simplesmente um exercício intelectual, mas uma necessidade política? Tem a ver com o seu grau de compromisso?
Não, não, eu acredito que o mundo está, como nunca esteve nos últimos anos, perto de uma catástrofe mundial. Independentemente de nossa boa notícia argentina, o mundo rompeu limites. Não tem barreiras. Não tem regulamentação. Todos os elementos simbólicos que regulavam este mundo perderam sua consistência e autoridade. O que está acontecendo em Gaza não é apenas um genocídio que diz respeito àquele território. É a demonstração palpável de que se é capaz de matar muitas pessoas em qualquer lugar. Que nada imporá um limite a isto.
Portanto, sim, penso que estamos em uma urgência de um nível muito diferente. Outro dia, a Polônia foi bombardeada com drones pelos russos. Evidentemente, como não há mesas de negociação, nem pontos de convergência e nem elementos que permitam estabelecer certo atrelamento à realidade, os negociadores não funcionam e estamos em um mundo onde pode haver uma distribuição de territórios e regiões que termine de maneira violenta.
A ultradireita se apoderou do ódio e do ressentimento populares ou são elementos nocivos intrínsecos a essa ideologia?
São elementos nocivos e intrínsecos a essa ideologia, a partir do momento em que os outros argumentos, aqueles que tinham a ver com o Estado de bem-estar social, fracassaram em questões estruturais sérias. As pessoas trabalham e são pobres de qualquer modo, ninguém consegue pagar uma moradia, a saúde pública está se deteriorando. Agora, estou falando de questões mundiais, não apenas das nossas. Então, evidentemente, há um campo de maiores possibilidades para que seja gerado este contradiscurso da política da ultradireita porque a ultradireita brinca de ser antipolítica.
Você aponta que os governos ultradireitistas não são ditaduras clássicas, mas, sim, algo parecido a uma submissão voluntária da sociedade. Em quais aspectos enxerga isto?
Por exemplo, pessoalmente, em relação à Argentina, venho insistindo que não se tratava simplesmente de antiperonismo e gorilas; ou seja, sim, era sobre isto, mas havia um plus: é que as condições para uma ultradireita estavam sendo preparadas. A ultradireita opera como se fosse um estado de exceção dentro da democracia. Ou seja, é a metodologia que foi preparada no século XXI para separar o capitalismo da democracia. E, nesse sentido, na medida em que ocorre sob uma aparência, um simulacro democrático, parece haver uma espécie de consentimento coletivo.
A pergunta que todos se fazem neste tempo é: Por que não há greves o tempo todo? Por que os políticos se prestam a isso? Por que os jornalistas continuam falando sobre isso? Bem, porque o novo totalitarismo entra no campo democrático. Ou seja, tenta, por todos os meios, fazer um estado de exceção funcionar sob uma aparência democrática.
É por isso que você diz no livro que o neoliberalismo é a primeira tentativa totalitária no interior das democracias?
Exatamente. É uma das hipóteses fundamentais do livro. Não deixa de ser uma nova derivação do neoliberalismo.
Você compartilha da visão apontada por outros analistas de que a ultradireita é uma espécie de neofascismo?
Sim, há um debate, porque se quer remetê-lo às figuras históricas do fascismo, claro, não é isso que está acontecendo, mas a palavra “fascismo” se emancipou dos momentos históricos. Por exemplo, quando Deleuze falava da vida neofascista ou Foucault também escrevia Introdução à vida não fascista, não se referiam mais a Mussolini, Hitler ou Franco. Então, eu penso que pode ser correto dizer “neofascismo”, quando se mantém os nomes com certa distância. Pode ser correto, sim.
Quais são os fatores que o levam a pensar que o neoliberalismo, que diz que temos de ser felizes e realizar nosso desejo, produziu uma depressão generalizada?
Porque se vive em um mundo onde ninguém nunca está à altura do que lhe é exigido. Todo mundo está em falta e, além disso, responsabilizando-se, não há como politizá-la. E quando é politizada, isto se dá através da ultradireita.
E por que você diz que a ultradireita não se interessa por política, mas, sim, pela opinião pública?
Porque ela não tem operadores políticos, tem operadores nas redes, e uma espécie de trabalho nas redes de supostos intelectuais, que pegam os pensadores de esquerda e tentam invertê-los de uma forma bastante torpe. E se espalham assim, e quando o fenômeno da ultradireita perder vigência, esses intelectuais não existirão mais.
Você ressalta que seu livro não é apenas uma análise, mas uma advertência. Ainda dá tempo para quê?
Para reconsiderar quem é o outro e quem se é, porque, para mim, temos de começar tudo do início. Ao final, o único limite plausível com credibilidade, no qual pode ser colocado tudo isso, é começar por si mesmo, pela relação com os outros. Ou seja, é a própria existência que está em jogo para, depois, colocar um freio político que valha a pena.
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