Creio em Deus Pai – uma imagem revolucionada. Artigo de Vítor Rafael

Foto: Cathopic

14 Agosto 2025

"Não se conhecem registos escritos deste credo anteriores ao primeiro Concílio de Niceia que ocorreu no ano de 325, embora se saiba que pelo menos parte do mesmo era já utilizado como fórmula batismal dos novos catecúmenos. Pensa-se igualmente que o mesmo tenha sido formulado em resposta a várias heterodoxias (ou diferentes doutrinas que a maioria da Igreja adjetivará de heresias) que coexistiam com as doutrinas fundamentais adotadas e aceites pela grande maioria das igrejas de então", escreve Vítor Rafael, colunista do 7Margens, em artigo publicado por 7Margens, 10-08-2025.

Eis o artigo.

Como o 7MARGENS já referiu várias vezes, assinalam-se este ano os 1.700 anos do Concílio de Niceia (atual İznik, Turquia), que definiu aquele que viria a ser o Credo cristão, que ainda hoje é proclamado praticamente por todos os cristãos do mundo, sejam eles católicos, ortodoxos, protestantes, anglicanos, evangélicos ou de outras correntes. A esse propósito, e depois de termos publicado um ensaio do pastor Joel Lourenço Pinto, da Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal e da Igreja Reformada Suíça, publicamos a partir de hoje uma reflexão de Vítor Rafael, colunista regular do 7MARGENS, doutorando em História e Cultura das Religiões pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigador na Universidade Católica Portuguesa – Centro de Investigação em Teologia e Estudos da Religião.

Partindo da Bíblia, da história e dos contextos culturais, é essa reflexão pessoal também em forma de ensaio que aqui se oferece a partir de hoje, diariamente, em doze textos, tantos quantos os artigos do Credo dos Apóstolos.

O Credo Apostólico dos cristãos, também conhecido por Símbolo dos Apóstolos, cuja versão grega utilizamos, aparece pela primeira vez no ano de 341 num texto do bispo Marcelo de Ancira. Uma lenda muito antiga conta que cada uma das suas doze declarações tinha tido origem nos próprios Apóstolos de Jesus, daí o seu nome. Não se conhecem registos escritos deste credo anteriores ao primeiro Concílio de Niceia que ocorreu no ano de 325, embora se saiba que pelo menos parte do mesmo era já utilizado como fórmula batismal dos novos catecúmenos. Pensa-se igualmente que o mesmo tenha sido formulado em resposta a várias heterodoxias (ou diferentes doutrinas que a maioria da Igreja adjetivará de heresias) que coexistiam com as doutrinas fundamentais adotadas e aceites pela grande maioria das igrejas de então.

O texto traduzido e no final exposto, terá sido já usado a partir da primeira metade do segundo século, podendo-se verificar que o mesmo ainda não apresenta artigos que remetam para uma cristologia ou pneumatologia mais avançada conforme definidas mais tarde, como a afirmação da divindade de Jesus e do Espírito Santo. A própria complexa doutrina da Trindade não é ainda objeto de discussão. A importância deste texto é, na opinião de alguns, devida à sua simplicidade e beleza, a enorme possibilidade que o mesmo pode oferecer como contributo para uma releitura e afirmação da nossa fé cristã num contexto cultural contemporâneo já por si próprio tão adverso a imposições dogmáticas e doutrinas religiosas.

Apesar de não se poder igualar com o atual o contexto primordial em que o mesmo foi formulado, não deixa de ser importante verificar a extrema falta de alfabetização que existia entre a esmagadora maioria da população greco-latina de então – e daí a importância e exigência da declamação pública do Credo pelo catecúmeno para o arrolamento do mesmo no seio da Igreja e posterior recitação regular do mesmo na liturgia. Ironicamente, e constatando-se agora nas gerações mais recentes um enorme analfabetismo no que se refere aos pontos fundamentais da fé cristã, não deixa de ser relevante o enorme contributo propedêutico do credo para os dias de hoje.

Mas como, e conforme já referido, adequar ou melhor transmitir o cerne da fé cristã a esta geração pós-moderna? Vivemos agora, como afirmou um famoso teórico e filósofo da modernidade, como se o futuro não existisse, em que o normal é ser instável e imprevisível: o que sabemos hoje, amanhã já não servirá. O próprio conhecimento, devido ao enorme volume de informação sem limites que processamos diariamente através dos meios digitais, encontra-se agora mais do que nunca diluído num mar de relativismos e de incertezas.

Até o conhecimento teológico não foge à regra e afigura-se agora mais do que nunca difuso, onde muitos dos pontos doutrinais e dogmáticos se debatem agora entre discursos rígidos e fundamentalistas e os que advogam uma leitura mais pragmática e existencialista da vida cristã. Talvez uma das soluções para este dilema, seja a adoção de uma fé mais simplista tal como a que seria exposta no símbolo dos Apóstolos. A maioria das confissões cristãs, mercê de sucessivos concílios e de séculos de inquirição, senão de especulação filosófica e teológica, acabará por acumular toneladas de papel para tentar afinal transmitir o que seria a simplicidade do anúncio do evangelho do nosso Senhor. E como se ainda não fosse suficiente, assistiu-se ainda, principalmente a partir da Reforma Protestante, a uma imensa proliferação de divisões e de denominações no seio da cristandade, fomentadas essencialmente através de diferenças doutrinárias.

Ao longo de doze artigos, iremos expor cada ponto do símbolo dos Apóstolos, meditando e discutindo cada uma das suas sentenças, procurando que o Espírito Santo nos ajude a melhor transmitir e adequar a simplicidade da nossa fé a esta nossa presente geração. Teremos de ter sempre em mente que a Revelação em si mesma é a Pessoa do nosso Senhor e Salvador Jesus, o qual nos revela verdadeiramente a Sua graça e o amor do Pai através da ação do Espírito Santo. Não nos conduziremos por caminhos que nos apontem para interpretações de teor dogmáticas ou absolutistas, até porque a Verdade, sendo ela mesmo a pessoa do Senhor Jesus, induz-nos a uma relação de profunda intimidade com Ele mesmo. A nossa caminhada será, parafraseando Brian McLarem, feita caminhando com o Senhor, até porque Ele mesmo promete estar ao nosso lado fazendo-nos até arder o coração, queimando e libertando-o de tudo aquilo que possa ser todo e qualquer empecilho à nossa comunhão com Ele e com os nossos irmãos.

O Símbolo dos Apóstolos

  1. Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra;
  2. E em Jesus Cristo, um só seu Filho (seu único Filho), Nosso Senhor,
  3. Que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem;
  4. Padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado;
  5. Desceu aos infernos, ressuscitou ao terceiro dia;
  6. Subiu ao Céu, está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso,
  7. De onde há de vir a julgar os vivos e os mortos.
  8. Creio no Espírito Santo,
  9. Na Santa Igreja Católica (Universal), na comunhão dos Santos,
  10. Na remissão dos pecados,
  11. Na ressurreição da carne,
  12. Na vida eterna.

Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra

Creio em Deus

Contrariamente à grande maioria das declarações de fé usadas pelos cristãos da antiguidade e que geralmente se iniciavam com um “Nós acreditamos”, o Credo inicia-se com uma afirmação pessoal: “eu creio em Deus”. Conforme já afirmado na introdução, o Credo é essencialmente uma profissão pessoal de fé pública pelo catecúmeno no ato do batismo antes de entrar no seio da Igreja do Senhor. A crença num Deus único, tal como professada pelo judaísmo, era considerada crime (ateísmo) na antiguidade greco-romana e incorriam nele todos quantos se recusassem a adorar o panteão dos deuses nacionais, inclusive o imperador. A crença num Deus único e pessoal, criador de todo o universo, foi na realidade uma autêntica revolução cultural nos primórdios do cristianismo. Mas este “Creio em Deus” era mais do que uma asserção intelectual, de uma simples declaração fé na sua existência: o catecúmeno devia abandonar-se completamente e sem quaisquer condições nas suas mãos.

Nestes tempos modernos, a crença em Deus encontra-se muito difusa e até quase inexistente entre as camadas mais jovens da nossa sociedade. Como podemos acreditar em Deus quando presenciamos tantas injustiças, tanto sofrimento? Porque permite Ele o sofrimento? Mas o consumismo e o hedonismo extremos a que muitos se entregam também procuram retirar Deus, pelo menos como Ele é entendido e experimentado, da sua vida privada e pública. As imagens negativas acerca de Deus, e elas são imensas, inundam também o imaginário dos homens e mulheres nesta sociedade secular já por si tão complexa.

Anselmo Borges, ao jeito provocatório, publicou há tempos um livro da sua autoria com o título Deus Tem Futuro? Para muitos que não creem, a pergunta não faz muito sentido, mas a questão permite certamente a possibilidade de refletir acerca de Deus, se Ele é ainda relevante para a sociedade contemporânea. Necessitamos urgentemente de ser resgatados dessas imagens erroneamente construídas acerca do nosso Deus, como o afirma o teólogo Andrés Torres Queiruga. Mas a tarefa não se afigura fácil, requer uma verdadeira e autêntica metanoia, mudança de pensamento daquilo que pensamos acerca de Deus.

Pai

Os primeiros cristãos terão visto nesta palavra “Pai” uma metáfora quando pensavam em Deus ou no Pai de Jesus, pretendendo primariamente falar antes acerca de um relacionamento especial com a divindade e não, como é bastante evidente, em alguma conexão biológica. Apesar de, nas escrituras, a grande maioria das metáforas para se referir a Deus sejam do género masculino, existem igualmente femininas, como o de uma mãe (Isaías 49,15; 66,13) ou até mesmo a uma galinha mãe (Mateus 23,37).

Também se verifica que, quando no Antigo Testamento se usa a palavra “Pai” para se referir a Deus (Isaías 63,16), ela sempre deve ser entendida no sentido de que Ele é o Criador e fonte de toda a vida (Deuteronômio 32,6), o Senhor, protetor e Aquele que perdoa. Se os anjos são “filhos de Deus” são-no porque as suas vidas provêm diretamente de Deus (Génesis 6,4, Deuteronômio 32,8). Deus é o Pai de Israel e Israel é o Seu filho, não porque Ele os tenha gerado no sentido natural, mas por causa da aliança que estabelece com eles, como um pai que adota um filho na sua família, com todas as responsabilidades e bênçãos que daí advenham.

O primeiro rabi judeu a dirigir-se a Deus como Pai foi Jesus, assumindo Ele próprio ter um profundo relacionamento íntimo com Deus, algo que escandalizava a grande maioria dos seus conterrâneos. A própria oração que Jesus ensinou aos seus discípulos, é extremamente radical ao incentivá-los a dar-lhes o privilégio de se dirigirem a Deus com as palavras “Pai Nosso”, de o chamarem de Pai, de entrarem agora numa relação íntima e amorosa com Ele, uma vez que Deus nos adoptou como filhos e nos fez entrar na sua família através de Jesus (Romanos 8,17).

Também, segundo Jesus, a concepção de paternidade divina extrapola o âmbito individual já que quando fala do Pai, o faz como sendo de todos (João 20,17). Este Pai tem um cuidado amoroso e de igual trato para com todos. Este Pai faz nascer o sol sobre os bons e maus e faz chover sobre os justos e injustos (Mateus 5,45). Se Ele alimenta as aves do céu e veste os lírios do campo, o que não fará pelos seus filhos? (Mateus 6,26-30); é igualmente um Pai misericordioso, sempre pronto para perdoar os seus filhos (Lucas 15,11-24) e que jamais descansa até que encontra e resgata as suas ovelhas perdidas (Lucas 15,3-7). Este Pai, cujo amor é revelado por Jesus ao longo das muitas parábolas e discursos de Jesus, expõe-nos um amor totalmente diferente e até perigoso: impele-nos a amar os nossos inimigos, a uma resistência não-violenta contra o mal, a perdoar infinitamente os que nos prejudicam, a sermos extravagantemente generosos para com os necessitados e até a nos convidar a sermos inclusivos para com os desprezados e marginais da sociedade. Nunca uma imagem de Deus tinha sido tão revolucionada como o foi esta, a apresentada por Jesus acerca do Seu Pai.

Todo-Poderoso

Numa cultura fortemente patriarcal como a romana, a metáfora de Deus Pai como Todo-Poderoso (omnipotentem) era deveras atrativa. Interessante observar que os cristãos perseguidos por causa da sua fé e na sua grande maioria constituídos por clientes, proletários e escravos, associavam a figura toda poderosa do pater familias a Deus. Dessa figura patriarcal esperavam para si e respectivas famílias, abrigo e proteção de todos os perigos e danos.

A nossa finitude impossibilita-nos pensar ou entender Deus, o Seu próprio ser, os seus atributos. Por isso, tal como Jesus falava por parábolas, também nós nos servimos de metáforas, de alegorias, de imagens humanas para falarmos acerca do nosso Deus. Muitos especularam acerca do significado de Deus ser Todo-Poderoso. Nas escrituras hebraicas Deus é apelidado de El-Shadai, um Deus omnipotente capaz de dominar e destruir. Também é designado de Yahweh Sabaoth e de Adonai ‘Tsebayoth, o Deus dos exércitos e o senhor das legiões, aquele que é poderoso e invencível na guerra.

Mas ao longo de séculos a imagem de Deus todo-poderoso tem também levado muitos a interrogarem-se acerca da condição humana, do sofrimento e do mundo/universo imperfeito em que vivemos. Se Deus, sendo ele amoroso, tem todo o poder e sabe todas as coisas, como explicar o mal? O famoso paradoxo do filósofo grego Epicuro tem induzido muitos a pensarem num Deus totalmente despreocupado e alienado dos problemas humanos e do mundo que os rodeia, já que o mesmo postula a impossibilidade da existência de um Deus totalmente poderoso, omnisciente, omnibenevolente e que ao mesmo tempo tivesse permitido a existência do mal e sofrimento consequente. Não existem respostas fáceis para estas questões profundas e nem sequer nas sagradas escrituras encontramos respostas satisfatórias para o problema da nossa finitude e sofrimento. No livro poético de , que tenta tratar o eterno problema da teodiceia – ramo da teologia que trata da coexistência do mal com um Deus todo-poderoso de bondade infinita, o próprio Javé esquiva-se a dar uma resposta satisfatória para o sofrimento de .

Na carta de Paulo aos Filipenses, a famosa passagem do segundo capítulo dá-nos, através de uma perspectiva trinitária, uma leitura extraordinária e nada convencional acerca de um Deus Todo-poderoso que, ao encarnar e por amor de nós, opta pelo seu esvaziamento. Ao contrário das mitologias greco-romanas, onde as poderosas e imortais divindades podiam descer à terra e até relacionarem-se com os mortais, este Deus afinal desce até nós abdicando de todos os seus privilégios e poder, tomando a forma de um escravo (μορφὴν δούλου), manso e humilde de coração (Mateus 11,25-30.

Por vezes as nossas fragilidades e inseguranças preferem o refúgio em imagens todo-poderosas de Deus, de um Deus que intervém ativamente na história. E se pensássemos num Deus que atua essencialmente através das nossas fraquezas? E se a Sua fraqueza foi o único meio que Ele encontrou para estar conosco ao nosso lado e assistir-nos nas nossas dores e angústias?

Dietrich Bonhoeffer, um dos grandes teólogos e mártir às mãos do poder nazi, viu em Jesus esse Deus fraco e débil que não intervém no mundo como uma máquina (deus ex machina) para nos salvar e libertar, mas que está ao nosso lado, que sofre conosco, nos sustem nas nossas dores e fraquezas. Lembro-me do relato de um sobrevivente de um campo de concentração nazi, Elie Wiesel, no seu livro A Noite, que conta a história do enforcamento de uma frágil criança pendurada e a debater-se em agonia durante mais de meia hora. Neste horrendo quadro presenciado por vários adultos, alguém perguntou “Onde está Deus?”. Como que o pequenino continuasse ainda a resistir a viver, o mesmo homem continuava a insistir “Onde está Deus, então?”. O autor sentiu dentro de si uma voz que lhe respondia: “Onde é que Ele está? Ei-lo… está aqui pendurado nesta forca…” O poder do Deus-Poderoso é afinal escândalo para muitos, revelado numa cruz, em que até o próprio Jesus se encontra totalmente abandonado no Seu sofrimento. A antítese do poder encontra-se afinal no serviço, essa inversão que muitos não entendem: o Todo-poderoso Deus e ao jeito sacramental, faz-se deliberadamente escravo ao tomar uma toalha e uma bacia e lava os pés poeirentos e sujos das Suas criaturas (João 13,1-15).

Criador do céu e da terra

De acordo com o relato de Gênesis, Deus é o criador de tudo tanto existe, do céu e da Terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis, conforme completará o credo de Niceia. As antigas cosmovisões da antiguidade, pelo menos a ptolomaica que vigorou até à Renascença, tinham um conhecimento muito limitado da grandeza quase infinita do Universo criado por Deus. Paulo fala dos céus estratificados em três níveis: o primeiro seria o céu azul, o firmamento onde estão as estrelas e os planetas; o segundo seriam os lugares celestiais onde ocorrerão as batalhas espirituais e onde os anjos sustentam as coisas (Efésios 6,12); finalmente o terceiro, seria onde está o Trono de Deus, o paraíso (2 Coríntios 12,2-4). Depois existe a Terra propriamente dita, a que corresponde o nosso planeta onde Deus criou a terra firme, os mares, incluindo todos os seres vivos.

As descobertas da astronomia até ao tempo presente revelam-nos a impressionante imensidão infinita do Universo. Os incontáveis aglomerados de galáxias com um total de dois a três triliões de galáxias, com os seus 700 mil biliões de biliões de estrelas e grande parte delas com sistemas de planetas, são apenas 5% da matéria ordinária, sendo os outros 95% constituído por matéria invisível. Os cientistas calculam a idade do Universo a partir do Big Bang em cerca de 14 biliões de anos, algo que contrasta com os seis dias relatados no livro do Gênesis. A grandeza deste Universo criado por Deus é tal que, como o salmista, não podemos deixar de afirmar que “Os céus proclamam a Sua glória e o firmamento anuncia a obra das Suas mãos” (Salmo 19,1).

O soberano Deus Todo-Poderoso, sustenta amorosamente toda a sua criação, desde as incontáveis galáxias, estrelas e planetas, até à mais ínfima criatura viva. Algumas correntes de pensamento advogam que Deus controla todas as coisas até ao mais pequeno pormenor, nada acontecendo sem a sua soberana vontade, mas esta abordagem pode levantar mais algumas questões. Além do mal ético (fruto das nossas decisões), existe incontestavelmente o mal físico associado essencialmente às realidades materiais como o sofrimento e os desastres naturais.

Todo este universo que está em expansão está igualmente em convulsão: as galáxias, estrelas e planetas nascem, desenvolvem-se e desaparecem em processos que envolvem extrema violência. Nos próprios planetas, inclusive o nosso, observam-se erupções vulcânicas, terremotos e cataclismos climáticos que afetam o seu ecossistema, inclusive toda a vida humana. Embora na alegoria bíblica o mal físico esteja associado ao ético, ou seja, ao pecado original, não se deixa de ter em conta a sua enorme desproporcionalidade uma vez que, conforme já foi dito, todo este imenso universo, e tudo quanto ele contém, é ontologicamente finito e imperfeito (mal metafísico).

Talvez a melhor proposta para estas problemáticas levantadas seja afirmar que Deus sustém amorosamente toda a sua criação. Paulo no seu discurso no Areópago de Atenas, diante dos filósofos epicuristas e estoicos, afirma que Deus “não está longe de cada um de nós, porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (Atos 17,27-28): sendo Deus totalmente transcendente, é igualmente imanente: tudo quanto existe, a realidade visível e invisível é permeada e sustentada por Ele. O presente universo segue escrupulosamente as leis físicas sabiamente arquitetadas pelo Criador, sem que isso signifique que Ele controle cada evento individualmente. As doenças, os cataclismos naturais são unicamente causados por ciclos sucessivos de causa-efeito e não necessariamente decorrentes de algum castigo divino causado pelos pecados humanos.

Paulo, na sua carta aos Romanos, fala-nos da própria criação de Deus e da natureza, a qual está gemendo como se estivesse em dores de parto (Romanos 8,22-24). A expetativa e esperança num novo mundo (cosmos) totalmente transformado estão expressas na segunda carta de Pedro, onde o autor nos fala em “novos céus e nova Terra” (2 Pedro 3,13). Talvez essa nossa expetativa passe afinal pela nossa colaboração e participação ativa na construção desse novos Céus e Terra, onde o nosso cuidado amoroso pela criação de Deus, pelo meio ambiente e o ordenamento sustentável dos recursos da Terra em prol de todos, sejam efetivamente tidos em conta.

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