09 Agosto 2025
Anthony Aguilar serviu no Exército dos EUA por 25 anos. Depois tornou-se prestador de serviços, juntando-se em maio à empresa que fornece segurança para a Fundação Humanitária de Gaza, a ONG dos EUA que distribui alimentos em Gaza. Após seis semanas, pediu demissão. Foi o primeiro soldado a relatar graves violações e o assassinato de civis nos centros de distribuição.
A entrevista é de Rula Jebreal, publicada por La Stampa, 07-08-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Você serviu no Afeganistão, Iraque e Síria lutando contra a Al-Qaeda e os extremismos. Mas afirma nunca ter visto nada comparável a Gaza.
Nos muitos lugares onde fui destacado para lutar, a destruição em Gaza, o deslocamento da população civil, a desumanização das pessoas, a fome que sofrem, estão em um nível que nunca experimentei nem vi em nenhum outro lugar.
Você falou de testemunho direto de crimes de guerra. Pode nos falar a respeito?
Sim, falo de crimes de guerra, aqueles especificamente identificados na Convenção de Genebra, no Direito Internacional Humanitário e nos protocolos da Convenção das Nações Unidas dos Direitos Humanos. Identifiquei nossas violações daqueles protocolos: alvejar civis, atirar neles, nos pés e acima da cabeça, atirar até mesmo onde outros civis poderiam estar, é imprudente e perigoso. São crimes de guerra. Tomar como alvo civis com munição letal, usar meios letais para controlar uma multidão ou deslocá-la, é um crime de guerra. Além disso, os centros de distribuição foram construídos em áreas de combate ativo: isso também é um crime de guerra, uma violação de protocolos.
Você viu pessoas mortas nos locais de distribuição de ajuda. Por exemplo, contou a história de Amir. Pode nos dizer por que essa história o tocou pessoalmente?
Em relação a Amir, pensei que ele tinha 6 ou 7 anos, mas na verdade tinha 10. Tive a oportunidade de falar com sua mãe, que sobreviveu. Seu pai foi morto em um ataque aéreo. No centro naquele dia, eu e outro contratado notamos que Amir estava sozinho. Quando ele se aproximou de nós, pegou minha mão e a beijou. Ele estava apenas me dizendo ‘obrigado’. A gente pensou que estava ferido ou precisando de alguma coisa, talvez pedindo ajuda para encontrar sua família, já que não estava com ninguém. Ele só queria nos agradecer. Coloquei uma mão no seu ombro e disse que a gente se importava com ele, que os Estados Unidos se importavam. E também que ele não seria esquecido e que estávamos lá para fazer a diferença, para levar comida e ajudas. Depois me ajoelhei e ele colocou as mãos no meu rosto e pude sentir que suas mãos estavam muito secas, desidratadas, esqueléticas. Ele me beijou e disse: ‘Obrigado’. Quando ele se juntou ao restante do grupo que saía da instalação, que havia recebido ordens de sair em direção ao corredor humanitário, as IDF já haviam começado a disparar tiros contra a multidão que seguia para oeste o corredor de Morag. Estavam atirando para forçá-los a avançar. O grupo com o qual Amir estava ficou um pouco para trás e se viu na área onde estavam atirando. Algumas pessoas evitaram os tiros, outras ficaram feridas. Algumas morreram. Amir estava entre elas. Como ficamos sabendo alguns dias atrás, conversando com sua mãe, seu corpo ainda não foi encontrado.
O que acha que aconteceu com o corpo? Centenas de cadáveres nunca foram encontrados, como o de Amir. O que aconteceu nesses lugares depois?
É muito difícil dizer, também porque em Gaza não existem mais serviços de saúde, ambulâncias, hospitais e serviços de recuperação para toda a população civil. Então, talvez alguém tenha levado seu corpo ou simplesmente ainda não foi encontrado. Sei que, pelo Hospital Nasser, localizado 2 a 3 km ao norte do centro número 3, quando há incidentes como esse, uma ambulância é enviada para recuperá-los. Portanto, o corpo poderia até ter sido recuperado, mas ainda não identificado. Outra possibilidade está ligada ao fato de que aquela área é uma zona de combate ativa, onde há artilharia e tanques movendo as escavadeiras para limpar o terreno: portanto, é possível que existam civis mortos, soterrados sob os escombros ou esmagados sob a terra.
Quando falou com a mãe de Amir, o que ela lhe disse?
Ela não o via há alguns dias, porque tinha saído para buscar comida com o tio, de quem se separou durante um ataque aéreo. A mulher simplesmente me perguntou: 'O que ele lhe disse? Sabe, o que ele estava fazendo?' Eu disse que estava indo buscar comida, e estava muito grato, agradecido e feliz. É realmente difícil explicar a alguém, especialmente a uma mãe, que seu filho provavelmente está morto.
Muitas escavadeiras israelenses atravessam áreas e arrasam zonas inteiras. Muitas pessoas entrevistadas afirmam que recebem 1.500 dólares por dia cada vez que entram em Gaza para demolir uma casa ou um prédio e depois limpar os escombros. Comparado ao que você viu em outras zonas de combate, como Iraque ou Afeganistão, tem informações sobre práticas similares?
Nos outros conflitos e guerras em que estive envolvido, nunca testemunhei ou vi o nível de violência e o desprezo pela segurança e proteção de civis que testemunhei em Gaza contra os palestinos. E estive em lugares onde a guerra era bastante intensa.
Você já disse que houve no passado um episódio que o perturbou profundamente...
Era 8 de junho. Eu estava na sala de controle perto de Kerem Shalom. Naquele dia, havia muita aglomeração, muito empurra-empurra e pânico. As crianças estavam sendo esmagadas contra o muro de concreto. Um palestino levantou três crianças, uma a uma, até o topo da plataforma para que não fossem esmagadas. Estavam desarmadas; não tinham nada nas mãos. Uma delas nem mesmo vestia uma camiseta. Nenhuma delas tinha sapatos. O oficial de ligação das Forças de Defesa de Israel, um oficial do Comando Sul das IDF na área de Kogat, ficou muito agitado. Ele disse para tirá-las de lá, levá-las embora. Os contratados da UG no local já haviam falado em abatê-las. O oficial alegava que as três crianças eram um problema de segurança. Ele havia ordenado aos atiradores israelenses postados das IDF que as matassem. Claramente, não eram combatentes e não representavam nenhuma ameaça. Estavam assustadas. Nada aconteceu porque as crianças fugiram. Mas ele estava pronto para matá-las. Naquele momento, foi-me explicado que as IDF são meu cliente. Um dos representantes seniores da Safe Reach Solutions me disse para não dizer não ao cliente.
Não dizer não ao cliente. Estava implícito não dizer não, mesmo que isso significasse cometer crimes de guerra?
Tínhamos que obedecer ao cliente, ou seja, às IDF. Mas minha consciência me obriga a não cometer tais crimes, e é por isso que decidi me demitir.
Em Gaza estaria em curso um processo de fome forçada. No entanto, o primeiro-ministro israelense nega que Gaza esteja morrendo de fome. Você viu sinais de fome entre a população de Gaza?
Sim, é muito evidente que a população está morrendo de fome. Estamos nos aproximando de uma carestia total, para toda a população. Qualquer um que negar isso é irresponsável; está traindo a decência humanitária básica. Estamos fornecendo comida dentro de Gaza, mas não água. Agora estamos fornecendo os meios para cozinhar a comida, que deve ser cozida. Eles não podem cozinhar e não têm água. Essa operação é intencional? Sim.
Você disse que a Fundação Humanitária de Gaza é uma armadilha mortal.
Quanto aos centros de distribuição, eles foram construídos deliberadamente em zonas de combate ativas. Os civis precisam de comida, mas para obtê-la precisam atravessar uma zona de guerra ativa e retornar. A GHF os coloca diante da morte.
O primeiro-ministro Netanyahu disse que pretende ocupar Gaza.
Às vezes, depois da guerra, assiste-se à ocupação. Quando se adota uma mentalidade de ocupação, proteger a população civil, salvaguardar a população civil, distinguir combatentes de não combatentes torna-se ainda mais importante. Uma ocupação pelas Forças de Defesa de Israel de um país onde todos estão morrendo de fome, com o Hamas ainda presente, é um risco. Se fizerem isso sem um plano para salvaguardar e proteger os civis, piorarão a situação.
Em dezembro de 2023, o general israelense Ilyand Giora, assessor do Ministério da Defesa, efetivamente redigiu o plano de que se fala. Ele falou em usar a carestia, a fome, as doenças e as infecções como arma. Os Estados Unidos são cúmplices do que está acontecendo em Gaza hoje, já que fornecem as armas?
Os Estados Unidos são cúmplices de crimes de guerra. Com a maior parte da população de Gaza isolada no Norte, por que instalar centros de distribuição em um local onde não há seres humanos, a menos que a intenção seja mover aqueles seres humanos para onde está a comida? A Fundação Humanitária de Gaza está totalmente envolvida. Somos cúmplices e não estamos fazendo nada para mudar. Se os Estados Unidos permitirem que Israel continue nesse caminho, o isolarão do resto do mundo, e isso não é bom para Israel. Isso não é bom para os Estados Unidos. Isso não é bom para o mundo. Essa retórica de que mataremos todos, significa isolar Israel do mundo. Não é positivo para Israel. Digo isso porque, primeiro, sou a favor da humanidade. Sou a favor da dignidade humana. Acho que deveríamos respeitar a vida. É um valor estadunidense. Segundo, os Estados Unidos, fortes aliados e potência mundial, deveriam se levantar e dar o exemplo, dizendo que não haverá tolerância. Terceiro, ajuda o nosso aliado.
Steve Witkoff e Mike Huckabee foram visitar os locais onde você trabalhava. Tinham autorização para ver tudo ou se recusaram a ver alguma coisa?
Quando Witkoff e Huckabee foram no local, a GHF fechou tudo e abriu apenas um centro, disseram às IDF para se comportarem da melhor maneira possível, limitando os tiroteios. Durante a visita, pessoas estavam sendo mortas do lado de fora do centro por causa de tiros de advertência. Eu sabia que seria uma farsa. Há uma foto no X de Huckabee com a imagem da placa de 100 milhões de refeições. Aquela placa está pendurada em um muro de concreto totalmente envolto em arame farpado. O arame farpado é uma violação da Convenção de Genebra quando utilizado em um local de distribuição civil. Eles fotografaram e está tudo bem. As perguntas deveriam ter sido: quantas refeições vocês entregam? Quantas refeições por dia? Qual a distância que os palestinos têm que caminhar? Quanta água recebem? Assim teriam dito que caminham entre 8 e 16 quilômetros por dia. Cada refeição que recebem, se receberem uma caixa de 5 refeições, tem 200 calorias. Então, você queima mais calorias indo buscar uma caixa de comida do que é oferecida pela caixa de comida, e não se recebe água. Isso é fome sistemática.
Israel bombardeou todos os hospitais e o centro de dessalinização de água. Gaza é efetivamente uma terra desolada. No entanto, os europeus, que são os maiores parceiros comerciais de Israel, enviam armas. 30% das armas que Israel recebe também vêm de países europeus.
Para os nossos aliados europeus, bem como ao mundo, minha mensagem é que, apesar de tudo, o comportamento e o tratamento em Gaza não são casuais. São intencionais — a fome, a desumanização dos palestinos, a destruição. Isso não é um acidente. Não é um infeliz subproduto da guerra. E o mundo pode intervir e se opor a tudo isso.
Você fala em responsabilidade, mas o outro lado da responsabilidade é a impunidade total. A sensação é de que Israel se sente totalmente acima da lei. Precisamos implementar um mecanismo para convencer Israel a obedecer e respeitar o direito internacional. Você já teve essas discussões com os parceiros israelenses no campo?
Não. Nessa situação, nossos aliados europeus e os Estados Unidos aprenderam muito nas últimas duas décadas e meia no Iraque e no Afeganistão, na Síria e no sul das Filipinas. Aprendemos o que não fazer. Essa é uma grande oportunidade para trabalhar com o nosso parceiro Israel. Deve haver condições. Temo que isso não acontecerá e que tudo continuará até que o Hamas seja derrotado militarmente. Só então, em países muito pequenos com forças rebeldes reduzidas, uma ação militar funcionará. A ação militar contínua para fazer entrar o Hamas em Gaza não levará a nenhum resultado. Nos próximos dias, o mundo terá uma ideia razoável da verdade do que realmente está acontecendo em Gaza. Justamente como quando os Aliados descobriram pela primeira vez os campos de concentração na Alemanha, ninguém sabia de sua existência nem da Solução Final. E quando vimos pela primeira vez o campo de concentração, não conseguíamos nem entender o que era. Era tão perturbador que até o General MacArthur disse: ‘Quero tudo isso documentado’. Haverá aquele momento nos próximos dias em que o mundo verá pela primeira vez o que está acontecendo, e acabará em uma terra desolada e devastada.
Esse é um dos motivos pelos quais muitos jornalistas internacionais foram impedidos de entrar em Gaza e os jornalistas palestinos fizeram o possível para documentar os crimes?
Sim, a intenção é mantê-lo escondido do mundo até que chegue ao ponto em que seu objetivo já tenha sido alcançado. Mas temo que isso não acontecerá tão rapidamente quanto Israel imagina. Derrotar o Hamas não é tarefa fácil. O Hamas ainda não foi derrotado. Quanto mais destruição você levar, mais pessoas leva para o Hamas, mais terá que matar no Hamas.
Você foi corajoso. Muitos esperavam por uma voz vinda de dentro. Quais fatores influenciaram sua escolha?
Eu não fui o primeiro a pedir demissão. Senti que permanecer anônimo não era responsável. Não se pode sussurrar das sombras e esperar que o mundo mude.
Você está preocupado com sua segurança pessoal?
Sim, fui ameaçado. Os poderosos que querem ganhar dinheiro ou lucrar com a guerra não querem que a verdade venha à tona. Mas eu não podia fazer de outra forma; tinha que dizer a verdade. Os filhos dos nossos filhos um dia se perguntarão por que não fizemos nada, por que ficamos parados olhando. Hoje, médicos, cirurgiões, enfermeiros, forças da ordem e os próprios soldados das IDF estão fazendo isso. Enquanto a resposta da Fundação Humanitária de Gaza é: ‘Vocês todos são Hamas’. É uma afirmação bastante ridícula.
Apesar de todas as evidências e fatos à nossa disposição, os países, especialmente no Norte do mundo, Europa e Estados Unidos, continuam a fechar um olho para o que está acontecendo.
A única coisa que quero dizer é que é necessário não virar as costas a Israel. Mas, ao mesmo tempo, devemos pedir justiça e não permitir que tudo caia na impunidade total. Isso precisa acabar. Vamos garantir nosso lugar na humanidade.