19 Julho 2025
Segundo E. J. Bickermann – citado na introdução pela professora da Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma, leiga, casada e grande conhecedora dos livros proféticos e do Antigo Testamento em geral – o livro de Daniel é um texto bizarro ou “extravagante” por vários motivos: por exemplo, nos seis primeiros capítulos, escritos em terceira pessoa, Daniel é um personagem empreendedor, um sábio capaz de interpretar os sonhos do rei, enquanto na segunda parte do livro (capítulos 7 a 12), escrita em primeira pessoa, ele precisa da ajuda de um anjo para entender as visões que tem.
O artigo é de Roberto Mela, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimanna News, 17-07-2025.
A primeira parte do livro contém principalmente contos, enquanto a segunda parte relata várias visões.
O livro foi escrito em três línguas: hebraico (1.1–2.4a; 8.1–12.13), aramaico (2.4b–7.28) e grego (3.24–90; cc. 13–14: essas partes não existem em hebraico e aramaico).
A versão grega do livro chegou até nós em duas versões: a LXX e a versão teodotiana, que é mais próxima do texto hebraico. Ambas as edições apresentam um texto mais extenso do que a versão hebraica massorética e organizam os capítulos de forma diferente. Por exemplo, a LXX coloca a história de Susana e Bel, o dragão, no fim do livro (capítulos 13-14), enquanto a versão teodotiana coloca a história de Susana no início do texto.
A tradição latina do Livro de Daniel aceita o texto com acréscimos gregos, geralmente considerados deuterocanônicos, complicando ainda mais a situação textual do Livro de Daniel. Talvez o autor tenha trocado o hebraico pelo aramaico e pelo grego por se perguntar se deveria usar a língua sagrada, sob o risco de parecer artificial, ou as línguas faladas, sob o risco de perder parte de sua própria identidade.
Livro "Daniele" de Donatella Scaiola
Em seu comentário, a autora examina o livro como um todo, seguindo a tradução do CEI.
Na tradição judaica, Daniel é encontrado na terceira parte da Bíblia, isto é, nos Escritos, talvez devido à época recente em que o livro foi escrito, provavelmente por volta do século II a.C. Ele está inserido entre Ester e Esdras-Neemias. Isso pode ter significado teológico.
Daniel e Ester, na verdade, contam uma história fictícia de dois judeus que se encontram na corte de um rei estrangeiro e enfrentam, com soluções diferentes, o mesmo problema: como manter e expressar sua identidade em um país estrangeiro e em um contexto potencialmente ou efetivamente hostil? Ester segue o caminho da integração, como José (cf. Gn 37-50), enquanto Daniel prefere manter suas tradições religiosas, por exemplo, em termos de alimentação e recusando-se a adorar a estátua do rei.
Na tradição cristã, Daniel sucede Ezequiel, com quem compartilha o gênero literário apocalíptico, e precede os Doze, ou seja, é contado entre os profetas maiores (Isaías, Jeremias, Ezequiel).
No códice grego do Vaticano, Daniel é inserido no fim do Antigo Testamento, antecipando assim o Evangelho de Mateus, que fala da vinda do Filho do Homem (Mt 26,24; Dn 7,13) e da futura ressurreição, tema prenunciado em 12,2.
Com exceção do Códice Vaticano, ambas as colocações do livro de Daniel fazem sentido teológico, entre os quais – segundo o estudioso – não é necessário escolher.
Quanto à estrutura, alguns autores preferem uma divisão bipartida: cap. 1–6 (histórias relacionadas a Daniel e seus companheiros) e 7–12 (visões de Daniel), ignorando Dn 13–14 (cf. A. Gianto). Outros defendem uma divisão tripartida: após a introdução (cap. 1), seguem em forma quiástica as narrativas A 2–7; B 8–12, as visões; A 13–14, as narrativas (L. Alonso Schökel; B. Marconcini).
Segundo Scaiola, o capítulo 7 é o centro do livro, seu ponto de virada. Diversos motivos podem conectá-lo tanto ao que o precede quanto ao que o segue. Scaiola lê o livro na íntegra, incluindo os capítulos 13 e 14 (não considerados apêndices deuterocanônicos).
O autor apresenta hipóteses acadêmicas sobre o gênero literário: contos sobre o sucesso alcançado pelos judeus em um país estrangeiro potencialmente hostil; histórias de antagonismo em relação a um império estrangeiro; visões que explicam o significado da história, do exílio na Babilônia até o fim do mundo.
Os tópicos debatidos são a identificação do Filho do Homem do cap. 7 e sua relação com a tradição Enoquica.
Outro tópico debatido diz respeito à relação entre o livro de Daniel e a literatura apocalíptica.
Quanto à datação, é preciso ter em mente que o cenário do livro é a Babilônia dos exilados, mas o contexto histórico real é representado pela época de Antíoco IV Epifânio.
A versão final do livro parece datar de cerca de 164 a.C., época de Antíoco Epifânio (175-164 a.C.). O rei selêucida tentou impor à força a cultura helenística na Palestina e, consequentemente, é retratado no livro como uma figura totalmente negativa, o modelo de um perseguidor religioso, que se tornaria até mesmo o tipo do Anticristo na era cristã.
Sobre o propósito do livro, Scaiola argumenta que o autor pretendia apoiar seus compatriotas que sofriam por causa da perseguição desencadeada por Antíoco IV Epifânio e o faz criando uma biografia imaginária de Daniel, um judeu deportado para a Babilônia por Nabucodonosor em 605 a.C., que é educado na corte junto com três amigos.
Daniel ("quem me julga é Deus") é um nome que também aparece em outras partes do Antigo Testamento e se refere a vários personagens: um herói do passado mencionado juntamente com Noé e Jó em Ezequiel 14,14, 20; 28,3; um filho de Davi (1 Crônicas 3,1); um veterano do exílio babilônico (Esdras 8,2); um sacerdote que assinou um pacto na época de Neemias (Ne 10,7). Este nome também aparece no Livro de Enoque.
O autor do livro provavelmente se inspirou em algumas lendas que circulavam em vários círculos e que giravam em torno de um herói particularmente sábio, e fez dele Daniel, um judeu exilado na Babilônia.
O livro descreve uma possível resposta à opressão, oferecendo razões de esperança ao crente que, por causa de sua fidelidade a Deus, perdeu toda a segurança humana.
Em apoio a essa esperança, o autor oferece uma leitura da história que aponta para a vinda do reino de Deus, que se opõe aos poderes políticos vigentes, cujo fim está decretado. Essa declaração de fé é expressa de forma diferente nas histórias da primeira parte e nas visões apocalípticas dos capítulos 8 a 12.
O livro levanta questões muito oportunas. Por exemplo: onde está Deus quando os poderosos oprimem os fracos? Como devemos nos comportar diante do mal, especialmente quando ele parece prevalecer sobre o bem? O livro de Daniel, e a literatura apocalíptica em geral, levantam, segundo Scaiola, a questão da relação entre fé e cultura, que, tanto historicamente quanto na Bíblia, assumiu, em diferentes momentos, a forma de diálogo ou de oposição.
O livro também enfatiza com força a necessidade de fazer uma escolha radical em relação à vontade de Deus, uma opção que não permite a possibilidade de tomar uma posição intermediária.
Por fim, Scaiola menciona a importância da intertextualidade na interpretação do livro, que se apresenta como uma escrita construída sobre outras escritas.
O autor menciona, por exemplo, que Daniel 2 é um midrash de Gênesis 41; Daniel 9 é uma releitura de Jeremias; a ideia é que a leitura das Escrituras é uma ferramenta essencial para discernir os tempos em que o crente se encontra vivendo.
Scaiola analisa vários capítulos do Livro de Daniel, seguindo as etapas características da série na qual este volume está incluído: texto e estrutura, leitura (com a subdivisão do texto em perícopes distintas e intituladas), interpretação e atualização.
A estudiosa analisa primeiro Dan 1 ("Na Corte do Rei Nabucodonosor") e, em seguida, o cap. 2 ("O Sonho de Nabucodonosor"), que é uma história sobre a interpretação do sonho do rei. Os caps. 3–4 são omitidos, pois abordam o mesmo tema. Em seguida, ela estuda o cap. 3 ("Da Fornalha Ardente Sobe o Louvor"), uma história de perseguição na qual três jovens aparecem e a oração de Azarias e o cântico dos três jovens são cantados. O cap. 3 é paralelo ao cap. 6.
Atenção especial é dada ao capítulo 7 ("A Visão do Filho do Homem"), considerado por Scaiola o centro do livro e de grande relevância tanto para o Antigo quanto para o Novo Testamento. A introdução é seguida pela visão, sua interpretação, a explicação da visão das bestas, da quarta besta e a conclusão.
Na parte referente às visões, Scaiola analisa os capítulos 8–9 (com foco na história e sua interpretação) e o capítulo 12, que faz alusão ao tema da ressurreição.
O volume conclui com uma análise de Daniel 13, que narra a história de Susana. Muitos autores consideram os capítulos 13 e 14 um apêndice deuterocanônico e os ignoram em seus estudos. A introdução é seguida pela apresentação dos anciãos, Susana e os anciãos, o julgamento, Daniel e a conclusão.
O volume é enriquecido por um “pequeno léxico” (“pequeno” mas muito útil) (pp. 123-128) e pela bibliografia (pp. 129-132).
Como exemplo, citemos a explicação do título “Filho do Homem”. “Esta expressão”, escreve o autor, “significa simplesmente ‘homem’, um ser humano distinto dos animais e dos seres celestiais. Dentro do mundo judaico, este significado persistiu até o século II a.C., e mesmo no Livro de Daniel a expressão, sem o artigo, retém este significado. A partir de Daniel 7, contudo, começaram as especulações sobre a existência de um personagem particular assim chamado. Por exemplo, no Livro das Parábolas de Enoque, ‘o filho do homem’ torna-se um epíteto aplicado a uma figura messiânica e, mais tarde, torna-se um importante título cristológico” (p. 125).
Em sua conclusão, Scaiola confirma que o Livro de Daniel é um livro bizarro, desconcertante e, em alguns aspectos, até mesmo único (trilíngue, colocado entre os Profetas na tradição católica e entre os Escritos na tradição judaica). Daniel, no entanto, é um livro interessante e oportuno porque oferece uma interpretação complexa da história, uma reinterpretação original de textos bíblicos anteriores e uma ampla reflexão sobre o tempo e o poder.