26 Junho 2025
Leão XIV envia forte carta em defesa dos repórteres assediados no país andino por seus artigos sobre o grupo ultraconservador Sodalício e aponta tolerância zero ao escândalo.
A reportagem é de Francisco Rodríguez, Renzo Gómez Vega e Íñigo Domínguez, publicado por El País, 21-06-2025.
Nesta sexta-feira, no Peru, Leão XIV emitiu uma forte mensagem pessoal de tolerância zero à pedofilia e aos abusos sexuais, o que é inédito, especialmente por seu apoio explícito, nominal e de sobrenome, aos jornalistas que investigaram um caso neste país, o do grupo ultraconservador Sodalício de Vida Cristã (SCV), dissolvido por Francisco em janeiro deste ano: “É urgente enraizar em toda a Igreja uma cultura de prevenção que não tolere nenhuma forma de abuso, seja de poder ou autoridade, de consciência ou espiritualidade, ou sexual. Essa cultura só será autêntica se nascer da vigilância ativa, de processos transparentes e da escuta sincera daqueles que foram feridos. Para isso, precisamos de jornalistas.”
A mensagem, que sugere que seu mandato fortalecerá o combate aos abusos, foi lida durante uma apresentação da peça "Projeto Ugaz" em um dos auditórios do teatro La Plaza, no bairro de Barranco, em Lima. Trata-se de um texto inspirado no trabalho da jornalista Paola Ugaz e de outros repórteres, que vêm sendo perseguidos pela justiça e pela mídia no Peru desde 2015 por suas investigações. O Sodalício, com características de seita e difundido entre as classes altas do país, também foi um império econômico com conexões influentes na mídia e nas instituições peruanas.
O Papa, que viveu muitos anos no país andino, foi bispo de Chiclayo até 2023 e está bem ciente do que aconteceu, mencionou-os especificamente: “Hoje gostaria de agradecer particularmente a Paola Ugaz pela sua coragem em ir ao Papa Francisco em 10 de novembro de 2022 e pedir proteção contra os ataques injustos que ela e outros três jornalistas, Pedro Salinas, Daniel Yovera e Patricia Lachira, sofreram por denunciar os abusos cometidos por um grupo da Igreja com sede em vários países, mas nascido no Peru. Entre as muitas vítimas de abuso, havia também os de abuso econômico, os membros da comunidade de Catacaos e Castilla, o que tornou o que foi relatado ainda mais intolerável.” O encontro dos jornalistas com Francisco mudou tudo: alguns meses depois, o papa argentino enviou uma missão especial para investigar o caso.
A carta foi lida no final do espetáculo por um dos membros dessa missão especial, o padre espanhol Jordi Bertomeu — o outro era o maltês Charles Scicluna — que também tem sido alvo de ataques judiciais e midiáticos. Em sua mensagem, Leão XIV fez um apelo em defesa do trabalho da imprensa na descoberta de escândalos, tarefa na qual o El País também tem colaborado, tendo descoberto o caso do cardeal e ex-arcebispo de Lima, Juan Luis Cipriani, do Opus Dei, em janeiro passado . “A liberdade de imprensa é um bem comum inalienável. Quem exerce esta vocação com consciência não pode ver sua voz silenciada por interesses mesquinhos ou pelo medo da verdade. A todos os comunicadores peruanos, ouso dizer com afeto pastoral: não temam. Com seu trabalho, vocês podem ser arquitetos de paz, unidade e diálogo social. Sejam semeadores de luz em meio às sombras”, disse o Papa.
O próprio Papa está bem ciente dessas sombras, tendo sido alvo de uma campanha midiática para se aliar às vítimas e aos jornalistas no Peru, que durou até sua eleição em 8 de maio. A investigação sobre o Sodalício começou quando Pedro Salinas, um jornalista que havia sido Sodalício (membro da organização), propôs a Paola Ugaz que trabalhassem juntos em uma tarefa difícil: investigar os segredos do Sodalício. Seria apenas por quatro meses, ele lhe disse. Ele conhecia depoimentos, em sua maioria anônimos, de pessoas que alegavam ter sofrido todo tipo de abuso nas mãos de seus fundadores, leigos consagrados e padres.
Ugaz aceitou. Os quatro meses se transformaram em 15 anos. Juntos, publicaram um livro em 2015 que desvendou o caso. Então, ela foi processada, foi a julgamento, recebeu condecorações, foi processada novamente e continuou. Depois de perder grande parte de sua vida no caminho, em 2025, a luz se iluminou: o Papa Francisco dissolveu definitivamente o Sodalício, e Robert Prevost, o bispo de Chiclayo que acompanhou de perto todo o processo e se tornou seu grande aliado na Santa Sé, foi eleito seu sucessor.
A peça, escrita pelas atrizes e dramaturgas Vera Castaño e Rocío Limo, e dirigida por Diego Garguervich, narra a luta do jornalista. Vários dos protagonistas da história estavam presentes, incluindo Pedro Salinas e José Enrique Escardó, o primeiro jornalista a denunciar o abuso sofrido por dezenas de jovens nos centros de formação da organização.
Jordi Bertomeu também estava presente, surpreendendo o público ao ler a mensagem de Leão XIV, escrita especialmente para a peça. Essa aprovação confirma que ele não perdeu de vista o caso. “Esta peça não é apenas teatro: é memória, denúncia e, acima de tudo, um ato de justiça. Por meio dela, as vítimas da extinta família espiritual do Sodalício e os jornalistas que as acompanharam – com coragem, paciência e fidelidade à verdade – iluminam o rosto ferido, mas esperançoso, da Igreja. A luta de vocês por justiça é também a luta da Igreja”, expressou o Papa.
“Hoje, mais uma vez, elevo minha voz com preocupação e esperança ao olhar para o meu amado povo peruano. Neste momento de profundas tensões institucionais e sociais, defender um jornalismo livre e ético não é apenas um ato de justiça, mas um dever de todos aqueles que anseiam por uma democracia forte e participativa. A cultura do encontro não se constrói sobre discursos vazios ou histórias manipuladas, mas sobre fatos narrados com objetividade, rigor, respeito e coragem. Por isso, instamos as autoridades peruanas, a sociedade civil e todos os cidadãos a protegerem aqueles que, das rádios comunitárias à grande mídia, das áreas rurais à capital, relatam com integridade e coragem. Onde um jornalista é silenciado, a alma democrática de um país se enfraquece”, disse o Pontífice, um agostiniano americano que iniciou sua missão no Peru em meados da década de 1980 na cidade de Chulucanas e se naturalizou peruano em 2015.
O Papa Leão XIV concluiu sua mensagem com uma exortação: “Rezo para que esta obra seja um ato de memória, mas também um sinal profético. Que ela desperte os corações, incite as consciências e nos ajude a construir uma Igreja onde ninguém mais deva sofrer em silêncio e onde a verdade não seja vista como uma ameaça, mas como um caminho para a libertação.” O público respondeu com aplausos estrondosos. Bertomeu elogiou o gesto: “Esta carta poderia estar ali ou não, mas escolheu estar ali para uma peça teatral encenada em Lima. O Papa escolheu estar presente.”
Para Bertomeu, nomeado pelo Papa Francisco para liderar o processo de liquidação dos bens do Sodalício, o que falta na Igreja e na sociedade é "uma reflexão profunda sobre o poder". "Temos que entender que poder dá origem ao abuso. Por que algumas pessoas precisam abusar de outras para viver? É o oposto do cristianismo. O poder se encarna para que o outro tenha vida. Por outro lado, no poder pervertido, vocês estão a meu serviço", refletiu.
O padre espanhol também se manifestou contra a inação das instituições republicanas do Peru, que não acolheram as vítimas, e alertou para o perigo representado por esse grupo que o atacou nos últimos meses, menosprezando seu trabalho: "Se ousam levar um enviado papal com nacionalidade espanhola, passaporte diplomático e a estrutura do Vaticano por trás dele... moral: o que não farão com um miserável que não tem influência alguma?"
Paola Ugaz e outros participantes do evento enfatizaram que, embora o Sodalício tenha sido dissolvido, sua máquina não perdeu força: “Eles são donos de muitas empresas. Nove cemitérios são administrados em um fundo fiduciário pelo prefeito de Lima, Rafael López Aliaga, que quer se candidatar à presidência em 2026. Ele é um bandido. Ele lida com dinheiro e sabe que pode ajudar seu amigo Jaime Baertl (um padre e mentor financeiro do grupo).” Alguns participantes também apontaram que denunciar a Igreja não os torna menos cristãos e que as vítimas devem estar no centro das reparações. O Projeto Ugaz, abençoado por Leão XIV, ficará em cartaz até 29 de junho no Teatro La Plaza.
