15 Mai 2025
"Sob sua liderança, o Uruguai se tornou referência mundial em políticas progressistas: legalizou o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e, de maneira inédita, regulamentou o mercado da maconha, enfrentando abertamente os interesses conservadores e o tráfico de drogas. E não o fez em nome de modismos, mas de princípios: 'Não é bonito legalizar a maconha, mas pior é dar pessoas ao narcotráfico', dizia", escreve Bruno Fabricio Alcebino da Silva, bacharel em Ciências e Humanidades e graduando em Relações Internacionais e Ciências Econômicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC), em artigo publicado por A terra é redonda, 14-05-2025.
Perdemos “Pepe Mujica”. Mas perder, aqui, não significa ausência – porque homens como ele se tornam sementes. Sua partida é a lembrança viva de que otros mundos son posibles [1], mesmo quando o presente insiste em nos dizer o contrário.
José Alberto Mujica Cordano, o “Pepe”, nascido em Montevidéu em 1935, filho de uma família modesta com raízes rurais e imigrantes, Mujica cresceu entre o campo e a cidade, entre a humildade e o desejo de justiça. Seu mergulho na política não veio do cálculo, mas da indignação. Inspirado pelas ideias do socialismo latino-americano (principalmente pela Revolução Cubana de 1959) e pelas injustiças que testemunhava, tornou-se militante do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros, nos anos 1960.
Ao contrário das caricaturas simplistas, os Tupamaros não eram apenas guerrilheiros: eram, sobretudo, jovens intelectuais e trabalhadores que buscavam uma via revolucionária para combater a concentração de terra, riqueza e poder no Uruguai. Sua biografia é, como ele mesmo dizia, a prova de que “triunfar na vida não é ganhar. Triunfar na vida é levantar e recomeçar cada vez que se cai”.
Foi baleado seis vezes, preso quatro vezes, e passou quase 14 anos atrás das grades, grande parte deles em condições sub-humanas. Foi mantido em solitárias, em calabouços, sob tortura psicológica. Em vez de sair dali com ódio, saiu com uma filosofia. E é isso que distingue Pepe Mujica: ele não retornou à política como vingança, mas como reinvenção. “Aqueles anos de solidão foram provavelmente os que mais me ensinaram […]. Tive que repensar tudo e aprender a me aprofundar em mim mesmo, às vezes, para não enlouquecer”, afirmou certa vez. Sua libertação, após o fim da ditadura militar uruguaia, foi também o começo de uma nova etapa em sua vida – não mais como combatente armado, mas como semeador de um projeto ético e coletivo de sociedade.
Como um dos fundadores do Movimento de Participação Popular (MPP), Pepe Mujica ajudou a construir a Frente Ampla como força política plural, democrática e profundamente enraizada nos movimentos sociais. E foi por meio dessa frente que chegou à Câmara e ao Senado, depois ao Ministério da Agricultura, e, finalmente, à Presidência da República em 2010. Seu governo (2010–2015) não foi perfeito, mas foi profundamente transformador.
Sob sua liderança, o Uruguai se tornou referência mundial em políticas progressistas: legalizou o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e, de maneira inédita, regulamentou o mercado da maconha, enfrentando abertamente os interesses conservadores e o tráfico de drogas. E não o fez em nome de modismos, mas de princípios: “Não é bonito legalizar a maconha, mas pior é dar pessoas ao narcotráfico”, dizia.
Internacionalmente, Pepe Mujica não buscou protagonismo. Mas protagonizou, mesmo assim, os gestos mais simbólicos da ética política do século XXI. Em seu discurso na Rio+20, em 2012, diante de chefes de Estado de todo o mundo, proferiu uma das mais radicais críticas ao modelo de civilização baseado no consumo: “o desenvolvimento não pode ser contra a felicidade. Tem que ser a favor da felicidade humana: do amor pela vida, das relações humanas, do cuidado com os filhos, de ter amigos, de ter o essencial. Justamente porque esse é o maior tesouro que temos: a felicidade”.
Sua filosofia é uma síntese de existencialismo simples e radicalismo ético. Pepe Mujica nos desafiava a abandonar a idolatria do mercado, da acumulação, da competição selvagem, e nos convocava a pensar a política como serviço, como cuidado, como solidariedade. Acreditava, como poucos, que as instituições não bastam se não forem habitadas por valores. Por isso, sempre recusou os luxos do cargo: abriu mão de 90% de seu salário presidencial, continuou morando em sua chácara em Rincón del Cerro, nos arredores de Montevidéu, dirigindo seu Fusca azul, recebendo companheiros de luta e adotando cães abandonados.
Num tempo em que a política virou espetáculo e os políticos viraram marcas, Pepe Mujica permaneceu homem. Humano, falível, mas profundamente coerente. Suas falas desconcertavam os tecnocratas porque traziam à tona aquilo que a lógica capitalista prefere esconder: o essencial. E sua vida, marcada por tantos sofrimentos, se converteu em símbolo da esperança persistente de um continente acostumado a resistir.
Ele acreditava em um socialismo ético, enraizado no humanismo latino-americano, e defendia que o grande dilema de nosso tempo não era apenas a pobreza material, mas a colonização dos desejos. “Pobre não é quem tem pouco, mas verdadeiramente pobre é aquele que necessita infinitamente de muito e deseja cada vez mais”, dizia, virando do avesso o dogma consumista que sustenta o capitalismo global. Sua filosofia política era, ao mesmo tempo, simplicidade camponesa e sofisticação moral. Um grito contra o desperdício, a desigualdade, o egoísmo neoliberal.
Ao lado de figuras como Salvador Allende, Paulo Freire e Ernesto Che Guevara, Pepe Mujica integra a constelação dos latino-americanos que não se deixaram corromper nem pela dor, nem pelo poder. Sua utopia não era uma abstração romântica – era uma prática cotidiana, uma postura diante da vida. Ele provava, com seu exemplo, que é possível fazer política sem mentir, sem enriquecer, sem se afastar do povo. Isso, por si só, já é revolucionário.
Sua fala na Assembleia Geral da ONU, em 2013, permanece como um dos manifestos mais impactantes da história contemporânea. “Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão”, declarou, levando chefes de Estado a refletirem diante da simplicidade de um camponês que enunciava verdades milenares. “Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado” (ONU, 2013).
Anos depois, refletindo sobre sua trajetória pessoal, Pepe Mujica resumiria esse pensamento com a lucidez de quem conheceu a escassez e recusou os excessos: “Aprendi que, se você não pode ser feliz com poucas coisas, não vai ser feliz com muitas coisas” – um ensinamento que se tornou sua marca e sua crítica mais contundente à lógica do consumismo moderno.
Ao nos despedirmos de Pepe Mujica, não enterramos um político – celebramos um símbolo. Um raro exemplo de coerência entre vida e palavra. De humildade como forma de poder. De radicalidade como expressão do amor ao povo. Pepe Mujica foi, como diria Eduardo Galeano – seu compatriota de sonhos e lutas –, um daqueles seres que ardem a vida com tanta paixão que transformam tudo ao redor.
Como escreveu Eduardo Galeano em El libro de los abrazos (1998, p. 5): “Não há dois fogos iguais. Há fogos grandes e fogos pequenos, fogos de todas as cores. Há gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco que enche o ar de faíscas. Alguns fogos, fogos bobos, não iluminam nem aquecem. Mas outros ardem a vida com tanta paixão que não se pode olhá-los sem piscar, e quem se aproxima se incendeia”.
O escritor uruguaio dizia que a utopia serve para que a gente continue caminhando. Pepe Mujica foi esse andarilho da utopia, semeando caminhos por onde passava. Sua morte, quando nos alcança, não deve ser lida como fim, mas como testemunho: de que a vida pode ser digna, e de que o mundo, mesmo este mundo esmagado pelo cinismo e pelas mercadorias, ainda pode ser outro.
Hoje, perdemos Pepe Mujica. E ao mesmo tempo, ganhamos a obrigação de manter sua chama acesa — nos movimentos populares, nas universidades, nas assembleias, nas ocupações, nas palavras que ainda ousam sonhar.
Porque sim, Pepe, otros mundos son posibles.
E a tua vida foi a maior prova disso. Hasta siempre!
CAETANO, Gerardo (org.). José Mujica: otros mundos posibles. Montevidéu: Editorial Planeta, 2024.
GALEANO, Eduardo. El libro de los abrazos. Siglo XXI Editores, 1998.
MUJICA, José. Una oveja negra al poder: confesiones del presidente mais querido e mais odiado. Entrevistas de Andrés Danza e Ernesto Tulbovitz. Barcelona: Debate, 2016.
MUJICA, José. Discurso na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), Rio de Janeiro, 2012.
ONU. Discurso de José Mujica na 68ª Assembleia Geral da ONU. Nova York, 2013.
[1] Em referência ao livro que analisa a trajetória política e filosófica de Mujica sob múltiplas perspectivas, especialmente seu pensamento internacionalista. Cf. CAETANO, Gerardo (org.). José Mujica: otros mundos posibles. Montevidéu: Editorial Planeta, 2024.