27 Março 2025
"O Papa Francisco é um papa exigente: percebeu a urgência profética a que tentou obedecer como um caminho a seguir pela Igreja. Mas tenho a impressão de que ele não foi compreendido e que, muitas vezes, as pessoas mais próximas a ele, que também costumam ser os “especialistas”, não conseguem ver com um olhar límpido quanto o dele o que precisa ser feito na vida da Igreja, inclusive os bispos nomeados por ele", escreve o monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por Vita Pastorale, 25-03-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Este é um artigo escrito há alguns meses, que posteriormente reli, aparei e melhorei. Pedi que fosse lido por amigos teólogos, para que pudessem corrigir ou completar minhas afirmações. E só agora decidi publicá-lo porque gostaria de vê-lo publicado enquanto o Papa Francisco ainda está vivo e não há um seu sucessor. São palavras, as minhas, meditadas, pensadas, cheias de parresia; palavras não faladas, retidas como o profeta Jeremias as guardou em seu coração, que, sendo o profeta fiel que era, não queria ser surdo às palavras de Deus e, ao mesmo tempo, mudo para com seu povo Israel.
Não sou um radical nem um maximalista. E não sou movido por nenhuma ideologia ao olhar para as Igrejas na história, mas, embora continue sendo um batizado na Igreja Católica, simplesmente me sinto um cristão que toma a palavra para lembrar as exigências que Jesus ditou a seus discípulos. Continuo convicto de que, como os discípulos e as discípulas da comunidade do Senhor, somos todos apenas irmãos e irmãs, e que devemos humildemente, mas abertamente, dizer uns aos outros o que consideramos urgente para a comunidade do Senhor, que está na história no aguardo de ser purificada, embelezada, santificada para se tornar a noiva de Cristo, a Jerusalém celestial.
Sim, porque devo dizer que na nossa Igreja - e é meu dever limitar-me à Igreja que conheço, ou seja, a Igreja ocidental (da Polônia a Portugal, até a América do Norte) - a Igreja Católica, que vive o status de maioria, embora não mais de hegemonia, mostra todo seu desgaste, a falta de fé; uma Igreja mais burocrática do que viva. É a essa Igreja que me refiro neste artigo, a nossa, e não ouso pensar nas Igrejas da diáspora — desde a Igreja da Mongólia até a Igreja do Oriente Médio, e muitas outras —, àquelas que conhecem o martírio em lugares onde a Eucaristia é impedida e aqueles que professam nossa fé são perseguidos.
E, no entanto, a nossa Igreja nasceu como povo sacerdotal e profético, e quando o Apóstolo Paulo indica os dons que devem estar presentes em uma comunidade cristã, necessários para que ela assim seja chamada, ele sempre coloca os profetas ao lado dos apóstolos, seguidos por aqueles que ensinam. A Igreja não monopoliza a profecia, mas sente sua urgência e continua sendo o local natural onde os profetas podem se expressar para discernir como o Senhor trabalha dentro dela. “Todos os povos têm seu profeta”, lembrava Agostinho em Contra Faustum (PL 42, 348), mas na Igreja a profecia deve emergir ao lado do apostolado.
O Concílio Vaticano II reafirma o tríplice ofício de Jesus Cristo — sacerdote, profeta e rei — e estende essas prerrogativas a todos os fiéis, ao povo de Deus. O cristão é dotado, portanto, do sensus fidei, a intuição espiritual, o instinto que sabe discernir o autêntico sentido da Palavra e harmoniza a ela toda a sua vida. É precisamente o Espírito Santo doado a cada cristão no batismo e na confirmação que constitui e constrói a Igreja como povo profético “cuja luz resplandece diante dos olhos do mundo” para que possa prestar glória ao Pai que está nos céus (cf. Mt 5,16).
Nos dias após o Pentecostes, na Igreja nascente, não há apenas a consciência de ser o povo profético predito pelos profetas como destinatário do derramamento do Espírito (cf. G13,1-2 e Atos 2,17 e s.), mas surgem profetas entre os discípulos do Senhor Jesus. Os Atos dos Apóstolos testemunham a presença e a ação deles.
Barnabé, Ágabo, Judas, Silas, Simeão chamado Níger, Lúcio de Cirene, Manaém e as filhas de Filipe: profetas e profetisas reconhecidos como tais por seu ministério pela comunidade. Deve-se reconhecer uma presença profética significativa, que o apóstolo Paulo convida a discernir e a não extinguir, porque na Igreja não são apenas os apóstolos e seus sucessores que presidem, mas também os profetas (sempre em segundo lugar) e, depois, os didatas, os mestres da fé. Ninguém pode impedir que os próprios bispos sejam profetas, como foi o caso no passado, especialmente no Oriente.
Até a metade do primeiro século, o ministério profético era, portanto, visível, presente, aceito e apreciado na Igreja, mas depois veio uma geada repentina que impediu qualquer manifestação dele. Desde então, até hoje, os profetas aparecem na vida da Igreja, mas raramente, e são, como sempre, obstaculizados e até perseguidos justamente pela Igreja que amam, a ponto de sofrerem por causa disso. Se Justino (século II) podia afirmar no seu Diálogo com o rabino Trifão: “Nós, cristãos, temos hoje o que vocês, judeus, tiveram no passado e agora não têm mais: os profetas!”, a Igreja do século II em diante não só não pode dizer isso, mas prefere não ter que dizer.
No entanto, hoje a urgência profética parece forte no horizonte de nossa Igreja. Precisamos de profetas!
É claro que o poema de Nelly Sachs sempre ressoa: “Se os profetas irrompessem [...] você saberia os ouvir?” Mas precisamos que vozes proféticas que se levantem em todo o corpo eclesial, precisamos que apareçam sinais proféticos!
Hoje, mais do que nunca, até mesmo nos documentos da Igreja, escritos pelos costumeiros especialistas do setor, se ousa a falar de profecia e profetas: é uma superficialidade que causa espanto. Chegou-se ao ponto de programar uma “fase profética” no plano “sinodal” da Igreja italiana, como se fosse possível ter o Espírito Santo à disposição e programá-lo. Mas é possível que ninguém entre os bispos se dê conta de quanto vazio é produzido pelos costumeiros especialistas que, de um Sínodo para o outro, compilam documentos preparatórios ou redigem documentos finais que repetem as mesmas coisas que já foram ditas e repetidas várias vezes?
Por que tantas referências ao bispo Tonino Bello, que hoje todos querem ver santo, quando ele era objeto de sorrisos tortos e juízos pouco caridosos de seus coirmãos não mais de trinta anos atrás? E por que tanto afã para proclamar santo o bispo Romero, quando ninguém se sentiria de adotar sua coragem em uma homilia? Profecia significa aceitar a hostilidade não apenas do mundo, mas dos próprios familiares, de nossa casa, da nossa comunidade, simplesmente como aconteceu com Jesus. Pouquíssimos são os bispos que conhecem a parresia, a coragem de defender aqueles que são objeto de injustiça, de levantar a voz quando necessário, de assumir uma palavra profética... Já sonhei que alguns padres se tornassem bispos, dei meu parecer favorável a alguns deles, mas depois que assumiram a função, vivem de forma apagada a sua tarefa como pastores, e certamente não desponta nenhum traço de profecia. Por quê? E às vezes são justamente eles que estão prontos para extinguir a profecia que aparece no povo de Deus. E por que, em algumas ordenações episcopais, vimos os ordenados sorrindo o tempo todo, como se sentissem satisfação por terem finalmente “chegado”? Qual é o nível de consciência daqueles que acedem a um ministério tão grave e tão importante na Igreja, um ministério instituído pelo Espírito Santo?
O Papa Francisco — podemos dizer isso depois de doze anos de ministério petrino — indicou outro estilo, ensinou a humildade, o serviço e a escuta dos sinais dos tempos e dos profetas, a ponto de dar várias vezes à Igreja um rosto profético. Não padeço de papolatria: amei Bento XVI e amo ainda mais Francisco, dois papas que tive oportunidade de conhecer e considerar amigos. Uma vez critiquei Bento XVI e falei diretamente com ele sobre isso; disse ao Papa Francisco o que penso e sempre encontrei escuta, na verdade, encontrei um olhar mais profundo sobre os horizontes da Igreja. O Papa Francisco é um papa exigente: percebeu a urgência profética a que tentou obedecer como um caminho a seguir pela Igreja. Mas tenho a impressão de que ele não foi compreendido e que, muitas vezes, as pessoas mais próximas a ele, que também costumam ser os “especialistas”, não conseguem ver com um olhar límpido quanto o dele o que precisa ser feito na vida da Igreja, inclusive os bispos nomeados por ele.
Será que nos tempos futuros haverá profetas e especialmente bispos com qualidades proféticas visíveis atuando na Igreja e capazes de respeitar a profecia manifestada no povo de Deus?