18 Outubro 2024
O arqueólogo e cientista do Conselho Superior de Investigações Científicas – CSIC, Alfredo González Ruibal, recebeu o Prêmio Nacional de Ensaio 2024 por Tierra arrasada (Crítica), “uma resposta necessária ao porquê da guerra e da violência” que eleva “a categoria da arqueologia de ciência à ética”, segundo o Ministério da Cultura [Espanha].
A entrevista é de Henrique Mariño, publicada por Público, 16-10-2024. A tradução é do Cepat.
O que os ossos nos dizem?
Nos ossos está boa parte da nossa história coletiva e social, como membros de uma sociedade, e também da nossa história pessoal, com as vicissitudes que sofremos. No caso dos conflitos de violência, falam-nos das brutalidades e dos abusos que determinadas pessoas sofreram na guerra, sejam como combatentes, sejam como civis que foram assassinados.
Os vestígios arqueológicos têm ideologia?
Os vestígios arqueológicos são muitas vezes a materialização de ideologias do passado, e depois vem a ideologia daqueles entre nós que os interpretam. Mas, acima de ambas as ideologias, nós pesquisadores tentamos registrá-los da forma mais objetiva possível. Ou seja, buscamos trazer à luz as histórias que estão nos contando.
Através dos vestígios, conecta-se mais com algumas pessoas do que com outras, em função do lado a que pertenciam, ou sempre se estabelece um vínculo?
No caso da guerra civil, exumamos soldados caídos de ambos os lados. O próprio trabalho de exumação inevitavelmente faz com que você tenha empatia pelas pessoas que morreram. É uma relação muito íntima devido ao tempo que você gasta resgatando esses ossos. É difícil não ver algo a mais por trás dos restos, ou seja, histórias humanas.
De fato, quando você encontrou restos de soldados rebeldes em uma escavação em Guadalajara, defendeu que deveriam ser enterrados, entre aspas, com honras.
Os caídos na guerra têm o direito de ser enterrados com dignidade, sejam de um lado ou de outro, independentemente de qual é a nossa posição política. Ninguém merece ser esquecido e destruído, nem que seus restos sejam tratados como se fossem de um animal. Embora possa ser um pouco polêmico, penso que é diferente no caso dos verdugos.
Antes, eu me referia aos soldados que caíram em combate, em muitos casos recrutas que combatiam do lado que lhes couberam. No entanto, quando falamos de verdugos, como os guardiões dos campos nazistas, tenho sérias dúvidas de que estes indivíduos mereçam qualquer tipo de respeito.
A arqueologia explica a história através dos achados, mas também a partir da ausência. Assim, um povoado sem restos mortais de mulheres pode indicar que foram sequestradas, escravizadas ou submetidas a casamentos forçados.
As ausências podem ser tremendamente eloquentes. Outro exemplo: em uma região onde trabalhamos, na fronteira entre a Etiópia e o Sudão, no início do século XIX, os sítios arqueológicos desaparecem. De repente, não há mais nada e por 150 anos este lugar está completamente vazio, embora até aquele momento existiam muitos povoados.
O que aconteceu? Um genocídio esquecido: as tropas otomanas arrasaram a região por volta de 1820 e escravizaram todos os seus habitantes. Quais são os vestígios que temos hoje? Efetivamente, a ausência, ou seja, o desaparecimento da presença humana naquele lugar. Isso também aconteceu na Patagônia e na Terra do Fogo, para citar outros casos.
A Europa exportou essa desumanização: do Holocausto ao genocídio de Ruanda.
É necessário fazer uma ponderação. Na violência extrema, uma multiplicidade de culturas é englobada, não é algo exclusivo da Europa. O que caracteriza a modernidade europeia – não a civilização e a cultura europeias, mas o fato específico da modernidade, a partir do final do século XV e de modo já muito claro no século XVIII – é uma forma específica de praticar a violência que desumaniza o outro, até o ponto, já no século XIX, de desumanizá-lo completamente.
Ou seja, de considerar que não é um ser humano autêntico e que, como ser humano incompleto ou não humano, pode ser extirpado da face da terra e aniquilado. Este tipo de violência é característico da modernidade e tem muito a ver com a forma como a modernidade entende o mundo, como o classifica e ordena etc.
Aplicamos essa perspectiva da ordem e da classificação às culturas humanas. Então, a modernidade europeia considera que existem grupos que estão fora do tempo, que não são humanos e que o ordenamento do mundo requer que desapareçam. É o caso dos aborígenes da Tasmânia, que são completamente aniquilados, ou dos já citados indígenas da Terra do Fogo.
Depois, esse tipo de violência aniquiladora, que busca o extermínio total de outro grupo humano e que é algo excepcional ao longo da história, porque só a vemos de forma tão clara na contemporaneidade, é utilizada por culturas não europeias, como no caso dos hutus com os tutsis, em Ruanda, e dos Quemeres Vermelhos, no Camboja.
É necessário relativizar os conceitos de povos primitivos e civilizados, porque por vezes vemos outros territórios com condescendência, mas, em seu momento, a África já foi mais pacífica do que a Europa. Basta pensar no desenvolvimento que a Alemanha alcançou no início do século XX...
É necessário ver o que entendemos por civilização. Se é uma questão puramente material e tecnológica, então, a Alemanha do início do século XX era o cume da civilização. Quando pensamos em termos morais, provavelmente qualquer tribo da África subsaariana ou da Austrália estava muito mais desenvolvida do que a Alemanha. E não me refiro apenas à própria ideia de extermínio, mas, em geral, à forma de entender a sociedade e as relações entre os seres humanos.
As fossas comuns desumanizam, embora já existissem no neolítico. Uma prova irrefutável do horror, às vezes negado, escanteado ou silenciado.
Quando encontramos restos mortais de homens, mulheres, crianças e idosos, as fossas comuns são a prova mais indiscutível de que o que aconteceu é uma forma de violência completamente excessiva e fora de qualquer norma.
A arqueologia é um dos argumentos mais poderosos contra a guerra?
A arqueologia serve para dessublimar a guerra. Sobretudo, em períodos mais remotos, porque no século XX temos imagens muito poderosas de crimes de guerra que sacudiram as nossas consciências e configuraram uma nova forma de ver a violência e os crimes contra a humanidade.
Por outro lado, quando retrocedemos no tempo, essa violência nos parece um pouco asséptica, porque a recebemos através dos textos e das imagens que essas sociedades criam. E estas sociedades tendem a sublimar a violência, sejam os frisos dos templos egípcios, as esculturas dos romanos ou os poemas homéricos.
Diante disso, a arqueologia nos oferece uma visão muito mais crua e material do que realmente é a guerra: aldeias destruídas, corpos destroçados, mulheres estupradas, crianças assassinadas... Ou seja, a parte mais feia da guerra que o poder nunca quer mostrar.
Nessas terras arrasadas, existem descobertas que sejam esperançosas, vitais e que inspirem otimismo?
Essas explosões de violência excessiva são relativamente limitadas no tempo. Os seres humanos passaram mais tempo negociando e aprendendo a viver juntos do que massacrando uns aos outros de forma abjeta. Pensemos no caso da Espanha: se nos descrevêssemos como uma sociedade selvagem e cruel, que não para de se massacrar, isso nos pareceria estranho. Desde 1876, só nos massacramos de forma horrível uma vez.
De quando terminou a última guerra carlista até hoje, a nossa experiência do massacre internamente foi uma guerra civil horrorosa, mas falamos de três anos de guerra em 150. No entanto, o problema é que dando tanta ênfase a esses três anos que nos esquecemos dos outros 147, nos quais aprendemos a não nos matar e a viver juntos. Uma experiência que pode ser extrapolada para qualquer país ou território do mundo.
Talvez não devêssemos nos perguntar tanto por que nos matamos, mas como fazemos para não nos matar, porque aí está a chave para a paz: como conseguimos entrar em acordo, como conseguimos dirimir nossas disputas dentro de uma ordem e, inclusive no pior dos casos, quando recorremos à violência, como fazemos para que essa violência não transborde e acabe como no conflito em Gaza e nos massacres no Sahel.
Justificaria alguma guerra?
Existem guerras defensivas que são inevitáveis. Uma vez iniciada a Segunda Guerra Mundial, a violência era a única forma de acabar com o nazismo. Agora, as guerras que são absolutamente inevitáveis são uma exceção.
Há um vestígio não arqueológico da guerra que pudemos perceber em nossos avós: o medo. Ou, se preferir, o silêncio.
O silêncio e a autorrepressão que o medo produz são difíceis de identificar arqueologicamente, mas podemos especular sobre eles. Por exemplo, quando descobrimos um assentamento completamente arrasado, para onde ninguém jamais retornou, podemos pensar em como a memória daquele lugar foi mantida e até que ponto isto traumatizou uma sociedade para que decidisse não retornar àquele lugar com memórias tão horrorosas. Novamente, estamos falando de ausências... De ausências que são eloquentes.
E depois há o silêncio imposto pelos vitimários, aqueles que se negam a escavar em sua memória.
Claro. Também há casos muito eloquentes em que vemos como uma paisagem de violência foi conscientemente sepultada. Por exemplo, a dos assírios em Canaã: arrasam povoados inteiros e depois constroem sobre eles novos assentamentos, às vezes sobre as próprias coisas comuns. É apavorante, porque assim estão selando esse passado de violência extrema.