11 Setembro 2024
"O viver é uma figura do andar do viandante e este é uma figura daquele. Em ambos, se formam e se transformam mundos, formando e transformando a si mesmos. Ambos evocam o caminho do homem: o caminho que o homem trilha em direção a si mesmo e em direção ao outro de si", escreve Marco Berté, sócio fundador da Viandanti e membro do grupo “Oggi la Chiesa” (Parma) que adere à Rede dos Viandantes, em artigo publicado por Viandanti, 10-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ser viandantes... Claro que somos! Todos nós somos viandantes, desde que aprendemos a andar quando pequenos. Ao encontrar outras pessoas no caminho, nos conhecemos, às vezes nos reconhecemos e perguntamos: para onde está indo? Quase sempre nos responderam e nós também tentamos responder às mesmas perguntas.
Aqui está: será que realmente sabíamos onde estávamos, para onde estávamos indo e o que estávamos procurando? Nem sempre, nem exatamente. A pergunta básica é: para onde? Para onde estamos caminhando? Em direção a tempos e lugares distantes, de onde uma voz nos alcança, chamando-nos para mundos desconhecidos? Ou será que caminhamos, sem perceber, em direção a nós mesmos? Ou, finalmente, não existe um lugar para onde caminhamos, já que o caminhar tem seu fim em si mesmo?
Não é fácil responder. A questão deve permanecer em aberto. Um caminho a percorrer, talvez, seja indicado pelo que chamamos de “implicação originária”. A implicação, ou seja, nascida conosco e que permanece em nós, desde o primeiro choro até o último suspiro, do Si-mesmo e do Outro de Si, de forma que só podemos conceber um Si em relação a um Outro de si e um Outro de Si apenas em relação a um Si-mesmo. Não existe um sem o outro, um sempre implica o outro. Essa é a única maneira de imaginar qualquer resposta ao nosso questionamento. Que, em todo caso, tentamos responder aqui com este texto, nascido da necessidade e do prazer de lembrar uma ideia e uma amizade. E gira em torno de algumas figuras de viandantes, especialmente as de Abraão, Jacó, Jó e o Jesus terreno dos Evangelhos.
Quem caminha, se move. Ao começar a caminhar, todo o organismo entra em movimento.
E toda a sensibilidade corporal. Assim começa o prazer de caminhar. E começa também o cansaço, por menor que seja, por menos que seja sentido. Mas pode se tornar importante, especialmente pela aceleração da marcha, quando quem caminha está avançado, muito avançado nos anos, e apresenta os sinais disso nas mãos, nos pés, nas pernas, nos quadris, nas costas. Mas sente igualmente o prazer e o desejo de andar. E tenta sintonizar a caminhada com a respiração, talvez contando os passos e parando de vez em quando. Mas todos, jovens e idosos, no auge de seu vigor ou retardados pelas complicações da idade, caminhando percebem seus corpos com uma vivacidade e precisão que não têm quando estão parados. E seus sentidos, antes quase adormecidos, se despertam. À medida que avançam, os olhos ganham vida, pousando no que está ao redor e se renova a cada passo, grama ou pedras, prados ou bosques, planícies ou montanhas, casas ou vilarejos. A audição se torna atenta aos mais leves frêmitos da natureza, ao canto dos pássaros, aos gritos das crianças, ao vozerio das pessoas, aos sons do campo ou da cidade. O olfato saboreia as fragrâncias da grama e das plantas e, às vezes, se agita com os aromas das cozinhas. O sentido do tato também desperta, quando a brisa acaricia a pele ou o sol a aquece.
O objetivo do caminhar é o próprio caminhar. O verdadeiro propósito do caminhar não é a meta, o ponto de chegada, mas a experiência do caminhar. No entanto, devemos nos perguntar: de onde vem esse prazer? Não há, nesse andar, algo oculto, algo que nos chama, um impulso secreto? E acima de tudo: como chamaremos aquele que caminha apenas pelo prazer de caminhar? Vamos chamá-lo de viandante.
Viandante é aquele que é conotado apenas pelo fato de andar na rua, de caminhar ao longo da estrada.
O viandante é definido única e exclusivamente pelo fato de andar caminhando e percorrer ruas e estradas. Não pela meta, não por alguma obra a realizar. Então, o que faz? O que busca?
Mas com o que tem a ver andar e caminhar? Tem a ver com tudo o que se oferece a ele no caminho, ao longo da estrada: lugares, pessoas, situações, aventuras. O viandante passa por lugares, conhece pessoas, se imerge em situações, enfrenta aventuras. E vai e caminha. E é desafiado por tudo e por todos.
Ele passa por lugares - prados e florestas, vilas e cidades - descansa por um tempo, saboreia a atmosfera e os deixa para trás. Ele encontra pessoas - grandes e pequenas, homens e mulheres, habitantes dos lugares e outros viandantes – se entretém e conversa com elas, às vezes acompanha algumas por um tempo, mas logo se despede e segue em frente. Ele se imerge em situações - sente emoções, alegrias e medos, surpresas e maravilha, reconhecimentos e descobertas, distanciamentos e envolvimentos - as vivencia com intensidade e imediatamente se volta para outra coisa, sem nunca se demorar demais.
E assim, da mesma forma, enfrenta aventuras - perigos, ameaças e armadilhas, mas também novos horizontes e aberturas imprevisíveis - as supera e está pronto novamente para caminhar rumo ao desconhecido. Tudo pelo que ele passa, encontra, se imerge e enfrenta - e depois deixa para trás - se sedimenta em seu ânimo e se torna matéria de narrativa. Nas pausas de seu andar, nas noites em que descansa do caminhar, nos encontros com os habitantes dos lugares e com outros viandantes, se entrelaçam as histórias. Assim se forma o mundo do viandante. Forma-se e transforma-se continuamente. A formação e transformação contínuas do viandante e de seu mundo fazem do caminhar um sinal de devir, da mudança contínua de toda coisa, da passagem dos tempos e dos espaços. Enquanto caminhamos, vivemos e revivemos continuamente o desvanecimento das horas uma na outra, o seguir-se e repetir-se das estações, o passar dos anos e o empilhamento das lembranças. E experimentamos, juntos, a mudança dos espaços, o desvanecimento e o retorno de lugares, das paisagens e das visões caras à nossa alma.
O que busca o viandante? O que o leva a se tornar um viandante e a que tende seu continuar a ser um viandante? Não é fácil responder a isso. A primeira hipótese que me vem à mente é que talvez não haja nada além de seu andar e caminhar, nem antes nem depois, nem no início nem no fim. Talvez o prazer mais profundo e o dever mais alto sejam para o viandante andar e caminhar, habitar a rua, frequentar a estrada.
Há muitas figuras de viandantes que podem nos ajudar a entender. Vamos tentar questionar algumas delas.
A figura mais evidente do andar do viandante é a própria vida do homem. A vida do homem não é justamente um contínuo andar e caminhar, cruzar por lugares, encontrar pessoas, mergulhar em situações, enfrentar aventuras e continuamente reviver e contar tudo isso, formando e transformando mundos, formando e transformando a si mesmo? E não é justamente o viver, o desejo e a coragem de viver, a esperança e a força de viver que o fazem se tornar e ser homem? Não é o amor pela vida e a fé na vida que o sustentam continuamente? A vida tem em si mesma sua própria origem e propósito. Eis então: esse é o segredo do viandante, de seu andar e caminhar?
O viver é uma figura do andar do viandante e este é uma figura daquele. Em ambos, se formam e se transformam mundos, formando e transformando a si mesmos. Ambos evocam o caminho do homem: o caminho que o homem trilha em direção a si mesmo e em direção ao outro de si.
Que é, em última análise, o itinerário formativo do homem, o cumprimento de sua educação.
Sobre o caminho do homem como itinerário formativo, se debruça Martin Buber em um pequeno e precioso livro, O caminho do homem: segundo o ensinamento chassídico. Cada homem, diz Buber, tem seu próprio caminho a seguir, que é único, inteiramente pessoal. Para identificá-lo e percorrê-lo, é preciso tomar consciência de si mesmo e da situação em que se encontra, do que se é e do que deve se deve tornar, voltar-se para Deus e converter-se. É necessário entender qual é a tendência essencial e o desejo fundamental de cada um, segui-los e direcioná-los para aquilo que nos completa mais do que qualquer outra coisa. Depois de adotar essa direção, reunir todas as energias em torno dela, passando resolutamente da divisão para a unificação, e assim transformar a nós mesmos e às relações que temos.
O trabalho de unificação e transformação pessoal não deve nos fechar, mas nos dar a força para nos abrirmos aos outros, para acolhê-los, para entrar em relação com eles, para nos dedicarmos ao mundo e à obra que devemos cumprir no mundo e à qual Deus nos destinou. E tendo em mente que o lugar onde somos chamados a atuar é o lugar onde nos encontramos e que as pessoas e as realidades que somos chamados a encontrar são aquelas que realmente encontramos na existência cotidiana. É ali, nas situações que vivemos, que devemos deixar Deus entrar. É ali e assim que o nosso caminho se cumpre.
Até aqui o ensinamento de Buber. Ele também enfatiza o caminho do homem em direção a si mesmo e em direção ao outro de si, quando enfatiza, por um lado, sua tendência essencial e seu desejo fundamental e, por outro, a obra que deve realizar no mundo. Mas há algo mais nesse texto, que aproxima o itinerário formativo do andar do viandante: a contínua e nunca esgotada reapresentação da obra a ser cumprida, uma vez que o lugar em que somos chamados a atuar e as pessoas que somos chamados a encontrar se renovam continuamente. Como no andar do viandante, nunca há uma meta final que conclua definitivamente o nosso caminho.
Uma variante desse itinerário é a da viagem. Maria Teresa Moscato oferece uma análise sugestiva em seu livro A viagem como metáfora pedagógica, que em parte inspira estas páginas. A viagem constitui uma autêntica experiência formativa, mas, na maioria das vezes, é considerada uma metáfora particularmente significativa da formação. Em primeiro lugar, vale a pena lembrar as viagens de formação (como Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe), os contos de fadas e histórias infantis (como Pinóquio ou, no limite, Chapeuzinho Vermelho), as histórias de vocação (como aquela extraordinária de Abraão) ou, ainda, as epopeias dos heróis fundadores (como Eneias).
A formação acontece de acordo com um esquema que inclui a saída de um lugar de origem, a condição de estrangeiro ou peregrino, várias aventuras, incluindo, muitas vezes, a travessia de lugares repletos de dificuldades e perigos (bosques e florestas impenetráveis, desertos, mares tempestuosos bosques e florestas impenetráveis, desertos, mares tempestuosos, montanhas inóspitas), a superação de provações terríveis (lutas com inimigos irredutíveis, animais ferozes, fenômenos naturais misteriosos), a conquista de uma identidade pessoal mais autêntica e, com ela, o alcance uma terra prometida ou o tão sonhado retorno para casa, para o local de origem.
Uma viagem bastante singular merece menção especial, a dos Magos, da qual falam os Evangelhos. O padrão é um pouco diferente. Na origem está a estrela e a decisão de segui-la. Não é dado a saber o que essa estrela é ou representa. Certamente é um símbolo. Poder-se-ia dizer que é o símbolo de um chamado, de uma vocação que se repropõe sempre de novo, até chegar à gruta do Menino.
Mas mesmo aqui, como veremos, o chamado não se extingue. Os Magos provêm de regiões distantes, distante de Belém e distantes uns dos outros. E de tradições religiosas do Oriente. Portanto, devemos supor que tenham percorrido a primeira parte do caminho individualmente, cada um por estradas diferentes. Em algum momento, devem ter se encontrado, comunicando um ao outro a revelação recebida e a experiência tida, e decidido continuar a viagem juntos. Finalmente, após várias vicissitudes, chegam à gruta, encontram e adoram o menino e oferecem seus dons. A experiência que têm é extraordinária. É um encontro que os transforma e os marcará para sempre. E estão prestes a retornar sobre os seus passos. Mas são movidos pela experiência que tiveram. A resposta a uma vocação
O chamado da estrela é seguido por um chamado mais profundo, proveniente do encontro com o Menino, que os orienta para além de suas tradições religiosas. Em um primeiro momento, voltam a caminhar juntos, meditando sobre a experiência que tiveram, relembrando-a e contando uns aos outros as impressões que sentiram. Depois, finalmente, se separam e cada um volta para seu local de origem. Mas lá, pode-se supor, não são bem recebidos. Sua suposta transformação religiosa não pode ser compreendida. Os magos se descobrem estrangeiros em sua terra natal. E repetidamente, continuamente buscam e buscarão evangelizar suas terras.
O itinerário formativo, nesse caso, ocorre por meio da resposta a uma vocação, do encontro e do diálogo, da transformação da pessoa, do retorno aos lugares de origem, da amargura de não serem compreendidos e acolhidos por seus antigos amigos, das repetidas tentativas de fazê-los participar de sua própria transformação. Em um processo provavelmente interminável e sem um fim. Como o andar do viandante.
Se considerarmos essas primeiras figuras do andar do viandante - a própria vida, o itinerário formativo proposto por Buber, a viagem (em particular a dos Magos) -, o que se impõe é um andar em direção a uma Alteridade (Outro ou outros) que se desloca sempre um pouco além, nunca é alcançada, se renova continuamente. E continuamente, no entanto, chama, pede escuta e obediência.
Uma situação diferente, que novamente exige a implicação entre o si-mesmo e o outro de si, ocorre com os estrangeiros, especialmente os migrantes. O outro então se apresenta, ao mesmo tempo, como ameaça e dom. “Sempre ameaça e dom - não uma coisa ou outra. Aliás, uma coisa justamente na medida em que é a outra”. “É um outro, que, no entanto, pertence à minha identidade” (U. Curi, Straniero).
E ao mesmo tempo em que se retrai porque não podemos dispor dela, vem ao nosso encontro para se medir conosco. E nos força a nos questionarmos sobre ele e sobre nós mesmos. O “quem é você?” logo se torna o “quem sou eu?” “Graças ao estrangeiro, somos levados a nos perguntar quem somos, o que queremos, de onde viemos. Também somos levados a nos transformar” (B. Spinelli, Ricordati che eri straniero). Aqui está, portanto, a notável implicação entre voltar-se para o outro e voltar-se para si mesmo.
Este editorial foi extraído de um texto mais amplo intitulado Essere, diventare viandanti. Verso dove? A versão completa, em cópia impressa, será entregue aos participantes da próxima assembleia dos associados da Viandanti (Parma, 30-11-2024).