05 Setembro 2024
"Bergoglio, falando de seus alunos, afirma: 'à medida que fossem lendo o que os atraía no momento, iriam adquirindo em geral o gosto pela literatura, pela poesia, e depois passariam a outros autores. Afinal, o coração procura mais e, na literatura, cada um encontra o seu próprio caminho'", escreve Chiara Gatti, jornalista e escritora italiana, em artigo publicado por Vino Nuovo, 28-08-2024.
O dominicano Jean-Pierre Jossua e a carta do papa sobre a relação entre literatura e fé.
Neste verão quente, o Papa Francisco decidiu nos dar mais um presente: a “Carta sobre o papel da literatura na educação”, publicada no dia 17 de julho, com a intenção de aproximar a literatura, em certo sentido, com o mundo da fé e até mesmo com o mundo da pastoral, já que a própria Carta é dirigida à “formação sacerdotal”, bem como a “todos os agentes pastorais e a qualquer cristão”.
E o tom fresco e confidencial que o Papa dirige aos seus leitores ao longo de todo o texto, começando quase discretamente ao sugerir o valor de um bom livro para a interioridade de cada homem, não deixa de abrir gradualmente cenários até profundamente teológicos que manifestam sempre e constantemente a coragem do magistério de Francisco. Com seu ímpeto, todo inaciano, como ele mesmo confessa, citando seu mestre de formação, Francisco chama para uma literatura e, portanto, uma leitura, na forma de romances ou de poesia, que não seja explicitamente confessional (para nos entender, os bons textos da tradição cristã).
Mas, acima de tudo, uma leitura em que “o leitor não é o destinatário de uma mensagem edificante, mas uma pessoa que é ativamente solicitada a encaminhar-se para um terreno instável, onde as fronteiras entre salvação e perdição não estão a priori definidas e separadas”. Portanto, justamente para desenvolver aquele “discernimento” que “o leitor experimenta ‘ser lido’ pelas palavras que lê”.
Essa “nova” perspectiva parece-me estar relacionada àquele grande e sempre agitado tema relativo à problemática divisão entre cristianismo e cultura, como se um prejudicasse a outra e vice-versa. Essa renovação trazida pelo Papa, no entanto, já parece estar presente em uma certa corrente do pensamento filosófico e teológico do passado e, especialmente, no trabalho e no estudo de toda a vida do teólogo francês e padre dominicano Jean-Pierre Jossua. Homem do Concílio Vaticano II e maior expoente daquela que é definida como a “teologia literária”, já na década de 1970 ele mesmo se tornou autor de uma escrita teológica em seus próprios “Diários”, onde é possível ler páginas de busca apaixonada por Deus. Falecido há apenas três anos, Jossua se tornou conhecido e divulgado na Itália sobretudo graças ao estudo e à tradução fiel do Prof. Antonio Sichera, professor de literatura italiana e moderna, que escreve como nele: “o nascimento da teologia literária não representou [...] um episódio puramente intelectual, fruto de uma elaboração mental, mas o evento de uma existência, de uma ‘vida’ (Une vie) em busca de integração, de unidade interior”.
No mesmo ensaio, intitulado “Literatura e teologia na obra de Jean-Pierre Jossua”, Sichera destaca como as palavras-chave no pensamento desse teólogo são “experiência” e “relação”, antecipando o que o próprio Papa afirma no parágrafo 30 da Carta: “Eis a ‘utilidade’ da literatura: ‘desenvolver’ as imagens da vida, levar-nos a interrogar sobre o seu significado. Serve, em suma, a fazer eficazmente a experiência da vida”.
A importância, então, de um relacionamento, aquele com Deus e aquele com os outros, também é tratada na Carta, no parágrafo 32, com palavras luminosas: “A literatura torna-se, então, um ginásio onde se treina o olhar para procurar e explorar a verdade das pessoas e das situações como mistério, carregadas de um excesso de sentido, que só parcialmente se pode manifestar em categorias, esquemas explicativos, dinâmicas lineares de causa-efeito, meio-fim”.
E, novamente, alguns pontos dos ensaios teológicos de Jossua, mostrados por Sichera, também são encontrados em Francisco, por exemplo, no tema de “uma escolha literária muito seletiva, visando, em primeiro lugar, dar voz a grandes textos e não a best-sellers”, em paralelo com o parágrafo 7 da Carta, em que Bergoglio, falando de seus alunos, afirma: “à medida que fossem lendo o que os atraía no momento, iriam adquirindo em geral o gosto pela literatura, pela poesia, e depois passariam a outros autores. Afinal, o coração procura mais e, na literatura, cada um encontra o seu próprio caminho”.
Assim como a preocupação em Jossua de que “os textos não sejam questionados sobre aspectos marginais, mas sobre seu centro, seu coração”, que remete ao ponto da Carta (no parágrafo 6) em que o papa afirma que “a literatura tem a ver com o que cada um de nós deseja da vida, uma vez que entra numa relação íntima com a nossa existência concreta, com as suas tensões essenciais, com os seus desejos e os seus significados”.
E, finalmente, os dois pontos mais esclarecedores em que me parece que o pensamento de Jossua se alinhe mais com o de Francisco. O primeiro consiste na atitude de escuta fiel do texto, onde, para o teólogo dominicano, não pode haver “submissão dos textos a esquemas pré-constituídos”, ecoada por Bergoglio no parágrafo 20: “Aqui está uma definição de literatura que tanto me agrada: ouvir a voz de alguém”.
E a segunda, igualmente importante, centra-se na importância do leitor; em Jossua, “a história do intérprete, seu corpo, sempre age nas perguntas dirigidas ao poema...”, enquanto em Francisco isso vale para qualquer leitor, não apenas para aqueles que estudam teologia: “O leitor, enquanto lê, enriquece-se com o que recebe do autor, mas isso permite-lhe, ao mesmo tempo, fazer desabrochar a riqueza da sua própria pessoa, pois cada nova obra que lê renova e expande o seu universo pessoal”.
Agradecendo, portanto, com gratidão, a esses dois gigantes, concluo imaginando corajosamente a profunda alegria que o Padre Jossua teria sentido ao ler as luminosas palavras do Papa, que, citando C. S. Lewis em sua Carta (par. 18), nos tranquiliza mais uma vez: “Ao ler as grandes obras da literatura, transformo-me em milhares de homens sem deixar, ao mesmo tempo, de permanecer eu mesmo. Como o céu noturno da poesia grega: vejo-o com uma miríade de olhos, mas sou sempre eu a ver. Neste ponto, como na religião, no amor, na ação moral e no conhecimento, ultrapasso-me a mim próprio e, no entanto, quando o faço, sou mais eu do que nunca”.