02 Julho 2024
“O mundo está a caminhar” para a crioulização, “para que um dia tenhamos todos múltiplas raízes”, diz o escritor e músico cabo-verdiano, Mário Lúcio Sousa, autor de O Novíssimo Testamento, um romance que parte da pergunta “E se Jesus ressuscitasse mulher?” O também antigo deputado e ministro da Cultura de Cabo Verde considera que o espaço de crioulização é o “espaço de convivência com portugueses, com africanos” não “na diferença, mas no encontro, na confluência”, como refere, em entrevista ao programa 7MARGENS, da Antena 1.
A reportagem é de António Marujo, publicada por 7Margens, 26-06-2024.
Bisneto de um português e de uma escrava, Mário Lúcio Sousa entende-se como europeu e africano. “Isso faz-me não sentir ingrato; pode ser uma opção política, de inclusão, de comunidade, da minha postura em relação aos outros, eu sou 50/50.”
Considerando a crioulização uma dimensão “muito importante”, porque é o espaço que permite “ser aquilo que a história deu”, diz que esse “é um espaço bem bonito, bem importante e que nos dá grande esperança: o mundo está a caminhar para lá.”
“Em Cabo Verde, nas Antilhas e por onde os crioulos andaram, temos de conhecer bem a nossa identidade, que é uma identidade de síntese, que não está situada nos radicais, está situada no caminho do meio”, acrescenta. “Quando escrevo e acuso, também me estou a acusar, porque sou filho da vítima e do carrasco; conviver com isso na mesma pele leva a um processo de luto e de luta também.”
Com uma escrita que assume um ritmo comparável ao de José Saramago, uma criatividade linguística ao nível do moçambicano Mia Couto e um processo narrativo em linha com o realismo mágico latino-americano, o autor do recente O Livro Que Me Escreveu assume essas influências: “Escrevo desde criança, mas o grande encontro da minha literatura foi com a literatura latino-americana”. Na escola, “a realidade dos livros” que chegavam de Portugal – Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco… – não era a da realidade cabo-verdiana, afirma. “Só percebemos a nossa realidade” com escritores como Graciliano Ramos ou Jorge Amado, diz o escritor que estudou Direito em Cuba. “Nós imediatamente nos revimos em toda a literatura sul-americana. Tenho muito de Vargas Llosa, Garcia Marquéz, Júlio Cortazar, Jorge Luís Borges, Alejo Carpentier, li tudo o que havia.”
Quanto a Saramago, Mário Lúcio admite gostar “de literatura contínua” e não ser “muito fã do parágrafo”. Por isso, inspirado em Saramago, usou esse processo n’O Novíssimo Testamento. “É a questão do ritmo, da dança, da toada, uma coisa muito cabo-verdiana.”
Em relação a Mia Couto, Mário Lúcio Sousa sente-se afastado num detalhe: “O Mia Couto inventa palavras, eu vou buscar palavras no português quinhentista”, que “estão persentes no crioulo; a partir daí há uma ponte comum com o Mia Couto, que é o deixar a palavra existir, porque não está na língua, mas precisamos dela”.
O anjo da boca aberta e as reparações do colonialismo
Com uma tal riqueza literária, o autor não foge à provocação: e se um dia receber o Nobel da Literatura? “Vou contar uma história lindíssima: a minha avó dizia que entre os vários anjos que existem no céu, há um que se chama anjo Boca Aberta.” A sua única função “é estar de boca aberta: quando alguém diz uma frase” como a que a pergunta expressou, “o anjo diz ‘ámen’ e volta a abrir a boca”.
Admitindo que a espiritualidade e a referência cristã estão muito presentes, o escritor cabo-verdiano diz que tudo o que escreve “está carregado dessas várias formas de ver Deus, sentir Deus, estar perto de Deus, chegar a Deus”, que são a meditação, a oração ou outras páticas religiosas. Mas nos seus livros também aparecem elementos de outras religiões como o hinduísmo, taoísmo ou judaísmo… Deus, acrescenta, manifesta a incapacidade humana de pensar sem imagens. “Essa abstracção poderosa” tem de ligar o momento em que nada existe mas a mente consegue lá chegar lá ao momento que “imediatamente deixou de existir”. Deus “não é criado, não cessa, não tem origem nem tem fim”.
Autor de O Diabo Foi Meu Padeiro, romance situado no campo de concentração do Tarrafal, junto do qual o escritor nasceu em 1964, Mário Lúcio Sousa debate também a proposta do Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, de discutir a reparação dos erros do colonialismo. “Uma declaração com essa magnitude deve ser preparada, a população deve ser preparada, os académicos devem ser envolvidos, os outros (nomeadamente aquele que se quer compensar) devem ser ouvidos”, afirma.
Será importante ainda “distinguir” o que é restituição, reparação e indemnização. No primeiro caso, falamos por exemplo de “objectos sagrados que foram desenterrados e trazidos e as pessoas ficaram sem as suas referências religiosas”. Por isso, será “normal” e “legítimo” que o tema seja discutido, como já tem sido, “entre Estados, entre culturas”, com obras de arte a serem já devolvidas por vários países.
Outro aspecto é a reparação, que deverá analisar o que “a colonização causou nos países colonizados: atraso, exploração dos meios, processo de descolonização com traumas para todos os lados”. Trata-se de “parar e ver onde é que houve erros e excessos e não deixar que as consequências continuem a parir erros e excessos”. Serve o exemplo da alfabetização em Cabo Verde, em que foi o país fez um enorme esforço para debelar o analfabetismo que ficou do tempo colonial, com “grande ajuda de vários países, entre os quais Portugal”. Finalmente, a indemnização, para a qual já houve propostas de países das Caraíbas. Todas estas possibilidades “são coisas muito sérias, que importa discutir”, diz o antigo ministro.
Mário Lúcio Sousa defende ainda a possibilidade de um mundo aberto. “A nossa imaginação precisa de referências: já tivemos um mundo sem fronteiras; a primeira epopeia humana conseguiu chegar onde chegou porque não havia fronteiras, não havia gente a dizer: ‘vens de onde e vais pra onde?’ Essa gente é que fez o onde.”
“Quando muitos africanos, asiáticos e latino-americanos perceberem que a emigração é um risco e não é um eldorado, aí haverá um freio”, afirma ainda, sobre a questão as migrações, dizendo que a ideia de migrar está muito presente na cultura cabo-verdiana e que houve muitos concidadãos que trabalharam, ganharam dinheiro e emigraram em seguida.
Sobre o próximo romance, o escritor desvenda o ponto de partida: “Se metade dos presidentes da república do mundo fossem mulheres, o mundo estaria melhor.”