02 Dezembro 2023
"A Congregação para a Doutrina da Fé é a herdeira da Inquisição, que foi originalmente fundada por Paulo III em 1542 para defender a Igreja contra as heresias. Não havia sido preciso por quinze séculos até que se tornou urgentemente necessário proteger-se contra a Reforma, instaurando uma norma da qual nenhum católico poderia se desviar. Em nosso tempo essa instituição criticou sobretudo teólogos importantes, por exemplo: Hans Küng, Charles Curran, Leonardo Boff, Eugen Drewermann, Yves Congar. Ao proibi-los de lecionar, a Roma vaticana bloqueou a pesquisa", escreve Jacques Neirynck, professor honorário da École Polytechnique Fédérale de Lausanne e ex-conselheiro nacional do Partido Democrata Cristão, da Suíça, em artigo publicado por Conférence Catholique des Baptisé-e-s Francophones, 13-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Devolver toda a relevância à dúvida e à diversidade? O Sínodo recém-concluído confirmou as previsões e ficou abaixo das expectativas. Com 54 mulheres entre os 365 membros (nomeados e não eleitos) não representa a diversidade dos crentes. Não tomou nenhuma decisão concreta, pois as decisões teriam que estar em conformidade com a doutrina existente.
Nada de presbitério para as mulheres, mas, eventualmente, no máximo, o diaconato. A separação das Igrejas do Oriente e do Ocidente de 1054, ironicamente chamada de “cisma de Roma” pelos Ortodoxos, decorre da insistência do Vaticano em ditar lei sobre a cristandade oriental. As disputas cristológicas como aquela do Filioque e a aspiração do papado de dominar o cenário político são tentativas de criar a unidade com a uniformidade.
Se tivéssemos que indicar uma distinção fundamental entre a Igreja Católica, de um lado, e as Igrejas Reformadas e Anglicana, do outro, seria sobre a doutrina, uniforme para a primeira, diferente e flutuante para as segundas. Entre estas últimas, espalhadas pelo mundo, encontram-se tanto evangélicos fundamentalistas quanto protestantes liberais. Não há nelas nenhuma autoridade magistral que estabeleça uma inexistente ortodoxia das heresias. As heresias não representam desvios perigosos no que diz respeito a uma norma, única verdadeira, mas são controvérsias em torno de certos temas: o que pensar da natureza de Jesus, seus milagres, sua ressurreição, o que significa vida eterna, o que é a Eucaristia? São todos mistérios, abertos à meditação, que é arriscado padronizar em dogmas catequéticos.
A Congregação para a Doutrina da Fé é a herdeira da Inquisição, que foi originalmente fundada por Paulo III em 1542 para defender a Igreja contra as heresias. Não havia sido preciso por quinze séculos até que se tornou urgentemente necessário proteger-se contra a Reforma, instaurando uma norma da qual nenhum católico poderia se desviar. Em nosso tempo essa instituição criticou sobretudo teólogos importantes, por exemplo: Hans Küng, Charles Curran, Leonardo Boff, Eugen Drewermann, Yves Congar. Ao proibi-los de lecionar, a Roma vaticana bloqueou a pesquisa.
O objetivo é obter a unidade com um procedimento de natureza judicial através da uniformidade. É esclarecedor comparar esse objetivo com a prática seguida no âmbito das ciências naturais. Não existe nenhum organismo internacional que acredite ou conteste determinadas contribuições para a pesquisa em física. As ciências naturais progridem através do caso e da necessidade, isto é, através da enunciação de todas as teses possíveis e a sua comparação com a realidade experimental. Sobre certos temas como a cosmologia, vários modelos são propostos em paralelo sem que ninguém pense condenar certas teses. O telescópio resolve a discussão.
O objetivo da pesquisa nas ciências naturais não é confirmar a ciência existente, mas pelo contrário colocá-la perpetuamente em discussão. Nesse sentido, a ciência está subordinada à dúvida pelo método experimental, dúvida que, por outro lado, as crenças, as ideologias e os dogmas evitam como a peste, tão frágeis elas são. A dúvida sistemática é o motor do progresso do conhecimento. Desde 1845, Newman colocou o problema da evolução dogmática, como Maurice Zundel no Cairo em 1948. O Papa Francisco utiliza uma fórmula astuta: defender o dogma sem dogmatismo. Poderia tornar-se a base da fé e da prática religiosa. Uma afirmação cristalizada da doutrina pode se tornar contraproducente. O que é adequado numa língua, numa cultura, numa sociedade, numa época se torna contraditório em outra. O exemplo mais conhecido é aquele da encíclica Humanae Vitae. Paulo VI havia instituído uma comissão de especialistas que havia recomendado, com uma maioria de 66 contra 6, não condenar os métodos “artificiais” de contracepção. O papa não levou em conta tal conclusão e promulgou a encíclica. Ela permaneceu letra morta e não foi respeitada pela maioria dos católicos. Sem o consenso dos fiéis, a autoridade doutrinária do papa fica enfraquecida e ineficaz.
Uma vez que doutrinas ultrapassadas e dogmas insustentáveis são mantidos no discurso eclesial, nos países desenvolvidos e nas sociedades mais instruídas a incredulidade aumenta. Não se pode exigir um esforço da vontade para admitir ou praticar o que é inadmissível ou irreal. Muitas pessoas acabam se deparando com afirmações que para elas são impensáveis, a menos que aceitem uma complicação permanente, que é a má-fé, nos dois sentidos que podem ser dados a essa expressão.
Tentar obter a uniformidade dos cristãos não favorece a unidade, pelo contrário, a torna impossível. As democracias políticas são mais robustas que as ditaduras, porque a diversidade dos partidos garante sempre uma alternativa. O Papa Francisco fala regularmente contra as ditaduras. É vital que os pesquisadores em teologia sejam, eles também, livres para defender as suas teses. Qual o espaço que existe para o sensus fidelium?