Argentina. “O que vimos foi uma eleição trágica e suicida”. Entrevista com Jorge Alemán

O psicanalista e escritor analisa a política e as políticas, o jogo dialético entre diferença e identidade, mas não escapa da situação de ascensão da extrema direita na Argentina. E não baixa a guarda: “Não vamos recuar, não vamos nos esconder”

Foto: Joédson Alves | Agência Brasil

22 Novembro 2023

O prestigiado psicanalista e escritor argentino Jorge Alemán exilou-se em Espanha em 1976, em plena ditadura argentina, e quando o país ibérico iniciava recentemente uma transição para a democracia, após quase quarenta anos do regime ditatorial de Francisco Franco, que faleceu em 20 de novembro de 1975. Alemán tinha 25 anos. Desde então, vive em Madri. Autor de numerosos livros que dão conta de um pensamento que une psicanálise, filosofia e política, além de livros de poesia, durante a segunda metade dos anos 70 fez parte do avanço da psicanálise lacaniana na Espanha e é um dos intelectuais mais importantes consultados.

Mas Alemán nunca esqueceu sua terra: na quarta-feira, 29 de novembro, às 18h30, no Centro de Saúde Mental Dr. Arturo Ameghino (Av. Córdoba 3120), apresentará a nova edição corrigida e ampliada de um livro que teve status de clássico: Soledad: Común (Ned Ediciones), onde traça uma intersecção discursiva nítida e lúcida entre a psicanálise e a ciência política. E a partir de quarta-feira, dia 22, participará da IV Conferência da(s) esquerda(s) lacaniana(s) em Mar del Plata.

Pode-se dizer que em Soledad: Común, Alemán aponta a psicanálise lacaniana como espaço de reformulação da política e das políticas. “Validando a teoria da psicanálise lacaniana, apresento-me a um tema clássico: depois do período revolucionário, que lamentamos, a ideia era ver como a experiência do sujeito se articula com a experiência coletiva.” Para Alemán isto é central porque no período revolucionário “havia um sujeito unificado que poderíamos chamar de o grande motor histórico da transformação”. Como se vê hoje em dia, “esse sujeito não é mais unificado, é preciso repensar os fenômenos coletivos sem ignorar como o próprio sujeito também se constitui”.


“Um projeto emancipatório não precisa ser um projeto pensado apenas a partir da lógica da psicologia das massas” (Foto: Guadalupe Lombardo)

O objetivo fundamental do livro é tentar garantir que o coletivo não seja equivalente ao que Freud propôs em Psicologia de Massa e Análise do Ego. Alemán fundamenta assim: “Se o coletivo é um lugar onde se apagam as diferenças, que são constitutivas de cada um, esse coletivo emerge de forma hipnótica e acaba neutralizando seus próprios mecanismos transformativos. contribuir com certas questões que podem ser extraídas do ensino de Lacan para mostrar que um projeto emancipatório não precisa ser um projeto pensado apenas a partir da lógica da psicologia de massa, que Freud sempre descreveu como hipnótica, sem responsabilidade, diminuindo as capacidades intelectuais de cada um".

A entrevista é de Oscar Ranzani, publicada por Página/12, 21-11-2023.

Eis a entrevista.

Então você entende o coletivo onde, por um lado, ninguém perde a sua singularidade e, ao mesmo tempo, está participando de um acontecimento comum, certo?

Sim, não só ninguém o perde, mas, ao contrário das correntes lacanianas conservadoras, penso que a própria singularidade se realiza verdadeiramente quando se experimenta o comum. Esse é o cerne mais forte do livro: pensar que a experiência do comum como experiência de igualdade não é um lugar onde a singularidade se apaga, mas onde ela atinge o seu verdadeiro ser, porque as diferenças entre si não são as diferenças impostas pelo mercado.

As diferenças entre eles são as constitutivas, são as que não podem ser apagadas. E é no campo da igualdade que eles poderiam verdadeiramente aparecer. É um insulto à diferença quando se diz que a diferença é porque um nasceu numa família rica e outro nasceu num lugar onde há precariedade. Essa não é a diferença. A diferença é a forma como cada pessoa se relaciona consigo mesma, que é uma relação muito problemática, existencialmente problemática, e com os outros.

Penso que o campo da igualdade não é um lugar onde a diferença vai ser sufocada, como acontece com as massas, mas muito pelo contrário: é um lugar onde essa diferença pode ser potenciada. E é por isso que, apesar da sua complexidade, há uma parte do livro em que tento pensar a lógica da igualdade numa lógica aberta, feminina; em termos lacanianos, “nem tudo”, um lugar incompleto, sempre aberto.

É por isso que você acha que a igualdade não deve ser pensada a partir da identidade, mas sim a partir da diferença?

Num jogo dialético entre diferença e identidade. A identidade é sempre necessária porque os sujeitos organizam suas representações por meio de identificações. E a identidade não pode ser apagada porque cada um seria uma diferença dispersa, em cada um haveria uma diferença que os separaria dos demais. A identidade é muito importante. Ora, essa identidade não pode ser inerte, pedregosa, sólida, que fecha tudo. A identidade começa a ser operacional num projeto transformador quando é uma identidade aberta. Ouso dizer que os projetos políticos transformadores foram transformadores quando mantiveram essa identidade aberta dentro deles e tiveram essa tensão em jogo o tempo todo. Quando essa tensão desaparece, ela se torna autorreferencial, inerte e inoperante.

Como convive em você esse tipo de tensão entre a psicanálise e a esquerda, levando em conta que uma aborda o sujeito e a outra o coletivo? O objetivo do livro é pensar esse projeto emancipatório que você mencionou, sem ignorar os problemas do sujeito e os pontos em comum do coletivo?

Sim, mas isto também se tornou mais urgente do que nunca, uma vez que o neoliberalismo é uma captura de subjetividades. E dito de forma mais contundente: uma produção de subjetividades. Uma das diferenças conceituais mais importantes que este livro levanta é a diferença entre sujeito e subjetividade. A questão é o que os dispositivos neoliberais não conseguem produzir. A subjetividade, por outro lado, é o que é.

Os dispositivos neoliberais produzem, capturam, geram constantemente, como vimos agora da pandemia, com o aparecimento da extrema direita no mundo: são lugares onde a análise da ideologia deve também ter em conta a forma como a Ideologia não é apenas um ato de consciência, mas a ideologia também penetrou na ordem mais fantasmática do sujeito. Portanto, há também uma relação em tensão entre as subjetividades e o sujeito. Se a diferença entre a subjetividade e o sujeito for apagada, não há nada a fazer.

Preparar-nos-emos para a extensão de um neoliberalismo zombie, mutante, que produzirá constantemente subjetividades sem histórias, sem legados, sem heranças simbólicas e que quererá viver a vida num presente absoluto, tal como a política se expressa atualmente em muitos lugares do mundo. Não devemos parar de pensar em como a psicose (não no sentido estigmatizante ou psicopatológico) entrou no campo da extrema direita. Em todo o mundo, as ilusões que surgiram durante a pandemia foram canalizadas através da extrema direita. Em todo o mundo, a extrema direita é megalomaníaca, com uma ideia de início zero da história, onde desaparecem legados e heranças.

Como pensar a afirmação “O Outro que não existe” numa época marcada pela segregação, pela desqualificação e até pelo desrespeito à condição humana do adversário na política de direita?

Devemos distinguir duas questões: uma coisa está na experiência analítica. O que a psicanálise propõe do ponto de vista lacaniano é apreender que o Outro não existe em todo o seu peso e em toda a sua autoridade e que o sujeito pode assumir e posicionar-se em relação ao seu próprio desejo. Aí é legítimo que o sujeito possa fazer a experiência de que aquele Outro que ele acreditava dominar sua vida, que o espionava, que o julgava o tempo todo, o sujeito pode se separar desse Outro mortal. E outra coisa é o capitalismo. Entre os lacanianos tem havido uma confusão: o Outro do capital existe e produz o que você acabou de descrever: uma ideia onde cada sujeito é um átomo de competência que não deve ser nada mais do que destinado nesta vida a dar-lhe maior poder ou maximizar o seu próprio valor, estando numa vida onde é constantemente avaliado, planeado e estruturado com base na concorrência do mercado.

Você destacou que a lógica do neoliberalismo é fazer surgir uma subjetividade sustentada na ideia de administrar a própria vida como empresa. Por que você acha, então, que boa parte da sociedade argentina aceita isso?

A ideia de gerir a vida como empresa própria foi levantada por Foucault em O Nascimento da Biopolítica. O que em todo caso tentei demonstrar é quais recursos do tema o neoliberalismo tocou para que este projeto pudesse ter sucesso. E propus que o superego, que Freud estudou em muitos de seus textos políticos, é uma instância que se caracteriza por forçar o sujeito a ir além de si mesmo e a estar constantemente sujeito a ordens que não pode cumprir. A combinação entre os imperativos neoliberais e o superego tem sido uma das grandes dobradiças da dominação atual.

Por que você acha que a atual extrema direita é o testemunho mais bem sucedido do desaparecimento da verdade e da expansão do niilismo?

Isto é muito importante. O niilismo foi definido por pensadores como Nietzsche, mas fiquei muito interessado em ler o falecido Heidegger como um modo onde os valores não existem nem onde nada se acredita. Você pode acreditar em muitas coisas e pode multiplicar os valores, mas todos são instrumentados a partir da técnica. Por niilismo entendo a forma como a tecnologia implementa todos os valores. E por técnica quero dizer tudo o que vai do algoritmo à inteligência artificial, passando por todos os pequenos objetos com que brincamos na vida desde muito cedo.

Heidegger vincula o niilismo ao eterno retorno do mesmo e à vontade de poder. Uma vontade de poder dominada pelo eterno retorno do mesmo. Coincidentemente, Freud vinculou a pulsão de morte ao eterno retorno da mesma coisa. E surgiu a oportunidade de estabelecer um elo entre esse eterno retorno do mesmo, ligado à pulsão de morte, e o eterno retorno do mesmo com vontade de poder, porque uma das grandes fontes do niilismo é que nada é pode mudar, que nada poderá ser transformado, a não ser dar todo o poder à vontade de poder e que a vontade de poder da técnica se realize. O que vimos no domingo é uma escolha trágica e suicida de um grande setor da sociedade que se sacrifica para cumprir os imperativos da tecnologia, onde tudo estará sujeito à pura vontade de poder na sua máxima expansão.

A psicanálise é uma teoria que contradiz o totalitarismo. Como podemos pensar, nesse sentido, a relação entre psicanálise e poder?

O poder escolheu outras estratégias: a autoajuda, o coach. O poder está a serviço da autogestão. O poder escolheu teorias que estão influenciando enormemente os políticos. Outro dia vi dois treinadores falando sobre como o importante são as emoções e que você pensa o que sente. Se pensarmos o que sentimos, isso significa que Karl Marx escreveu O Capital por causa das suas emoções, e que Kant escreveu a Crítica da Razão Prática por causa das suas emoções. Essa é a tradução atual da barbárie. Se pensarmos apenas que cada um nada mais é do que o conjunto de suas emoções e que está completamente unificado com as emoções, não há possibilidade de o sujeito estar aberto a qualquer ideia que vá contra ele. O interessante da vida é quando um sujeito se descobre com um pensamento que não sabe acomodar, mas através do qual entende que algum desejo seu pode ser organizado. Agora, se somos idênticos às nossas emoções, como ouvi Jaime Durán Barba e outro treinador dizerem, então consideramos a população absolutamente manipulável: “Vamos despertar emoções”.

O encontro em Mar del Plata

Jorge Alemán participará da IV Conferência da(s) esquerda(s) lacaniana(s) na Universidade Nacional de Mar del Plata, que acontecerá entre a próxima quarta e sexta-feira.

"Depois do resultado de domingo, todos tivemos grandes dúvidas e um grande desconforto, mas todos recuperámos imediatamente e dissemos: 'Agora mais do que nunca temos de mostrar que podemos continuar'. Ainda temos um grande tesouro simbólico para guardar, temos o memória de coisas muito importantes. Este é um país onde se pensaram coisas que não foram pensadas em outros lugares”, diz Alemán, que reconhece que a esquerda lacaniana é uma ideia que “tem muita relevância na Argentina”. “Então, além das quarenta apresentações que são, as Conferências têm agora que se tornar um gesto de resistência, ou melhor, de insistência, que é a palavra que me agrada. não vamos recuar: "Vamos nos esconder. Vamos continuar pensando que construir uma teoria, virar as coisas é uma forma de continuar na resistência", acrescenta.

Quando surgiu a frase “esquerda lacaniana”, muitos analistas consideraram que Alemán queria tornar os lacanianos esquerdistas. “Eu nunca pretendi fazer isso. Meu propósito era o contrário: levar Lacan para a esquerda”, finaliza.

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