Planejamento de Porto Alegre favorece avanço de grandes projetos que não atendem maior parcela da população.
A reportagem é de Lidiane Blanco, publicado por Sul21, 09-11-2023.
Quando uma região da cidade é cuidada e recebe investimentos, tudo que existe nela passa a valer mais. Quem não pode pagar esse novo preço precisa ir embora. O processo de gentrificação de uma cidade não é novo. O Sul21 já contou como ele se deu, historicamente, em Porto Alegre. A questão é que ele segue ocorrendo. O processo de expulsão da população de menor renda se dá em diferentes frentes: dos bairros mais centrais, onde se planeja adensar e atrair novos negócios, mas também das periferias pontualmente escolhidas para grandes condomínios e residenciais, que modificam tudo ao seu redor. A cidade feita para quem pode pagar se espalha em metros quadrados que valem milhares de reais e, não raro, permanecem inabitados, enquanto a cidade da população de baixa renda se encolhe em vielas e áreas de risco.
No início de março de 2004, um incêndio de grandes proporções atingiu o loteamento Santa Terezinha. Por volta das 2h da madrugada do dia 19, o fogo começou a consumir a Vila dos Papeleiros, na rua Voluntários da Pátria, na zona norte da Capital, e só foi contido após destruir 200 casas. 600 pessoas ficaram desabrigadas. Duas sofreram queimaduras leves. Ninguém morreu. As famílias foram transferidas provisoriamente para a Casa de Passagem – assentamento que pertence ao Departamento Municipal de Habitação –, até que a Prefeitura reconstruísse as casas, o que ocorreu em 2006.
Na época, o então vereador Sebastião Melo (PMDB) falou sobre o ocorrido e lamentou que Porto Alegre tenha várias zonas de risco com características similares à área atingida. Afirmou ainda, em sessão plenária na Câmara de Vereadores, que o quadro era resultado da falta de priorização da política habitacional pelo Poder Executivo e que era preciso repensar a forma como a administração pública vinha tratando a questão. Em 2005, uma nova tragédia queimou mais 40 moradias, o que se repetiu em 2015 e 2019, devido às precárias condições de infraestrutura das casas aglomeradas e das instalações elétricas irregulares. Quase 20 anos depois e com o então vereador no comando da cidade, como está o planejamento urbano de Porto Alegre?
Ao tentar dimensionar o problema da habitação, a Ernst & Young, consultoria contratada pela Prefeitura em setembro de 2022 para subsidiar a revisão do Plano Diretor de Porto Alegre, precisou resgatar dados do IBGE de 2010 e baseou sua análise nos indicadores do censo organizados pelo ObservaPOA. O diagnóstico inicial apontou um baixo investimento do Município em empreendimentos habitacionais para população de baixa renda, assentamentos precários, irregulares, sem infraestrutura básica e população vivendo em áreas de risco.
Há 13 anos, os indicadores já mostravam aumento de moradias precárias no município, com 13,68% da população (cerca de 55 mil pessoas) vivendo nessas condições. Entre os bairros com maior número de domicílios precários estavam o Santa Tereza, na zona sul, onde 7.813 habitações sofriam com inadequação de um ou mais serviços, como esgoto a céu aberto, compartilhamento do medidor de energia elétrica ou falta de abastecimento público de água potável. Em segundo lugar estava o bairro Mário Quintana, região nordeste, com 4.795 residências na mesma situação, seguido de São José (4.408) e Bom Jesus, na zona leste (4.237) e Farrapos, na zona norte (2.344).
A redução desse índice só é possível com aumento da oferta de habitações de interesse social que atenda a população de baixa renda, concluiu a consultoria. Devido à relevância desses indicadores, o relatório enfatizou que o uso de dados defasados em uma revisão de Plano Diretor poderia acarretar distorções de interpretação e não corroborar com a solução de problemáticas atuais.
A Ernst & Young não conseguiu caracterizar a demanda habitacional como pretendia. Para isso, era necessário identificar assentamentos precários considerando as características dos imóveis, urbanos e edificados, conhecer o uso regulamentar do solo (de acordo com o zoneamento) e o uso real da terra. Com essas informações seria possível apontar áreas em que a atividade atual não está de acordo com a regulamentação estabelecida e avaliar os impactos de projetos futuros para melhorar a qualidade de vida nessas áreas. Os mapas de zoneamento foram solicitados às secretarias responsáveis, mas não foram recebidos, disse a empresa.
A partir do levantamento dos empreendimentos construídos, em andamento e projetados nos últimos dez anos, o Sul21 produziu uma cartografia que identifica onde estão localizadas as construções e a quem se destinam, considerando o tipo de domicílio e público-alvo das construtoras pesquisadas para o Especial Donos da Cidade. O mapa mostra que as áreas historicamente com melhor infraestrutura continuam destinadas às pessoas de média e alta renda e recebendo os melhores investimentos.
Dos 90 empreendimentos residenciais projetados no período, 30 foram para habitação de interesse social propostos por quatro construtoras especializadas no programa Minha Casa, Minha Vida. Destes, sete estão concluídos, a maioria entre as macrozonas 3 e 5. Nessas regiões estão alguns dos bairros de menor renda média da Capital e que pouco interesse despertam no mercado imobiliário, como é o caso de Bom Jesus e Mário Quintana que, juntos, tinham mais de 9 mil moradias precárias em 2010. De acordo com as informações fornecidas pela Prefeitura, nenhum deles recebeu projetos de habitação nos últimos dez anos.
Unidades habitacionais entregues em 2019 no bairro Chapéu do Sol são do programa Minha Casa, Minha Vida. (Foto: Cesar Lopes | Prefeitura Municipal de Porto Alegre)
O Rubem Berta, zona norte da Capital, recebeu 720 unidades habitacionais até 2020, projetadas pela MRV e Tenda, menos da metade necessária para suprir as mais de 1.500 moradias precárias do bairro. Na zona sul, o bairro Vila Nova foi o único a receber habitação de interesse social, ainda em 2013. Outros cinco empreendimentos foram projetados em 2020 e estão em andamento.
Desde outubro de 2017, quando foi entregue o empreendimento Maria da Conceição, no bairro Partenon, nenhuma habitação de interesse social é construída em terrenos de propriedade do Departamento Municipal de Habitação (Demhab) ou da Prefeitura de Porto Alegre.
Junto com a revisão do Plano Diretor, o poder público vem conduzindo as discussões propondo um novo modelo de planejamento urbano chamado de “Planos Regionais”. Os primeiros bairros eleitos pelo atual governo são o Centro e o 4º Distrito, contemplados nos programas Reabilitação do Centro Histórico e +4D de Regeneração Urbana do 4º Distrito. Para incentivar o setor da construção civil nessas localidades, o Executivo municipal decidiu conceder incentivos fiscais e urbanísticos aos empreendedores que forem construir novos prédios ou investir no chamado retrofit – quando se moderniza um imóvel já existente.
A arquiteta e urbanista Clarice de Oliveira acompanhou a elaboração dos projetos para o Centro Histórico e 4º Distrito. Mesmo fatiando o Plano Diretor, ela acredita que os planos de bairros são uma ferramenta de planejamento urbano muito potente, inclusive para olhar de maneira mais detalhada e entender o que cada localidade precisa. No entanto, critica que a Prefeitura tenha feito o oposto ao não priorizar nesses programas moradias para a população de baixa renda que vive na região.
A copresidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul esteve em todas as etapas que envolveram a participação da sociedade nos projetos e diz que o tema foi deixado de lado. Uma das falhas dos programas, segundo Clarice, é justamente o fato do empreendedor poder escolher quais ações vai realizar ao aderir ao regime especial que irá conceder a ele determinados benefícios, como isenções fiscais e outras flexibilizações para construir.
A vinculação da isenção fiscal à produção de habitação de interesse social chegou a ser discutida durante as oficinas de debate, mas o Executivo não enviou o texto para ser votado na Câmara de Vereadores. A redação final deixou como opção ao empresário algumas ações como melhoria das calçadas, qualificação do passeio na frente do imóvel, tratamento de fachadas e atendimento de habitação prioritária. A urbanista diz que, da maneira como foi colocada, a isenção de tributos é insuficiente para que se promova esse incentivo. “Se ele pode escolher os requisitos que favorecem e valorizam o próprio empreendimento, por que ele vai construir um prédio para uma parcela da população que não tem um bom poder aquisitivo?”, questiona Clarice.
O secretário municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, Germano Bremm, admite que a região é um território fértil para produzir esse tipo de habitação, mas diz que a Prefeitura não tem a solução hoje. “Tem inúmeras oportunidades ali e a gente tem que achar ferramentas, formas de trabalhar cada vez mais isso. É um desafio, não sabemos se é esse caminho ou outro, mas a gente tem um time bem qualificado trabalhando para discutir esse tema”.
Para Clarice, as ações da Prefeitura vão na contramão do que é dito publicamente. Para ela, o resultado do documento aprovado na Câmara de Vereadores prova que o poder público não tem a intenção de priorizar moradias e, sim, empreendimentos.
Construída em 2004, a Casa de Passagem, que abrigou inicialmente os desalojados da Vila dos Papeleiros, passou a receber, a partir de 2007, os moradores das Vilas Tio Zeca e Areia que foram removidos de suas casas pelo Demhab por conta da construção da nova Ponte do Guaíba. A proposta do poder público era abrigar as famílias por um ano e meio enquanto novas moradias seriam feitas pela Prefeitura. A promessa não foi cumprida e o que era provisório se tornou definitivo.
O assentamento fica entre as ruas Voluntários da Pátria e Frederico Mentz, no bairro Navegantes. As casas minúsculas instaladas em um amplo corredor de passagem lembram celas de penitenciárias. Ligações elétricas irregulares, esgoto a céu aberto, lixo, infestação de ratos, problemas de abastecimento de água e incêndios constantes compõem a realidade de 80 famílias que esperam há mais de 15 anos para que as suas moradias sejam construídas.
Antes do início da obra, 600 famílias estavam cadastradas para serem reassentadas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), que havia prometido novas moradias antes da conclusão da ponte, o que está longe de acontecer. Inaugurada em 2020, a obra está inacabada e sem previsão de avanço. O contrato com a construtora Queiroz Galvão encerrou em 2021 e, para que a construção possa ser retomada, o DNIT precisa fazer nova licitação. Consultado sobre o andamento do Programa de Reassentamento, o órgão se limitou a dizer que “a conclusão das obras, bem como o reassentamento das famílias, integram objeto de estudo da ANTT para concessão”. Ao ser procurada, a Agência Nacional de Transportes Terrestres não respondeu à reportagem.
Há dez anos, uma ação civil pública movida pelo Ministério Público condenou o Município de Porto Alegre a assentar ou regularizar a área da Vila Santo André, localizada nas proximidades da avenida Castelo Branco, no bairro Humaitá. Cerca de mil pessoas viviam em situação precária. Em agosto de 2013, os moradores foram convocados para a audiência que determinou que a CEEE e o DMAE instalassem de forma provisória os serviços de luz e água até que o governo do Estado (posteriormente retirado do processo) apresentasse um cronograma de regularização da área, o que não aconteceu até agora.
Além da Casa de Passagem, Vilas Tio Zeca, Areia e Santo André, há ainda outros assentamentos que há décadas atendem, mesmo que precariamente, à necessidade de moradia de milhares de famílias. Só no 4º Distrito – região que compreende parte dos bairros Floresta, São Geraldo, Navegantes e Humaitá – existem 19 comunidades vivendo em ocupações irregulares. Ceniriani Vargas da Silva, dirigente no Movimento Nacional de Luta pela Moradia, diz que as ocupações aumentaram e novas foram surgindo à medida que as pessoas deixaram de ter condições de pagar tão caro pela moradia e lamenta que o respaldo do poder público só encontre os empreendedores e investidores imobiliários. “Quem realmente precisa não é contemplado com políticas públicas, sejam de moradia, sejam sociais”, afirma.
Ao mesmo tempo em que os incentivos fiscais e urbanísticos avançam, aumenta a pressão para que seja feita a troca da população residente nessas regiões. De acordo com o Mapeamento Nacional de Conflitos pela Terra e Moradia, existem hoje em Porto Alegre 3.119 famílias ameaçadas de despejo, seja por pedidos de reintegração de posse ou áreas afetadas por obras públicas que precisam ser esvaziadas, e ao menos um terço delas estão no Centro e 4º Distrito. Para Ceniriani, a remoção da população de baixa renda se intensificou no momento em que a região virou foco da Prefeitura para implantação dos projetos de revitalização.
Segundo a dirigente, existe um número significativo de áreas públicas, imóveis vagos e subutilizados no Centro onde poderiam ser desenvolvidos projetos habitacionais de moradia popular. “A política habitacional vai além de construir. Hoje, a única opção que a Prefeitura dá é o bônus moradia. Antes da Copa do Mundo (2014) se entregava as casas, agora se oferece R$ 128 mil. Para as famílias que vivem da reciclagem, esse valor não é suficiente para comprar um imóvel no mesmo território de origem. Elas não querem ir para a periferia onde não vão ter emprego”, diz.
Um edifício desocupado há mais de uma década pelo Estado no Centro de Porto Alegre tinha sido a alternativa encontrada por cerca de 70 famílias que buscavam por moradia longe das áreas de risco e da violência do tráfico ou para fugir dos altos preços de aluguel praticados na cidade. A Ocupação Lanceiros Negros viveu por quase dois anos na esquina das ruas Andrade Neves e General Câmara, até o dia 14 de junho de 2017. Durante na noite daquela quarta-feira gelada, véspera do feriado de Corpus Christi, balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e cassetetes colocaram crianças, mulheres e homens na rua.
A desocupação do prédio público era um pedido do ex-governador José Ivo Sartori (PMDB). Logo a Procuradoria-Geral do Estado alegou “esgotamento das tentativas de conciliação”, a juíza Aline Santos Guaranha expediu o mandado de reintegração de posse e o Batalhão de Operações Especiais da Brigada Militar fez cumprir o que recomendava a 7ª Vara da Fazenda Pública. O despacho orientava que o despejo poderia ser feito aos feriados, finais de semana e fora do expediente, se necessário, evitando o máximo possível o transtorno ao trânsito de veículos e funcionamento habitual da cidade.
Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa à época, Jeferson Fernandes tentou argumentar com os oficiais de justiça para que a ação não fosse realizada à noite, sem que as famílias tivessem um local para ir. Acabou detido. Seis anos depois, o imóvel permanece vazio. Segundo a Secretaria Estadual da Cultura, há um projeto em fase preliminar para anexá-lo ao prédio da Biblioteca Pública do Estado, mas as obras não devem começar antes de 2025.
O número 11 da rua Caldas Júnior, esquina com a avenida Mauá, também se fez espaço de vida provisório por quatro vezes – 2005, 2006, 2011 e 2013 – esta última deu origem à Ocupação Saraí, com cerca de 40 famílias habitando o prédio de sete andares. Em 2014, um decreto do então governador Tarso Genro (PT) declarou o imóvel como bem de interesse social, possibilitando a construção de habitações populares, mas, na troca de governo, José Ivo Sartori não levou o projeto adiante, o proprietário pediu reintegração de posse e as famílias foram despejadas. Em janeiro do ano passado, o prefeito Sebastião Melo anunciou a revitalização do antigo edifício sob as novas regras do Centro Histórico. Ironicamente, o imóvel, construído com verba pública nos anos 1940, através do extinto Banco Nacional de Habitação (BNH) para servir de moradia popular, agora será transformado no projeto Cais Rooftop com apartamentos de alto padrão – 40 dos 48 apartamentos foram vendidos a investidores de São Paulo e serão ofertados para aluguel por temporada.
O direito à moradia é garantido pela Constituição, assim como a perda de imóvel pelo abandono é prevista no Código Civil e regulamentada pela lei 13.465 de 2017. Em Porto Alegre, a arrecadação de bens abandonados encontra respaldo no Decreto 19.622 de 2016, que estabelece quais medidas devem ser adotadas para que o imóvel seja declarado como bem vago e receba novo uso para atender à finalidade pública, como instalação de equipamento comunitário ou destinado para habitação social, por exemplo.
Dos 686.414 domicílios particulares identificados pelo IBGE em 2022 na Capital, mais de 100 mil estão vagos, outros 27.250 são de uso ocasional. Porto Alegre não conhece seu déficit habitacional, mas, no último levantamento feito pelo Demhab, há exatos 14 anos, 64 mil pessoas aguardavam por moradia na planilha da Prefeitura.
Em 2010, o Censo já indicava 40 mil imóveis potencialmente abandonados, mas o município também não tem um levantamento oficial desses dados. Há seis anos, uma Comissão Especial foi criada dentro da Procuradoria-Geral do Município para identificar esses bens, mas, até agora, o trabalho da equipe avançou pouco. Desde que foi instaurada, em 2017, a Comissão de Análise e Gerenciamento de Imóveis Abandonados emitiu apenas uma Declaração Municipal de Vacância de Bem Imóvel Abandonado – que permite ao Município torná-lo público após três anos da notificação, não sendo necessário passar pelo Judiciário.
A grande dificuldade da Comissão, segundo a procuradora Cristiane Catarina de Oliveira, que estudou o instrumento da arrecadação, é caracterizar o imóvel como de fato abandonado. “Não basta estar visualmente abandonado, é preciso atender alguns critérios jurídicos e atestar que o proprietário tem essa intenção”, diz.
Há 23 anos morando na Bom Jesus, em Porto Alegre, Cenira Vargas é uma das lideranças da comunidade. Promotora Legal Popular e integrante do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, ela diz que vive “brigando” para conseguir habitação digna para a região onde vive. Na pandemia, apoiou famílias que estavam sendo despejadas da comunidade Mato Sampaio por conta de uma reintegração de posse da área que pertencia ao Município. O processo começou em 2019, quando a Prefeitura pretendia remover 56 famílias para permitir a construção de uma praça, uma rua e um reservatório de detenção de água – para evitar alagamentos.
Depois de muito protesto dos moradores, a Justiça suspendeu os despejos ao verificar que a administração municipal não havia garantido a segurança das pessoas que seriam retiradas de suas casas. O Ministério Público se manifestou, à época, dizendo que era possível construir a praça e as ruas sem mexer com as moradias e que, em último caso, as famílias poderiam ser reassentadas na mesma região. Em apoio à comunidade, a Câmara de Vereadores encaminhou um projeto de lei para transformar a Mato Sampaio em área especial de interesse social (AEIS I) voltada à moradia. O ex-prefeito Marchezan (PSDB) vetou o PL, mas, no final de 2020, os vereadores aprovaram a transformação do espaço para destiná-lo a assentamentos autoproduzidos por população de baixa renda.
Recentemente, Cenira conta que passou na região e identificou uma cerca colocada entre uma rua que está sendo aberta e o "condomínio dos ricos", formando uma nova divisão no bairro: “Do lado de lá, os condomínios de ricos e, do lado de cá, o pessoal da pobreza. A favela da Bom Jesus, como eles chamam, mas eu fiquei feliz de ver que eles tinham cercado, isso quer dizer que as famílias, que nós lutamos para que ficassem nas suas casas, não vão ser retiradas”, comemora. “Eles têm dinheiro, onde tiver um espaço, eles vão comprando, retiram as famílias e constroem”, diz.
Cenira refere-se ao Central Parque – bairro planejado com diversos condomínios que começou a ser erguido em 2012 pela construtora Rossi. Ao longo dos últimos dez anos, parte dos loteamentos foram sendo vendidos a outras empresas e parte ficou a cargo de construtoras como a Orquídea Incorporadora e Alcea Empreendimentos – controladas pela Rossi. Essas empresas assinaram um termo de compromisso com o Município para a construção de torres residenciais no condomínio.
As obras, que exigiam a remoção de dezenas de famílias, eram decorrentes do processo de parcelamento do solo e deveriam resultar em contrapartidas entregues à comunidade da Bom Jesus. No entanto, em 2022, a Rossi entrou em recuperação judicial, deixando para trás uma série de obrigações previstas no contrato assinado com a Prefeitura, como a reconstrução da Escola Estadual de Ensino Fundamental Professora Lea Rosa Cecchini, que nunca foi feita.
Segundo a procuradora Anelise Andrade, que atua na ação judicial, a entrega da praça está sendo cobrada judicialmente pelo Ministério Público. Como não havia conseguido conciliação com os empreendedores, o órgão hipotecou o único imóvel que a Rossi tinha em seu nome no Rio Grande do Sul, encontrado na cidade de Pelotas, zona sul do Estado, até que a empresa pague o que deve ao Município. A única obrigação cumprida pela construtora foi o Centro Cultural e Esportivo Bom Jesus, aberto à comunidade no final de 2012. De acordo com Anelise, conforme vem sendo monitorado, as obrigações pactuadas no acordo judicial estão em andamento, já tendo sido concluídas etapas de cercamento das áreas públicas.
Além de pouco investimento público no setor imobiliário para habitações populares, também são poucas as construtoras que se interessam por essa demanda. Entre as mais atuantes na Capital está a MRV, que em nove anos foi responsável por seis projetos: quatro foram concluídos, um está em andamento no bairro Humaitá e um terceiro, previsto para o bairro Nonoai, está parado com pedido de desistência por parte da empresa no sistema de informações da Prefeitura. A Tenda Negócios Imobiliários teve o primeiro empreendimento construído em 2014, o Vida Alegre Sarandi, comercializado via Minha Casa, Minha Vida, e só voltou a prever novos projetos em 2020, pelo menos seis deles estão em obras – principalmente nos bairros Rubem Berta e Vila Nova –, conforme site da transparência do Município.
Em entrevista ao Sul21 em janeiro de 2022, o prefeito Sebastião Melo disse que o Plano Diretor não proíbe que habitações de baixa renda sejam construídas no centro de Porto Alegre, mas o “atrativo do mercado é que vai resolver”. Enquanto isso, as construtoras que se interessam por esses projetos, mesmo com benefícios, priorizam terrenos baratos, disponíveis apenas nas periferias e, consequentemente, as populações de baixa renda continuam sendo enviadas a regiões com menor infraestrutura.
Uma terceira construtora especializada em imóveis voltados ao programa Minha Casa, Minha Vida chegou ao Estado em 2018, mas não concluiu nenhuma obra até o momento. Dos nove pedidos de aprovação de projeto feitos pela paranaense Lyx Participações e Empreendimentos, cinco estão em andamento, de acordo com o sistema eletrônico de informações da Prefeitura. A empresa foi beneficiada em 2020 pelo Decreto 20.655, implementado pelo ex-prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB).
A iniciativa do Executivo municipal dava prioridade aos empreendedores que se comprometessem a iniciar a obra ou concluir as fundações até um ano depois da aprovação do projeto. O sócio-fundador da construtora de Curitiba, Jaderson de Lima, aparece na lista de projetos prioritários do Município, no entanto o empresário está impedido de atuar no Paraná. Em 2019, o Ministério Público daquele Estado denunciou nove pessoas por crimes de organização criminosa, corrupção ativa e passiva, falsidade ideológica e uso de documento falso. Entre elas estavam os sócios da Lyx.
A ação penal cita “esquema para concessão de alvarás de construção e licenças ambientais para empreendimentos imobiliários, os quais, em tese, foram expedidos em desconformidade com a legislação ambiental e, possivelmente, com pagamento de propina a agentes públicos”.
Lima foi afastado das atividades da empresa e teve o passaporte retido. O empresário entrou duas vezes com pedido de revogação da medida de proibição de sair do país, mas o recurso foi negado pelo Superior Tribunal de Justiça.
Na decisão, o ministro Joel Ilan Paciornik justifica apontando que “os indícios de autoria e a prova da materialidade estão presentes, tendo em conta as investigações já realizadas pelo Ministério Público”. O magistrado referia-se também ao fato do investigado “remeter milionárias quantias sem lastro à empresa Goldenx LTD, constituída em paraíso fiscal” e reiterou que o “paciente só não teve a prisão preventiva decretada, justamente, porque há a possibilidade de se fazer a retenção do seu passaporte”.
A construtora também foi multada em R$ 2 milhões por fraude trabalhista e sistema semelhante a “pirâmide” em outra ação. Segundo o Ministério Público do Trabalho do Paraná, desde 2014 a companhia conseguia recursos com a Caixa Econômica Federal para construir conjuntos habitacionais. Depois, subcontratava empreiteiras que por sua vez também contratam os serviços de outros pequenos empreiteiros. Por qualquer desacerto em relação à obra, a Lyx suspendia os repasses financeiros. Sem o pagamento, a empresa abaixo da Lyx não conseguia pagar quem ela contratava que, por sua vez, não pagava os funcionários, o que gerava um “calote generalizado sobre os salários devidos aos trabalhadores”.