Aprendamos de novo a arte da amizade. Artigo de Timothy Radcliffe

Foto: Dim Hou | Unsplash

22 Julho 2023

Todos somos chamados a participar do mistério do amor de todas as formas: mediante o matrimônio e a caridade aberta, o eros e o ágape. Mas todo cristão também precisa florescer por meio da amizade. Até mesmo aquelas amizades que o mundo considera impossíveis.

A reflexão é de Timothy Radcliffe, biblista e teólogo inglês, um dos autores de espiritualidade mais apreciados no mundo católico em nível internacional. Foi mestre-geral da Ordem dos Pregadores (Dominicanos). Vive e leciona em Oxford. O Papa Francisco pediu que ele conduzisse o retiro para os participantes do Sínodo de outubro próximo.

O artigo foi publicado por Vita e Pensiero, n. 3, de maio-junho de 2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo.

Recentemente, quando fiquei gravemente doente, anotei algumas das minhas memórias. Fiz isso como um gesto de gratidão pela minha vida, que eu achava que não duraria muito. O que eu descobri é que a minha vida foi em grande parte moldada pela amizade.

O padre Bede Jarrett, que refundou a comunidade dominicana em Oxford há mais de 100 anos, escreveu que a amizade “para mim é a coisa mais bela sobre a terra”.

Quando chegou o momento de fazer os votos solenes, comprometendo-me com a ordem usque ad mortem, até a morte, a grande pergunta que se levantava para mim era esta: seria capaz de me realizar e ser feliz nesse insólito modo de vida que excluía o casamento? Uma parte de mim desejava uma relação exclusiva com outra pessoa. Eu seria a pessoa mais importante do mundo para outra pessoa, e ela, para mim. Sem esse aspecto, eu murcharia, tornando-me um velho galho seco?

Também não ajudou o fato de eu ter entrado na ordem em 1965, apenas dois anos após a “invenção do sexo”, de acordo com Philip Larkin. Naqueles tempos, a satisfação sexual parecia ser um direito.

Thomas Merton gostava contar a seus noviços uma história dos Padres do deserto. Havia uma mulher rica que queria ter um eremita “de companhia” em sua propriedade; era a última moda em termos de estilo de vida, assim como ter um personal trainer. Um dia, para pôr sua santidade à prova, ela lhe enviou uma belíssima prostituta. Ele disse à prostituta: “Sou um graveto seco; você está desperdiçando seu tempo”. A mulher rica gritou: “Aquele homem é um impostor. Expulsem-no!”.

Olhei para os velhos frades da minha província e vi que, em sua maioria, absolutamente não eram velhos gravetos secos. Eram humanamente vivos e felizes. Haviam permanecido jovens de espírito, e isso me deu novamente coragem para continuar. Mas, apenas alguns anos mais tarde, depois de ser ordenado, apaixonei-me profundamente por uma mulher, não que isso importe. Eu havia me consagrado à ordem por toda a minha vida, e eis aqui outra pessoa que me amava e com quem eu poderia ter compartilhado a minha existência. Não era essa a relação que eu sempre desejei? Será que tinha cometido um erro terrível?

Ambos entendemos que tínhamos que nos amar assim como éramos. Ela acreditava na minha vocação dominicana, e eu, na dela. Como frade que sou, devia amá-la como ela era, e ela amar a mim. Ela veio ficar com os dominicanos, para que pudesse entender como era a minha vida, assim como eu tinha que entender a dela. Quarenta e cinco anos depois, ainda somos grandes amigos.

Perdoe o meu simplismo, mas, ao longo de muitos anos, em meio a confusões e erros ocasionais, cheguei a acreditar que todos somos chamados a participar do mistério do amor divino, mas de maneiras diferentes. O amor de Deus é particular, é por cada um de nós na nossa singularidade. E ao mesmo tempo é universal, sem excluir ninguém. Como se costuma dizer, a boa notícia é que Deus te ama. A má notícia é que Deus ama todos os outros também.

Cada um de nós é chamado a viver juntos a particularidade do amor de Deus e sua universalidade. E é aqui que entra o meu simplismo grosseiro. Alguns de nós são chamados a se enraizar no solo de um amor ardente particular por outro. O sacramento desse amor é o matrimônio, mas pode assumir formas diversas.

Porém, se essa for a sua vocação, você será chamado a ir além dessa relação exclusiva. Ela deve ser aberta à chegada de filhos, amigos e até estranhos. O amor particular pode ser o seu terreno, mas deve transbordar para uma amizade mais ampla, caso contrário nos encontraremos atolados em uma relação narcisista introvertida que D. H. Lawrence chamava de égoïsme à deux.

Conta-se que duas mulheres brâmanes haviam cumprido o preceito de dar esmola trocando presentes iguais entre si. Mas eis que as duas, depois, reencarnaram em poços envenenados! Portanto, todo amor apaixonado e comprometido também precisa se ampliar em amizade para florescer.

Algumas pessoas – padres, religiosos e alguns leigos – são chamadas a ser plantadas no terreno do amor escancarado de Deus, a amar o estrangeiro à porta, a pertencer a qualquer pessoa que se apresente. Pensemos em Madre Teresa de Calcutá. Pensemos no maravilhoso compromisso da Paróquia de St. Martin-in-the-Fields, em Londres, em favor dos sem-teto.

Quando me apaixonei, descobri que esse era o meu terreno, o húmus onde eu podia lançar raízes e florescer. Mas isso não nos impede de estreitar profundas amizades e amorosas com pessoas individuais. Se não aprendermos a amar pessoas específicas, o nosso amor será frio e vazio, como velhos gravetos secos.

Santo Elredo de Rievaulx, abade cisterciense do século XII, alertava os religiosos em relação a “um amor que, dirigindo-se a todos, não alcança ninguém”. W. H. Auden brincava sobre isso: “Estamos aqui na terra para fazer o bem aos outros. O que os outros estão fazendo, eu não sei”.

Cem anos atrás, Dom Hubert van Zeller, então noviço na Abadia de Downside, Somerset, escreveu alarmado a Bede Jarrett, o nosso provincial dominicano inglês, quando se apaixonou por uma pessoa conhecida apenas como P. Não sabemos se P. era um homem ou uma mulher. Não importa. Bede lhe respondeu: “Estou contente, porque acho que sua tentação sempre foi para o puritanismo, uma estreiteza mental, uma certa desumanidade [...] Sua tendência era quase para uma negação da glorificação da matéria. Você estava apaixonado pelo Senhor, mas não exatamente apaixonado pela Encarnação. Você realmente tinha medo... Acho que P. vai salvar sua vida. Vou rezar uma missa de ação de graças pelo que P. foi e fez por vocês. Você precisa de P. por muito tempo. Suas tias não são uma válvula de escape. Nem os corpulentos e idosos padres provinciais”.

Portanto, todos somos chamados a participar do mistério do amor de Deus de todas as formas: mediante o amor esponsal e a caridade aberta, mediante o eros e o ágape. Mas todo cristão também precisa florescer mediante a amizade. Somos discípulos daquele que nos disse: “Eu lhes chamei amigos”. Todas as formas de discipulado cristão incluem a arte da amizade. Até os eremitas são famosos por suas amizades. Pensemos em Santo Antônio Abade, o Padre do deserto cujas amizades eram lendárias.

"Todo amor apaixonado e comprometido também precisa se ampliar em amizade para florescer", afirma Timothy Radcliffe. (Foto: Afta Putta Gunawan | Pexels)

Para todos nós, suponho, o desafio é estender a mão em amizade sem sermos desenraizados do próprio terreno particular. Por exemplo, como posso me tornar uma pessoa capaz de profunda amizade sem minar meu casamento ou a minha vida religiosa? A amizade é um sinal do Reino, quando “o lobo será hóspede do cordeiro, a pantera se deitará ao lado do cabrito; o bezerro e o leãozinho pastarão juntos [...]. Ninguém agirá mal nem provocará destruição em meu monte santo, pois a terra estará cheia do conhecimento do Senhor, como as águas enchem o mar” (Is 11,6-9).

É possível pensar em alguma amizade fácil entre homens e mulheres depois da Queda até quando Jesus começou a perambular pelas estradas de Jerusalém com seu grupo de amigos, mulheres e homens? Nós, dominicanos, somos chamados oficialmente de “Ordem dos Pregadores”. E os primeiros dominicanos do século XIII pregavam no contexto de profundas amizades entre homens e mulheres. São Domingos decisivamente amava a companhia das mulheres. No leito de morte, ele confessou que “ficara mais entusiasmado com as conversas com as mulheres jovens do que com as palavras das mulheres idosas”. O Bem-aventurado Jordão da Saxônia, seu sucessor, escreveu as mais belas cartas de amor a uma freira dominicana, a Bem-aventurada Diana de Andalò, transbordantes de ternura recíproca. Santa Catarina de Siena estava rodeada pelo seu círculo de amados amigos: homens e mulheres, velhos e jovens, leigos e religiosos conhecidos como os “Caterinati”, o “povo de Catarina”.

Hoje, as relações entre homens e mulheres costumam ser inquietas, impacientes e tensas. Estudos mostram que homens e mulheres nos Estados Unidos tornaram-se temerosos da intimidade. Nós pregamos o Reino abrindo-nos à amizade. É por isso que o abuso sexual nas nossas igrejas é tão nocivo e destrutivo.

Não vou me aventurar aqui em uma definição da amizade. Na minha experiência, o fundamento da amizade é o prazer de estar com o outro. Nós nos deleitamos em sua presença. Estar com os amigos faz florescer e brotar como ninguém mais consegue. Sente-se a necessidade de estar com o outro. Na liturgia, costumamos dizer: “O Senhor esteja convosco”. Essa é a amizade divina. Não um Deus que necessariamente faz alguma coisa. Simplesmente está conosco.

S. Lewis escreveu que “estar com um amigo” se fundamenta em ver as coisas juntos. Os amantes se entreolham; os amigos olham na mesma direção. Cito: “‘Estás interessado na mesma verdade?’. Quem concorda conosco sobre o fato de que uma certa questão, considerada secundária pelos outros, é, em vez disso, da maior importância poderá ser nosso amigo. Por outro lado, não é necessário que ele esteja de acordo com a resposta a ser dada ao problema”.

Recentemente, preguei em Oxford durante o rito comemorativo de um amigo. Era um cientista, um judeu agnóstico, um amante da arte e um poeta: Simon Altmann. Não estávamos de acordo quanto à fé em Deus, mas amávamos buscar o conhecimento juntos.

As corujas podem caçar na escuridão, porque uma orelha é ligeiramente mais alta do que a outra, e, desse modo, conseguem identificar facilmente as suas presas. Como as nossas opiniões não são exatamente as mesmas, as conversas com os amigos podem ser um prazer. Gareth Moore, um filósofo dominicano, era um querido amigo que infelizmente morreu de câncer ainda jovem. Gostávamos de discutir. Uma noite, às 22 horas, fui lhe perguntar se ele podia celebrar a missa no convento local na manhã seguinte. Então, começamos a discutir e, de repente, percebemos que o sol havia nascido. Havíamos discutido por oito horas e não havíamos bebido nada! Algo incomum para um dominicano.

Quando Gareth descobriu que seu câncer estava em fase terminal, perguntei-lhe o que ele desejava. Ele respondeu: “Quero terminar meu livro” (e assim o fez); “quero passar o tempo com os meus amigos” (e assim foi feito); e “quero que a minha morte seja um dom para os irmãos” (e assim foi).

Neste momento, estou escrevendo um livro com outro amigo dominicano, Lukasz Popko. Ele é 33 anos mais novo do que eu, é polonês e um verdadeiro biblista. São as nossas diferenças que tornam as nossas conversas agradáveis.

Meu primeiro encargo como padre foi como capelão universitário na zona oeste de Londres. Meu superior era uma freira católica, a Ir. Gerry Hall. Ela amava as motos velozes e gim-tônica forte. Quando era uma jovem freira, o cardeal Heenan fez uma visita a seu convento e, após a visita, escreveu à reverenda madre superiora que havia ficado chocado ao ver uma jovem freira usando uma minissaia. A Ir. Gerry vestiu o mesmo vestido, correu para a casa do arcebispo, subiu as escadas correndo, invadiu o escritório do cardeal e disse: “Eminência, se o senhor acha que isto é uma minissaia, não tem o direito de comentar sobre moda feminina”.

Na capelania, com a ajuda da Ir. Gerry, há quase 50 anos, descobri esta coisa maravilhosa: um grupo de amigos, homens e mulheres, cuja amizade continua até hoje. Por pertencermos a esse grupo, éramos mais nós mesmos. Quanto mais nos aproximávamos uns aos outros, mais éramos individuais. Quanto mais éramos “nós”, mais cada um de nós era ele mesmo ou ela mesma.

Mas nem sempre é fácil. Cada amizade profunda traz consigo uma dimensão da minha vida e da minha identidade que nunca existiu antes. Eu me torno alguém que nunca fui antes. Rowan Williams, em seu excelente livro sobre Dostoiévski, diz que toda conversa profunda revela outra dimensão de mim mesmo que até então existia apenas potencialmente. E cita Bakhtin: “O diálogo (…) não é um meio de revelar, de trazer à tona o caráter pré-confeccionado de uma pessoa. Não, no diálogo uma pessoa não só se mostra exteriormente, mas também se torna pela primeira vez quem ela é – e, repetimos, não só para os outros, mas também para si mesma”. Cada amizade profunda é para mim um convite para me tornar uma pessoa nova.

Portanto, não somos sempre a mesma pessoa com os nossos vários amigos. Aquilo que eu era com Gareth não é exatamente como eu sou com Lukasz. E também podem surgir tensões e contradições. Eu cresci em uma família calorosa e amorosa que era conservadora e tradicional em muitos aspectos. Quando me tornei dominicano, tornei-me irmão e amigo de pessoas como Herbert McCabe, que gostava de ir a pubs e cantar canções irlandesas revolucionárias que horrorizariam a minha família e os meus amigos de longa data. Quem eu era, então? Eu era muitas pessoas?

No romance de Madeleine Thien sobre os imigrantes chineses nos Estados Unidos, “Don’t Say We Have Nothing”, um dos personagens diz: “Nunca tente ser uma coisa só, um ser humano indivisível. Se tantas pessoas gostam de você, você pode dizer com toda a honestidade que é uma coisa só?”. Portanto, se nos abrirmos a múltiplas amizades, não teremos uma identidade precisa e bem definida.

Quando eu estudava na França no fim dos anos 1960, o lema da época era “il faut être cohérent”. É preciso ser coerente. Não. Somos pessoas fragmentadas, em devir. A coerência virá depois, com o advento do Reino. Então, o lobo e o cordeiro dentro de cada um de nós estarão em paz um com o outro.

São João diz: “Ainda não foi revelado o que vamos ser. Sabemos que quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque nós o veremos como ele é” (1Jo 3,2). Se temos identidades fechadas e fixas, gravadas na pedra, nunca estaremos abertos à aventura de novas amizades que desdobrarão novas dimensões de quem somos. Acho que aprendi a não me preocupar em não saber totalmente quem sou.

No Antigo Testamento e em Aristóteles, concorda-se sobre o fato de que só é possível ser amigo de pessoas boas. A pessoa boa não poderia fazer amizade com os malvados. A amizade era para os virtuosos. Se os malvados tinham amigos, era sempre para planejar alguma má ação.

Jesus escandalizou o mundo com amizades impossíveis. Ele comia e bebia com prostitutas e cobradores de impostos. Imagino que ele gostava da companhia deles. Jesus gastou-se em amizades que romperam todos os limites: amizades que não deveriam existir. Durante a última ceia, ele disse: “Eu chamei vocês de amigos”, precisamente aos discípulos que ele sabia que o trairiam, negariam e abandonariam. No fim, ele foi morto devido a suas amizades escandalosas e impossíveis.

Essa também é a nossa vocação, estreitar amizades que o mundo considera impossíveis. Quando nos apaixonamos, cedemos ao peso da atração, mas as amizades são feitas e mantidas. Pierre Claverie era um dominicano francês, bispo de Oran, na Argélia. No momento de sua ordenação episcopal, ele disse aos seus amigos muçulmanos: “Também devo a vocês aquilo que eu sou hoje. Com vocês, aprendendo árabe, aprendi sobretudo a falar e a compreender a língua do coração, a língua da amizade fraterna, em que as raças e as religiões se comunicam. E, além disso, aprendi a doçura do coração ao crer que essa amizade resistirá ao tempo, à distância e à separação. De fato, creio que essa amizade vem de Deus e leva a Deus”.

Por essa sua amizade com os muçulmanos, ele foi assassinado junto com um jovem amigo muçulmano, Mohamed Bouchikhi. Centenas de muçulmanos compareceram ao seu funeral e murmuravam: “Ele era também o nosso bispo, era o bispo dos muçulmanos”. Em sua beatificação, foi encenada uma peça teatral escrita por um jovem dominicano francês, intitulada “Pierre e Mohamed: uma celebração de sua amizade. A mãe de Mohamed, que estava presente, foi depois beijar o ator que interpretava seu filho.

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