Do “dispositivo Ratzinger” à “Opção Francisco”: rupturas e continuidades na Igreja do século XXI. Artigo de Andrea Grillo

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

17 Julho 2023

"Há décadas precisamos de uma instituição que permita o crescimento da fé, no diálogo e não na censura", afirma Andrea Grillo na conferência proferida no evento Opção Francisco. A Igreja e a mudança epocal, promovido pelo Instituto Humanitas UnisinosIHU, em 17-07-2023.

Segundo o teólogo, "durante séculos contamos com um exercício de razão teológica que se limitou a 'condenar os erros' e que encontrou nisto a sua razão de ser: portanto, não será fácil adquirir imediatamente um novo estilo".

Andrea Grillo é filósofo e teólogo italiano, leigo, especialista em liturgia e pastoral. Doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pádua, é professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. Também é membro da Associação Teológica Italiana e da Associação dos Professores de Liturgia da Itália.

Eis a conferência.

"Ad discendum item necessario dupliciter ducimur, auctoritate atque ratione. Tempore auctoritas, re autem ratio prior est" ["Na aprendizagem somos guiados de duas maneiras: pela autoridade e pela razão. Há uma primazia da autoridade no plano temporal, e uma prioridade da razão no plano substantivo"]. (Ago., De ord., II, IX, 26 [CCL, XXIX, 121, 2-122, 4]

A perspectiva desta reflexão, que foi estabelecida em seu título e abordagem há muitos meses, tem hoje uma atualidade inesperada, a começar pela nomeação muito recente do novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé e pela carta que o Papa Francisco lhe enviou. Eu gostaria de começar pelo fim, a partir desta carta, para depois identificar melhor o que foi (e ainda é) o "dispositivo de bloqueio" (que não pode arbitrariamente ser chamado de "dispositivo Ratzinger" já que ele é o maior e mais refinado criador), para finalmente indicar até que ponto será possível, superando esse "dispositivo", recuperar uma relação dinâmica entre tradição e história, entre tradição e consciência, segundo aquele "caráter pastoral" que o Concílio Vaticano II introduziu e que o "dispositivo de bloqueio" tentou, justamente, bloquear. Por isso, dividirei meu discurso em três partes: começarei pela recente carta do Papa Francisco ao novo prefeito, analisarei brevemente o "dispositivo Ratinger" em seu desenvolvimento histórico e concluirei no nível das perspectivas que se abrem para a agora iminente dupla nomeação sinodal, com a qual Francisco pretende superar o efeito paralisante do dispositivo de bloqueio.

 

1. Uma nova visão da "doutrina guardiã"

Uma carta acompanhando a nomeação de um novo prefeito já é um fato singular. Se, então, na carta, o Bispo de Roma expressa juízos muito claros sobre os limites de uma gestão "censória" do Dicastério e pede para inaugurar outro estilo, então muitas coisas estão destinadas a mudar. Uma frase da carta foi muito marcante, que eu relato imediatamente, é:

"O Dicastério que você presidirá em outros tempos usou métodos imorais. Eram tempos em que, em vez de promover o conhecimento teológico, se perseguiam possíveis erros doutrinários. O que eu espero de você é definitivamente algo muito diferente."

Eu gostaria de considerar brevemente como esta frase vem de décadas em que a melhor teologia pós-conciliar pediu para modificar profundamente a maneira pela qual primeiro o Santo Ofício, e depois a Congregação para a Doutrina da Fé, desempenharam a tarefa de "guardar a ". Durante muitos séculos, a partir da idade moderna, cada Estado se equipou com um órgão de controle do conhecimento. Não só a Igreja tinha um Santo Ofício. Mas com o advento do mundo moderno tardio e com o nascimento da sociedade liberal e aberta, tanto o Índice de Livros Proibidos quanto o órgão de salvaguarda do conhecimento correto desapareceram em todos os estados. Somente a Igreja a preservou até hoje.

Por trás desses órgãos de governo está a ideia de que a "liberdade de consciência" é um pecado. Após o Vaticano II, houve um lento movimento em direção a uma revisão, que atribuiria, ao menos formalmente, ao processo de censura um procedimento pelo menos parcialmente controlável, com garantia de defesa para as partes investigadas. Mas, na verdade, em grande parte eram procedimentos inquisitoriais, em busca de erros e inimigos. Era mais difícil influenciar a maneira como a Congregação "faz teologia". Precisamente aqui, como veremos, reside a mais grave imoralidade.

Ao longo dessa história, de fato, é evidente que "imoralidade" significava, em primeiro lugar, a forma como as pessoas foram tratadas. Grandes autores foram investigados, bloqueados, impedidos de publicar e lecionar. Em péssima forma até o Vaticano II, mas ainda pesado e com argumentos frágeis ou cativos até 5 dias atrás, com o caso Lintner.

Mas isto é apenas parte da verdade. Talvez a parte mais grave não diga respeito aos indivíduos, que sofreram injustamente, mas às ideias, tal como foram tratadas, consideradas, ignoradas ou eliminadas. Uma das atitudes mais "imorais" dos últimos 40 anos da Congregação-Dicastério são aquelas que tentaram "bloquear" qualquer discussão real. Onde havia um problema, era uma questão de negá-lo e trazer a solução de volta a um nível tão inatacável quanto vazio. Vamos a apenas alguns exemplos.

Em plena pandemia (2020), uma parte da Congregação para a Doutrina da Fé perdeu tempo "reformando" o rito de Pio V, confirmando indiretamente a coexistência paralela de duas formas rituais do mesmo rito romano, contra todas as evidências teológicas, que a Congregação deveria ter mantido de forma muito diferente. Por ocasião dos 50 anos do Concílio Vaticano II, em 2012, uma Nota da Congregação pretendia mudar de assunto e sugerir que um aniversário igualmente importante fosse o 20º aniversário do Catecismo da Igreja Católica, através do qual o Concílio poderia/deveria ser lido! Ainda antes, uma nota da Congregação resolveu negativamente a possível extensão ao diácono da ministerialidade da unção dos enfermos, recorrendo a uma citação da famosa carta do Papa Inocêncio I ao bispo de Gubbio, mas eliminando dela todas as palavras que se teriam oposto à decisão tomada. Em suma, tratava-se de "negar todos os movimentos", no plano litúrgico, sacramental, institucional, chegando ao ponto de pôr em jogo a obediência à fé, de modo a preservar as soluções do passado sem qualquer possibilidade de mudança, que sempre se apresentava como uma ameaça à fé. Esse procedimento imoral era considerado um dever, uma tarefa moral.

Esta função indevida, assumida pela Congregação especialmente após o Concílio Vaticano II, teve de terminar há muito tempo. Porque guardar a fé significa, precisamente, como ensinou o Vaticano II, fazê-la caminhar pela história, fazê-la elaborar novas evidências, permitir-lhe integrar novas culturas e expressar novas sensibilidades. Uma Congregação que se acostumou a julgar tudo com o manual do Catecismo da Igreja Católica talvez tenha terminado com a carta ao novo prefeito. Há décadas precisamos de uma instituição que permita o crescimento da fé, no diálogo e não na censura. Durante séculos contamos com um exercício de razão teológica que se limitou a "condenar os erros" e que encontrou nisto a sua razão de ser: portanto, não será fácil adquirir imediatamente um novo estilo.

Já no Concílio Vaticano I a ideia era compor uma "suma dos erros modernos", mas a obra conciliar, ainda em 1870, iniciou em parte um novo caminho. Depois veio o Vaticano II, que ampliou e articulou ainda melhor a novidade. A inércia do Santo Ofício tem sido perpetuar uma identidade católica que só pode ser salva se condenar os erros. Cabe ao novo prefeito "promover o conhecimento teológico", algo que não se identifica antes de tudo com atos de condenação. O novo prefeito e um novo estilo podem valorizar o precioso trabalho que uma parte da teologia, muitas vezes independentemente dos desejos (e às vezes chantagens) vindos de Roma, foi capaz de elaborar por pelo menos 40 anos. Imoral não era apenas a forma como as pessoas eram tratadas, mas também a maneira como nos fechamos diante das muitas novas evidências que a vida eclesial descobriu e valorizou parcialmente. A superação dessas duas imoralidades institucionais (para com as pessoas e para com as ideias) constitui um programa de reforma verdadeiramente central para a Igreja Católica. Mas essa "superação" diz respeito, de forma mais ampla, a um modo de interpretar a função do magistério em relação à vida da Igreja. Por isso, é justo falar de um "dispositivo de bloqueio", que marcou o pontificado de João Paulo II e Bento XVI e que Francisco está laboriosamente tentando superar.

2. O dispositivo de bloqueio na história da teologia

Eu gostaria agora de apresentar um "modelo de argumentação" que desde a década de 1970 se difundiu no discurso magisterial católico e garantiu progressivamente uma verdadeira "paralisia" daquela orientação para a reforma e os processos de atualização, que o Concílio Vaticano II providencialmente reintroduziu na vida da Igreja. Em outros lugares, já tratei do fenômeno, identificando uma espécie de "estilo magistral", que se baseava em uma estratégia paradoxal: ao negar sua própria autoridade, ela mantém toda a sua autoridade (mais informações sobre o tema no link, em italiano). Aqui retomarei brevemente o significado desse primeiro raciocínio. [1]

2.1. O problema da autoridade

No debate eclesial que surgiu a partir das palavras proféticas do Papa Francisco sobre a "Igreja em saída" e sobre a "superação da autorreferencialidade", ainda não se tinha compreendido claramente o quanto essa prioridade, que o papa justamente enunciava desde os primeiros dias de seu ministério – e que já estava claramente presente em seu texto apresentado à Congregação dos Cardeais em conclave – exigiria uma profunda revisão do estilo com que a Igreja pensa e age em relação ao tema do "poder" e da "autoridade". Para poder "sair da autorreferencialidade" e tornar-se verdadeiramente "heterorreferencial" – isto é, não colocar no centro si próprio, mas o Outro e o outro –, a Igreja deve primeiro reconhecer que está investida de uma autoridade real e eficaz. Em outras palavras, deve ser capaz de confiar na possibilidade de intervir autoritariamente em sua própria doutrina e disciplina – no que pensa de si mesmo e no que faz consigo mesmo – sem ceder à tentação de "impedir um repensar", talvez em nome da fidelidade à tradição.

Se a Igreja pensa que a única maneira de ser fiel ao Evangelho é continuar em todos os aspectos como antes – doutrinaria e disciplinarmente – ela se convencerá imediatamente de que deve permanecer absolutamente imóvel para ser plenamente ela mesma. Fará da imobilidade a sua obsessão.

Francisco quis responder a esta tentação com dez anos de uma palavra profética, que quer sobretudo persuadir a Igreja e o mundo de duas coisas:
que a fidelidade é mediada pelo movimento, pela conversão, pela saída à rua, não pela estagnação, pelo medo e pelo fechar-se dentro de muros;
que para se mover é necessário reconhecer a autoridade de estar na história da Igreja e da salvação de forma participativa e ativa, não como espectadores mudos e passivos ou como simples "notários".

Esta consideração, porém, encontra mais de uma resistência não apenas na inevitável inércia do modelo a ser superado, mas também em alguns "clichês", dos quais eu gostaria de considerar o que podemos expressar como a redução da autoridade à "renúncia à autoridade". Trata-se de um clichê muito fascinante, que por vezes assume uma importância considerável na experiência eclesial e que o magistério pode e deve usar em passagens complexas. Traduz-se, formalmente, numa declaração de "non possumus". Este é um dos pontos-chave do "magistério negativo", que a tradição antiga, medieval e moderna cultivou com atenção e cuidado. Trata-se, em última análise, de uma "autolimitação do magistério". Mas esta autolimitação, que em si mesma é garantia do "outro", e que, por isso, deve travar e dificultar as formas de autorreferencialidade eclesial, entrou com grande força na experiência eclesial das últimas décadas, em particular a partir do fim da década de 1970.

2.2. O surgimento do "dispositivo de bloqueio"

Agora, eu gostaria de identificar mais claramente o cerne desse argumento em um raciocínio artificial – que de certa forma aparece como uma espécie de "sofisma" – e que não é difícil atribuir a J. Ratzinger, em uma parábola temporal de pelo menos 35 anos, que vai de 1977 a 2012. Trata-se de um "dispositivo teórico" que realiza, por meio de uma fineza retórica indiscutível, um resultado pré-estabelecido: bloquear toda mudança e fazer prevalecer, afetivamente antes do que conceitualmente, a primazia do antigo sobre o moderno. É um "dispositivo de bloqueio", que paralisa afetivamente, "por apego", identificando tradição com afeto, todo projeto de reforma.

Antes de analisar as principais etapas desse interessante fenômeno, que por brevidade chamarei de "dispositivo de bloqueio", gostaria de esclarecer melhor a peculiaridade de minha abordagem:

a) A contribuição desse "modelo de pensamento" é muito significativa porque diz respeito primeiro ao arcebispo Ratzinger, depois ao prefeito Ratzinger e, finalmente, ao papa Ratzinger: ou seja, é fruto não do "primeiro Ratzinger", livre de compromissos pastorais e capaz de estar no desafio da reforma conciliar, mas do "segundo e último Ratzinger", "queimado por 68" e depois engajado com responsabilidades crescentes no nível diocesano e, finalmente, muito em breve, ao nível da Igreja universal.

b) O cerne do argumento é fruto não só de uma indiscutível competência teológica, mas também da abdicação da razão, de forma bastante marcada, para dar espaço a um "afeto", ou, melhor ainda, a um "apego", a um "apego" indispensável e assumido como uma auctoritas indiscutível: a ratio cede a uma auctoritas afetivamente superdeterminado e, portanto, incontrolável. A ponto de se referir à "constituição divina da Igreja" apegos, transformados em atos de fé necessários!

c) Por isso ouso atribuir ao raciocínio a qualificação de "dispositivo": ele não explica racionalmente, mas corrobora retoricamente e impõe juridicamente uma solução que não tem base sólida a não ser em um afeto. Isso determina o efeito de "evaporar" toda instância legítima de mudança, que o dispositivo transforma, imediatamente, e eu diria quase violentamente, em uma contradição com os afetos e, portanto, em negação e ameaça da tradição.

d) Funciona, finalmente ou talvez antes de tudo, como um perfeito suporte teórico, quase como um axioma indiscutível, afirmar uma estrutura resistente e imóvel da Igreja, diante de um mundo ameaçador e traiçoeiro, ao qual a Igreja não deve se curvar. Recuperando temas e motivos do antimodernismo de um século antes, o "dispositivo" funciona perfeitamente como um "bloco" contra um Concílio Vaticano II percebido cada vez menos como um recurso e cada vez mais como uma "deriva".

Neste parágrafo eu gostaria de mostrar esse "dispositivo de bloqueio" em 5 versões, historicamente progressistas, quase como um "ajuste" cada vez mais refinado e agudo dele. A apresentação incidirá, pela ordem, sobre 4 documentos eclesiais bastante característicos desta abordagem: a "Carta sobre a Primeira Confissão" do arcebispo de Munique, de 1977, o novo Código de Direito Canônico (1983), a carta apostólica Ordinatio sacerdotalis de 1994, a instrução Liturgiam authenticam de 2001, o motu proprio Summorum Pontificum, de 2007, à qual se deve acrescentar a "carta aos bispos alemães" sobre a questão dos "pro multis", de 2012. No cerne de cada um desses documentos, ao longo de 35 anos, está o mesmo mecanismo argumentativo, claramente reconhecível, fascinante e distrativo, claro e ao mesmo tempo obscuro, no qual apego e razão se fundem e se fundem. Uma breve investigação poderá trazer à luz o ponto cego, mas também a dívida que todos temos para com este modo de raciocinar e de refletir sobre a tradição eclesial e do qual, se quisermos reler significativamente o Concílio Vaticano II, mais cedo ou mais tarde devemos libertar-nos.

2.3. Cinco exemplos do "dispositivo"

2.3.1. Na introdução, insinua-se a conclusão: carta sobre a Primeira Confissão

O primeiro "lugar doutrinário" em que o "dispositivo de bloqueio" é posto em funcionamento é a relação entre a Primeira Confissão e a Primeira Comunhão, que o então arcebispo de Colônia repõe "contra" o ponto de viragem impressionado pelo seu antecessor, o cardeal J. Doepfner, que tinha movido a primeira confissão após a primeira comunhão. A pretensão é opor-se a um "uso pedagógico" da tradição, mas a teologia que deve nortear o novo edital se identifica, simplesmente, com a "evidência afetiva" do princípio da autoridade. No texto da carta pastoral "Primeira Confissão e Primeira Comunhão das Crianças" (1977), Ratzinger chega a inverter o sentido da tradição, para garantir a sobrevivência da práxis (para ele) mais tradicional, afirmando um primado de um sacramento de cura sobre um sacramento de iniciação, em grave tensão mesmo com o Concílio de Trento e com a diferença "de dignidade" que ele exige ser reconhecida entre os sacramentos. Com efeito, afirma: "Só através da confissão pessoal se tornam verdadeiras as invocações de perdão da liturgia eucarística, e esta liturgia eucarística da Igreja conserva a sua grande profundidade pessoal que, além disso, é o pressuposto da verdadeira comunhão".

Assim, ele passa a subordinar a comunhão eucarística à confissão pessoal, como regra de aproximação original do próprio sentido da comunhão, com uma força evidente e séria da tradição. Tudo isso, aliás, com uma motivação verdadeiramente surpreendente: o novo arcebispo pede aos agentes pastorais que "deixem as suas ideias mais queridas para o bem da comunidade", mas, de fato, com esta carta, impõe as suas ideias mais caras – as mais afetivamente urgentes para ele – em detrimento do caminho de amadurecimento da comunidade. Usar a Didache como texto-chave para afirmar o primado da confissão individual sobre a comunhão eucarística é um argumento muito arriscado, com o uso de "auctoritas" completamente anacrônicas e desprovidas de evidências históricas. Mas aqui, pela primeira vez, salvo engano, aparece o "dispositivo de bloqueio": argumentando sem verdadeiro rigor, e de forma puramente afetiva, obtém apenas uma "conformação autoritária" de comportamento, sem motivação teológica consistente. Não é por acaso que no Código de 1983 (não no de 1917), a "confissão sacramental" também aparecerá juridicamente pela primeira vez como condição problemática da Primeira Comunhão.

2.3.2. O "novo" código e a redução da teologia ao silêncio

Foi o grande jurista E. W. Boekenfoerde quem questionou não apenas uma certa maneira de entender a "doutrina eclesial" em relação à "liberdade da teologia", mas também levantou dúvidas sobre a legitimidade de uma norma como a que define os deveres do teólogo em relação ao magistério eclesial. Na mudança de estilo predominante entre "negar o erro" (magistério negativo) e "afirmar a verdade" (magistério positivo) podemos detectar uma mudança na norma que supervisiona os "deveres profissionais" do teólogo. Este parece-me um aspecto muito significativo da evolução que o Concílio Vaticano II provocou nas relações entre o Magistério e a teologia e que hoje mostra toda a sua natureza contraditória.

Basta considerar os "homens" dos dois artigos muito diferentes com que o Código de Direito Canônico de 1917 e o de 1983 regulam os "deveres" do teólogo:

a) O Código de 1917 (CAN 1324)

"Satis non est haereticam pravitatem devitare, sed oportet illos quoque errores diligenter fügere, qui ad illam plus minusve accedunt; quare omnes debent etiam contitutiones et decreta servare quibus pravae huiusmodi opinones a Sancta Sede proscriptae et prohibitae sunt" [Não basta evitar a heresia, mas é preciso fugir dos erros que nela entram e observar as disposições com que a Santa Sé proscreve e proíbe as más opiniões].

É claro como a tarefa do teólogo é relida dentro de uma relação com um magistério assumido em sua versão predominantemente negativa, que se expressa em termos de proposições errôneas, doutrinas heréticas, opiniões rejeitadas...

b) O Código de 1983 (CAN 752)

"Non quidem fidei assensus, religiosum tamen intellectus et voluntatis obsequium praestandum est doctrinae, quam sive Summus Pontifex sive Collegium Episcoporum de fide vel de moribus enuntiant, magisterium authenticum exercent, etsi definitivo actu eandem proclamare non intendant; Christifideles ergo devitate curent quae eadem non congruant" [Não assentimento de fé, mas religioso obséquio de inteligência e vontade deve ser prestado à doutrina que o Sumo Pontífice ou o Colégio dos Bispos, ao exercerem o magistério autêntico, enunciam sobre a fé e os costumes, mesmo quando não tenham a intenção de proclamá-la por ato definitivo; portanto os fiéis procurem evitar tudo o que não esteja de acordo com ela].

Nessa segunda perspectiva, fica evidente o que aconteceu: passamos de uma leitura negativa para uma leitura positiva do magistério e, portanto, para uma implementação radical do "dispositivo de bloqueio". Deste modo, a obediência a todas as "proibições e proibições" transformou-se em "religioso obséquio de inteligência" a todo o "magistério autêntico". Isso obriga o teólogo a permanecer em silêncio em relação a toda expressão magistral. Juridicamente, ele só tem uma alternativa: ou elogia ou se cala. O dispositivo de bloqueio encontra nessa nova disposição geral da relação entre magistério e teologia seu fundamento mais autoritário (e mais problemático), porque cancela institucionalmente todo espaço de liberdade de pesquisa teológica.

2.3.3. Documentos não infalíveis e práticas infalíveis: a explicação da Ordinatio Sacerdotalis

Cerca de dez anos depois, em 1994, com a Ordinatio sacerdotalis, da qual Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, foi o grande inspirador, sobre o tema da "ordenação de mulheres ao sacerdócio", João Paulo II retomou vigorosamente esse estilo, declarando que "a Igreja não tem de modo algum a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres". Com uma declaração de "não autoridade", e da qual o próprio Prefeito esclarece mais adiante, a natureza "não infalível", queremos encerrar a questão, sem excluir que "outras ordenações" sejam viáveis. A negação da autoridade determina a confirmação da forma clássica do poder eclesial e até pretende reconhecer, embora não infalivelmente, uma tradição infalível. Desloca a infalibilidade do documento para a tradição, da autoridade para os fatos, com um salto argumentativo muito arriscado.

Sem assumir nenhuma nova autoridade, a autoridade é reconhecida apenas no passado, sem qualquer tematização das inovações culturais, antropológicas e eclesiais que o século passado trouxe, como se a história não o fosse. No cerne do documento, e de sua posterior explicação, aparece claramente o "dispositivo de bloqueio": afeto, apego e autoridade substituem a razão teológica. Sentimento e poder, em vez de razão. Ao contrário, a razão deve, a posteriori, limitar-se a justificar o sentimento de apego e o princípio da autoridade. Ratzinger sabe bem, com Agostinho (cf. o exergo inicial deste texto), que o princípio da autoridade por si só não é suficiente, que também é necessário encontrar uma "razão", mas espera um trabalho racional apenas "a jusante", não "a montante". E a jusante você só pode trabalhar "em suporte" e não "criticamente".

2.3.4 Contradizer a experiência: tradução literal, mesmo sem destinatário em Liturgiam authenticam e na carta em pro multis

Alguns anos mais tarde, em 2001, J. Ratzinger foi o inspirador da Quinta Instrução sobre a Reforma Litúrgica Liturgiam authenticam, da qual surgiu uma nova versão do "dispositivo de bloqueio", com a afirmação absoluta do "primado do latim" sobre as "línguas vernáculas". O efeito dessa teoria sobre a tradução, desprovida de fundamento histórico – em que era possível estabelecer a irrelevância da linguagem dos destinatários e a pretensão de "transliterar figuras retóricas latinas" –, foi duplo: a paralisia da relação entre periferia e centro na gestão das traduções litúrgicas e o esquecimento de que a "vida eclesial" já não pulsava nas veias do latim, mas nas línguas nacionais, que já não eram, há 50 anos, línguas de tradução, mas línguas de experiência e criação. Uma retomada posterior, na Páscoa de 2012, pelo Papa Bento XVI, de uma carta aos bispos alemães, sobre a questão do "pro multis", destacou, mais uma vez, a força do "dispositivo de bloqueio": a tradução literal "fuer viele" (para muitos) teve que se impor "afetivamente" e "autoritariamente", enquanto no plano conceitual teve que ser contraditada por uma catequese precisa, que ele explicou como "para muitos" significa "para todos". Uma imagem de evidência singular da contradição dentro do "dispositivo de bloqueio", em que há uma perigosa identificação da razão com o apego.

2.3.5. Paralelismo ritual, com efeito anarquista: Summorum Pontificum, monstrum romanae curiae

A última etapa desse caminho efetivo do "dispositivo" encontra-se em 2007, com o motu proprio Summorum Pontificum, através do qual, ao mesmo tempo em que se cria um paralelismo de formas rituais do mesmo "rito romano", despoja-se da autoridade para orientar a liturgia eclesial nos moldes da Reforma Litúrgica e restauram-se com força total os ritos que a própria Reforma queria superar, denunciando suas limitações e distorções. Também neste caso, o Magistério aparentemente "limita-se", perde poder, pois não teria autoridade para orientar a tradição e as escolhas individuais dos ministros ordenados, mas assim restitui autoridade a formas de experiência pré-conciliar, nos planos eclesial, sacramental e espiritual. O "dispositivo de bloqueio" aqui argumenta novamente de forma a-histórica: "o que já foi santo deve sempre poder ser santo". Portanto, a Igreja não reconhece nenhum poder da Reforma no fim.

O que foi em si mesmo se perpetua sem qualquer possibilidade de orientação ou conversão. E um princípio argumentativo, em si mesmo negativo e puramente a-histórico, dá origem a gravíssimos efeitos históricos: perda de controle dos bispos diocesanos sobre a prática litúrgica, centralização do controle num órgão "afetivamente condicionado" – a Comissão Ecclesia Dei –, difusão de uma relevância "política" – no sentido eclesial e no sentido mundano – da "forma extraordinária do rito romano" como "forma reacionária" e como "anticonciliação". O "dispositivo de bloqueio" não parou as coisas: certamente bloqueou o desenvolvimento da Reforma e gerou um verdadeiro "monstrum romanae curiae", com consequências dilacerantes facilmente previsíveis e hoje finalmente superadas, mas apenas a partir de 2021 e com um rastro de efeitos difíceis de controlar.

3. Francisco e a superação do "dispositivo de bloqueio" numa perspectiva sinodal

Como é evidente, todos estes usos do "dispositivo", ainda que na sua diversidade de contextos e intenções, recorrem a um "lugar-comum" do magistério. Todos eles têm em comum uma dialética sutil entre "perda de poder" e "assunção de poder": quando o magistério diz que "não tem autoridade", deixa apenas o "status quo" em autoridade absoluta e incontestável. Tende a identificar o que é com o que é ser. E, portanto, bloqueia o debate sobre a relação entre iniciação e cura, sobre o estatuto da pesquisa teológica em relação ao magistério, sobre o papel ministerial das mulheres, sobre as formas de inculturação litúrgica e sobre o caminho orgânico da reforma litúrgica. Não é difícil perceber como esse "não reconhecimento da autoridade" se identifica com uma conservação do poder adquirido, tornando-se, muitas vezes, o princípio e o alimento de uma arriscada inclinação à autorreferencialidade. E, como vimos, no "dispositivo de bloqueio" esse resultado é obtido através de uma síntese original entre "apego afetivo" e "razão teológica reduzida ao princípio da autoridade".

Em comparação com isso, o "retorno ao Concílio" do Papa Francisco aparece marcado pela necessidade de "restaurar a autoridade" da ação eclesial. Isso de fato aconteceu em todas as 5 frentes que tentei apresentar: a partir de 2017, uma série de documentos, que têm a forma de cartas motu proprio, modificaram profundamente tanto a relação entre o latim e as línguas faladas (Magnum principium), tanto a "reserva masculina dos ministérios instituídos" (Spiritus Domini e Antiquum ministerium) quanto o paralelismo ritual entre diferentes "ordines" do rito romano (Traditionis custodes), só assim poderemos sair da "tentação da autorreferencialidade". Mas, para isso, precisamos adotar uma abordagem diferente da tradição. A Igreja não se reconhece como uma "história fechada", como um "museu da verdade a ser preservado", mas como um "jardim a ser cultivado". Por isso, seria muito útil reler o pontificado de Francisco, 10 anos depois de seu início, não como uma forma incerta e "suave" de ministério pastoral, mas como um repensar da forma de tradição com a qual a Igreja não renuncia a exercer autoridade e, portanto, supera o "dispositivo de bloqueio" que J. Ratzinger desenvolveu com tanta delicadeza e dificuldade por quase 40 anos. É uma visão da tradição que cria uma descontinuidade entre Francisco e seus antecessores.

Francisco assume a necessidade de exercer a autoridade que seus antecessores imediatos tinham como se estivesse suspensa, resultando muitas vezes em resultados caracterizados por "paralisia". Não é exagero dizer que Francisco começou a se desvencilhar do dispositivo de bloqueio, mudando tanto o papel do apego afetivo, o papel da razão teológica quanto o destino eclesial do magistério. Aqui, parece-me, há um elemento de profunda continuidade com o Concílio Vaticano II e de inevitável descontinuidade em relação ao regime controlado pelo "dispositivo de bloqueio". Cujo impacto, no entanto, ainda não diminuiu, nem mesmo em alguns aspectos do próprio magistério de Francisco. Por isso, o trabalho de "escuta sinodal" pode sair decisivamente da perspectiva imposta há pelo menos 40 anos à teologia católica pelo "dispositivo de bloqueio". A questão da "autoridade" – das formas de seu exercício – permanece, portanto, central e deve ser abordada explicitamente: tanto em termos de "exercício diferente de poder" quanto em termos de "reconhecimento de novos sujeitos autorizados". Sem esta dupla e exigente passagem, que implica reformas dos corações pessoais e reformas dos corpos institucionais, o "dispositivo Ratzinger" continuará a ser o "lugar-comum" da identidade católica e do modo de pensar e viver a tradição dos discípulos de Cristo.

 

Nota

1. Desenvolvi meu raciocínio mais extensivamente no livreto: A. Grillo, Da museo a giardino. La tradizione della Chiesa oltre il “dispositivo di blocco", Assis, Cittadella, 2019.

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