30 Mai 2023
"A história, apesar de toda a sua complexidade (que talvez tenha desencorajado Spielberg do projeto de fazer um filme), confirma a inadequação de elevar papas à honra dos altares, mesmo para além de eventuais grandezas e méritos pessoais", escreve Giovanni Maria Vian, historiador e ex-diretor do L'Osservatore Romano, em artigo publicado por Amanhã, 28-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O último filme de Marco Bellocchio trouxe de volta a atenção para o comovente caso de Edgardo Mortara, um menino judeu. Aos 11 meses, o menino, sem o conhecimento de seus pais, foi batizado por uma empregada cristã que acreditava que sua vida estava em perigo. Mas o fato tornou-se conhecido e - em uma Bolonha ainda por pouco incluída no estado pontifício - em 1858, aos seis anos de idade, a criança foi arrancada de sua família para ser educada na fé católica sob a proteção de Pio IX, o último papa rei. O insensato e cruel rapto, levado a cabo pelos gendarmes por ordem do inquisidor bolonhês, teve enorme ressonância, mas de nada valeram os protestos e os pedidos internacionais para que fosse devolvido à família.
Criado em Roma, aos 16 anos Mortara entrou na ordem dos cônegos regulares lateranenses e escolheu colocar o nome do pontífice antes de seu, tornando-se Pio Edgardo, e em 1870 deixou a Itália. Ordenado padre, o religioso – cujo tormento interior só se pode imaginar – lecionou e pregou em vários países europeus, dedicando-se em particular à conversão dos judeus e só regressando à Itália pela primeira vez em 1891. Retirando-se finalmente para a Bélgica, morreu quase nonagenário, dois meses antes da invasão nazista do país. Clamoroso na época, o caso Mortara foi quase esquecido, mas em 1960 foi apresentado em toda a sua dramaticidade por Gemma Volli em “La Rassegna Mensile di Israel” em estudo republicado pela Giuntina. Relançada por David Kertzer e Daniele Scalise (com Il Caso Mortara, agora reproposto pela Mondadori, entre as fontes de Bellocchio), a história se prestou - quase repetindo as polêmicas da época - a apologias contrapostas. Como quando Giulio Andreotti, opondo-se às duras críticas pela iminente beatificação do papa Mastai em 2000, escreveu que "crucificar" Pio IX pelo caso Mortara era "mais do que injusto", porque considerava o episódio "realmente pouco" para "demonizar a memória" do pontífice.
A história, apesar de toda a sua complexidade (que talvez tenha desencorajado Spielberg do projeto de fazer um filme), confirma a inadequação de elevar papas à honra dos altares, mesmo para além de eventuais grandezas e méritos pessoais. E mostra claramente os aspectos desastrosos e tacanhos de um governo teocrático agora insustentável. O Papa rejeitou as pressões, mas o caso Mortara - escreveu o jesuíta Giacomo Martina, o historiador que reconstruiu o pontificado de Mastai em duas mil páginas, evitando hagiografias e apologias, mas também juízos anacrônicos - deixou "em muitos, mesmo católicos, uma penosa impressão e uma forte distanciamento do poder temporal.
No contexto polêmico do processo de unificação italiana, o caso esteve de fato no centro de uma fácil e vitoriosa campanha contra o Estado pontifício, não apenas na Itália e na Inglaterra, mas na própria França de Napoleão III, que ainda poucos anos antes havia derrotado a República Romana e recolocado no trono o papa rei que havia fugido para Gaeta. Mas o pontífice ateve-se - resume Martina - "ao que considerava seu dever preciso, mesmo à custa de perder a simpatia popular, o prestígio ainda em grande parte sobrevivente e, sobretudo, o apoio francês na defesa do poder temporal", que agonizava.
Há também uma componente psicológica, porque na sua intransigência Pio IX afeiçoou-se àquela criança como a um filho, passando a considerar o rapto de uma forma especularmente oposta à realidade: “Grandes e pequenos quiseram raptar-me esta criança, acusando-me de ser bárbaro e implacável; eles sentem saudade de seus pais e não pensam que eu também sou pai. Ninguém tem pena de mim em meio às dolorosas provações, enquanto na Rússia tantas crianças são violentamente sequestradas de mim, meus queridos poloneses”, então oprimidos pelo regime czarista ortodoxo. Esse é, de fato, o epílogo de uma política de conversões que Anna Foa reconstruiu com inteligência histórica em Ebrei in Europa (Laterza). Desmentindo clichês generalizados, mas infundados, que retratam uma ação indiscriminada e maciça, a estudiosa explica como essa política resulta, ao contrário, “ambivalente e falida” porque as conversões “continuam sendo um fenômeno individual”, relativamente reduzido e controverso. De fato, Foa sublinha como a política eclesiástica por mais de um milênio se baseou na visão teológica de Agostinho em favor da presença entre os cristãos de judeus como testemunhas, ainda que incrédulas, da verdadeira fé em Cristo: "Se a justa escala de valores for mantida, isto é, se a inferioridade do judeu for salva, a Igreja rejeita as violações de sua liberdade religiosa e protege a sua presença”. As conversões forçadas dos judeus não eram, portanto, consideradas lícitas - mas impostas na Espanha da Alta Idade Média pela política dos reis visigodos - e essa permanecerá a linha constante, também apoiada por Tomás de Aquino.
No entanto, havia uma política voltada para a promoção de conversões, “mas apenas com propaganda e pressões ideológicas”, entre as quais os odiosos ser mões que os judeus eram obrigados a ouvir. E em 1543 Inácio de Loyola apoiou a fundação em Roma de uma "casa dos catecúmenos" para acolher judeus, muçulmanos e outros "infiéis" que desejavam tornar-se cristãos. Nesse contexto, crianças filhas de convertidos eram "oferecidas" pelos pais (ou às vezes pelos avós), mas eram consideradas pela comunidade judaica como "raptadas" e travavam-se batalhas legais sobre elas. “Salvo em casos dramáticos e limitados, tem-se a impressão – escreve a historiadora – de que a escolha das autoridades foi perseguir ao máximo possível o mundo judaico, assustá-lo, criar dentro dele um estado de espírito de insegurança da lei, mas não para questionar seriamente os limites da legalidade". Uma única exceção a essa política ocorreu no início da era moderna em Portugal. Em 1497, um decreto do rei D. Manuel, a pedido dos espanhóis, impôs a conversão de crianças judias entre os quatro e os 14 anos, sem possibilidade de sair do país: "Meu pai disse que me tiraram do peito da minha madre e que fui batizado” testemunhará dramaticamente um marrano português em 1555 perante a Inquisição veneziana. Mas no país a igreja se opôs fortemente, julgando o decreto contrário aos cânones eclesiásticos, como de fato era. Confirmando uma história tingida de claros-escuros que é preciso conhecer em todas as suas nuances para não a esquecer.
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O filme do grande diretor. A verdadeira história de Edgardo, o menino judeu raptado pelo Papa, que inspirou Bellocchio. Artigo de Giovanni Maria Vian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU