Aquele homem fascista que vive em nós. Artigo de Massimo Recalcati

Foto: João Miguel Rodrigues / unsplash

08 Março 2023

"A agressão organizada, o uso ideológico da violência, os vandalismos e a exibição de símbolos de ódio são claramente estranhos ao espírito da democracia".

A opinião é de Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pávia e de Verona, publicada por La Stampa, 07-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo. 

Um grande filósofo como Gilles Deleuze acreditava que a premissa básica da luta antifascista tinha como primeira e imprescindível condição a luta contra o fascista que cada um de nós carrega dentro de si.

A intolerância à diferença, a convicção dogmática de deter uma verdade absoluta, a justificação política da violência, o ódio e o escárnio, a aprovação da censura e a interdição da liberdade de expressão para quem diverge da nossa concepção do mundo, um incurável complexo de superioridade, a representação da Direita como culturalmente indigna, o sarcasmo em relação à maioria quando a sua orientação não coincide com os nossos desejos, a tendência para converter a crítica em insulto, são em si tentações fascistas e autoritárias que paradoxalmente encontraram espaço mesmo na cultura de grupo do antifascismo. Escrevo com amargura ao reler hoje o antifascismo militante dos movimentos do final dos anos 1970, dos quais participei com grande entusiasmo juvenil.

Meus maus professores da época não percebiam que a militância antifascista que exaltávamos não passava, na verdade, do reverso espelhado do monstro venenoso que pretendíamos combater. Se não foi aquela cultura extraparlamentar que armou as mãos dos terroristas vermelhos, é certo que para muitos dos meus companheiros da época aquela violência cega era amplamente justificada pela violência do Estado. O axioma ideológico excluía qualquer forma de dúvida: se o coração do Estado era um coração fascista, deveria ser atingido sem questionamento. É óbvio que a ação armada da resistência da segunda guerra era outra questão. Necessária e legítima para combater a barbárie nazifascista. Assim como é igualmente óbvio que os princípios da nossa Constituição nascidos daquela luta devem ser sempre defendidos com determinação.

Mas em tempos de democracia já consolidada em nosso país há quase 80 anos, podemos tentar ser mais intransigentes com nosso fascismo interno? Podemos tentar rejeitar a tentação autoritária que atravessa cada um de nós e muitas vezes encontrou justamente numa determinada cultura de esquerda considerada antifascista o seu terreno fértil?

Não por acaso Pasolini desconfiava da retórica antifascista, considerando que ela na verdade contribuía mais a afastar um fascismo muito mais insidioso, politicamente transversal e não partidário, que ele identificava com o poder invisível da chamada sociedade de consumo.

Ainda hoje existe um patrulhamento cultural de esquerda que ignora insistentemente o fundamento laico, antidogmático, plural da democracia e que manifesta uma evidente alergia às suas leis?

Não seria talvez a mesma cultura de grupo que acaba por pactuar com as razões da guerra desencadeada por Putin contra a Ucrânia em nome de um ideal utópico da paz que tem como único efeito justificar uma brutal agressão militar sem permitir que ao povo que foi ofendido a sua legítima defesa?

Não seria talvez a mesma cultura de grupo que em nome igualmente utópico da liberdade se opunha às medidas de prudência impostas pela emergência sanitária, temendo uma virada totalitária do estado democrático? Vozes que circulam livremente nas salas de estar enquanto condenam vigorosamente o caráter repressivo e, portanto, em última análise, fascista do Ocidente liberal-democrático.

A agressão organizada, o uso ideológico da violência, os vandalismos e a exibição de símbolos de ódio são claramente estranhos ao espírito da democracia. Na época dos movimentos de 1977, para definir esses comportamentos se usava a fórmula "organização coletiva da força". É a mesma maquiagem de linguagem feita pelo regime de Putin quando contrabandeava o horror criminoso da guerra com a definição estéril de uma "operação especial". Acontecia no final dos anos 1970 em nome do antifascismo. Foi por isso que escolhi abandonar esses movimentos para me aproximar do Partido Radical de Marco Pannella. O único, naqueles anos tão difíceis, a apoiar uma autêntica política antifascista que nos alertava contra a tentação fascista que acompanhava todo exercício da violência como arma política. Agora vivemos em um país onde o fascismo em sua forma historicamente determinada não existe mais.

Giorgia Meloni, eleita democraticamente pelos italianos, jurou sobre os princípios da nossa Constituição reconhecendo-os plenamente. Claro, alguns de seus ministros nos parecem indignos, incompetentes e podem até despertar nossa mais profunda indignação humana e política. Mas isso não nos dispensa da difícil tarefa de tentar ser justos com as razões do antifascismo. Em um estado democrático, nunca se deveria legitimar um uso antifascista da violência - nem mesmo aquela violência verbal que, como ensina a psicanálise, nunca é apenas verbal - pois toda forma política de violência permanece sempre fascista em si mesma, pois vai contra a lei democrática da palavra. Por isso Deleuze nos convidava a presidir nosso fórum interno de forma verdadeiramente antifascista. Nunca é uma tarefa fácil porque, como recordava Umberto Eco, o fascismo não é apenas um produto histórico-ideológico da política, mas também uma tentação que anima eternamente a vida humana.

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