19 Dezembro 2022
A Câmara federal aprovou, sem grande alarde, no dia 23 de novembro, o PL 4.606/2019, de autoria do deputado pastor Sargento Isidório, do Avante da Bahia, vedando qualquer alteração, edição, adição ao texto da Sagrada Escritura, Antigo e Novo Testamentos. O projeto tramita agora no Senado.
A reportagem é de Edelberto Behs, jornalista.
O deputado recorre ao IBGE para argumentar que para mais de 89% dos brasileiros e brasileiras que professam o cristianismo a Bíblia é a Palavra de Deus na Terra. “O que torna qualquer alteração na redação deste Livro um ato mais que absurdo, flagrantemente uma intolerância religiosa e, porque não dizer, uma grande ofensa para a maioria dos brasileiros, independente da sua religião. Por isso, nossa legítima preocupação em tombar esse texto sagrado através do Parlamento Federal, garantindo uma vez por todas, a inviolabilidade de sua redação e sua explanação pública no Brasil”.
A Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER), a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião (ANPTECRE), o Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER), junto com outras 28 entidades, emitiram nota questionando o absurdo da proposta. Eles pedem que o Senado não aprove essa lei.
“As expressões ‘alteração’, ‘edição’ e ‘adição’ dos textos da Bíblia Sagrada, vedadas no projeto de lei, apontam para evidente confronto com a Constituição Federal, uma vez que a diversidade dos textos bíblicos em todo o mundo e no decorrer dos tempos, fruto de estudos e pesquisas religiosas e científicas, por si só, já traz em si a contínua possibilidade de sua edição ou adição”, contesta a nota.
O projeto de lei acaba, assim, com a atividade de estudo e pesquisa no campo da Teologia, História, Literatura, Ciências da Religião e de outras áreas, “violando o direito à livre manifestação e expressão e autonomia científica”.
“Cumpre ressaltar que, no âmbito das ciências teológicas, as traduções são sempre interpretações. São feitas escolhas tanto na interpretação das palavras do texto original (até onde o conhecemos), quanto na formulação no vernacular português que procura ser compreensível ao seu público contemporâneo”, explicam as entidades que assinam a nota.
Assim, elas indagam: a qual texto bíblico o PL se refere o projeto? O próprio deputado menciona a existência de dois tipos de Bíblia, a evangélica, com 66 livros, 1.189 capítulos e 31.102 versículos, e a Bíblia católica, com 73 livros, 1.330 capítulos e 35.527 versículos. O parlamentar sequer considerou as Bíblias das Igrejas Ortodoxas, com muito mais livros do que o texto usado por evangélicos e católicos.
Depois, apenas uma minúscula minoria no Brasil está capacitada a ler a Bíblia nas línguas originais – hebraico, aramaico e grego. A maioria lê o texto sagrado traduzido para o português, dentre elas uma variedade: a tradução de João Ferreira de Almeida, Almeida Revista e Atualizada, Bíblia de Jerusalém, Tradução Ecumênica, Bíblia da CNBB, Bíblia de Referência Scofield... Qual a versão que o deputado quer imexível?
As entidades também perguntam quem poderá e deverá decidir sobre uma inserção quando novos documentos históricos e literários forem descobertos, como aconteceu com os textos de Qumran, achados nas cavernas na beira do Mar Morto, em 1948? Quem decidirá sobre um acréscimo teologicamente justificável? O Congresso Nacional? Ou, como é de direito, a teologia e as religiões?
O teor do PL 4606/2019 “é inadequado e fere o princípio hermenêutico próprio das ciências teológicas e das religiões”, expressa a nota. Se aprovada, causará “conflitos sem fim, tanto pela diversidade de versões, línguas e interpretações, quanto pela ausência de uma instância que poderia decidir com propriedade e legitimidade sobre tais questões”.