09 Novembro 2022
Em carta dirigida aos bispos e ao povo de Deus lida por Éric de Moulins-Beaufort em Lourdes nesta segunda-feira, 7 de novembro, o cardeal Jean-Pierre Ricard confessou ter tido um “comportamento condenável” com uma menor de 14 anos, quando era pároco há 35 anos. Uma atitude inédita.
A entrevista é de Youna Rivallain, publicada por La Vie, 07-11-2022. A tradução é do Cepat.
Véronique Margron é presidente da Conferência dos Religiosos e Religiosas da França (Corref). Em 5 de outubro de 2021, Jean-Marc Sauvé entregou-lhe o relatório da Ciase e o do presidente da Conferência dos Bispos da França, Éric de Moulins-Beaufort.
Durante o encontro dos bispos em Lourdes para sua assembleia plenária de outono, Éric de Moulins-Beaufort leu uma carta do cardeal Jean-Pierre Ricard na qual este admite ter tido um “comportamento condenável com uma moça de 14 anos há 35 anos”, quando era pároco. Como você se sente ao ouvir essa notícia?
Eu estou mal. Não sabemos mais direito como nomear as coisas. Não encontramos mais as palavras adequadas. Penso em todas essas mentiras acumuladas, na vítima... Não posso deixar de me perguntar se os fatos estão prescritos; se a vítima pudesse ter obtido justiça real se tivesse falado antes... E se... Tudo isso me dilacera. Mas o que está acontecendo? O que acontece conosco na Igreja? Jean-Pierre Ricard foi duas vezes presidente da Conferência dos Bispos da França, cardeal, eleitor do papa... Mas como pôde aceitar esses cargos? E há, claro, esta pergunta incômoda: e agora, o que fazemos? Além dos procedimentos já previstos, o que devemos fazer? Na vida religiosa, penso naqueles superiores que minimizaram, esconderam os abusos, que não queriam ver a gravidade da situação: eles eram ingênuos, mas a ingenuidade nos torna culpados! Podemos dizer o mesmo da solidariedade episcopal, disso que chamamos por tão belo nome de comunhão? E Deus sabe que é um nome bonito... mas ela foi quebrada por essa realidade.
Um cardeal confessa a culpa. A atitude é inédita, é uma verdadeira explosão.
Com certeza, a atitude é nova, mas não vejo que conclusões tirar. A verdadeira explosão não é que ele fale, é o que ele fez! E o termo “comportamento deplorável” está sujeito a muitas interpretações. Significa tudo e nada. Devemos qualificar sobre o que estamos falando!
Custa-me muito dizer isso, mas penso sinceramente que não podemos mais acreditar na palavra dos autores. Jean-Pierre Ricard disse isso, mas ele é o culpado. Como ter certeza de que não houve outras vítimas, outros atos? Como acreditar nele? Isto é o que devemos aprender com esses horrores: ter sempre extrema cautela, moderação. Se amanhã você for à sala de visitas (da prisão) de Fleury-Mérogis, não vai aceitar o que os presos dizem sobre os atos que cometeram! Chegamos a isso com esses padres, esses bispos, que, no entanto, estão acima de todos os fiéis. Isso parte meu coração.
Esta é a primeira vez que um culpado se denuncia publicamente. Talvez seja o ponto de partida para uma mudança de cultura?
Infelizmente, este não é o momento para esperança. Isso pode ser circunstancial: Jean-Pierre Ricard já não é tão jovem e as investigações sobre ele estão em andamento... Pensar que isso é um sinal de mudança de cultura, que os outros bispos visados pelas investigações vão se denunciar, acho isso um pouco presunçoso. Mesmo que eu, assim como você, queira que essa atitude seja um convite para que outros falem! Mas raramente vemos uma mudança de cultura a partir de uma única pessoa.
Você está desanimada?
As revelações de violências sexuais na Igreja são terrivelmente violentas. Isso nos fere no mais íntimo de nós mesmos, na nossa fé, nas profundezas dos nossos compromissos, enquanto tentamos mantê-los ano após ano. É o todo de si que se encontra atingido por essa violência. O sentimento de traição é forte.
Penso em primeiro lugar nesta senhora vítima, nos seus entes queridos, no povo de Deus. Como reconstruir a confiança quando ela está tão abalada? A confiança nos é dada ou não, não cabe a nós obtê-la. Nosso único objetivo é fazer tudo o que pudermos por um real trabalho da verdade... e obviamente ainda estamos longe da verdade. Penso em todos os membros dos grupos de trabalho, na Inirr (Autoridade Nacional Independente para o Reconhecimento e Reparação) e na CRR (Comissão de Reconhecimento e Reparação), em todas aquelas pessoas de boa vontade que dedicam muito tempo ao trabalho de reformar a Igreja, e em quem deve estar se perguntando para que serviu tudo isso. Nós que tentamos escutar as vítimas o tempo todo, qual é o sentido? (Sua voz fica trêmula) Éric de Moulins-Beaufort está muito comprometido com a luta contra os abusos na Igreja, acredito muito no que ele diz, na sua coragem, na sua abnegação... Tenho a sensação de estar diante de um tsunami que constantemente reduz a nada os nossos esforços. É o mito de Sísifo.
Claro, vamos recomeçar, vamos continuar a lutar. É uma obrigação humana e moral. Minha alma, meu coração, minha inteligência estão povoados com esses rostos de vítimas. O pior seria parar. Então sim, para nós, é muito difícil. Mas será sempre menos difícil do que para as vítimas. Estamos em terra firme, mas não temos o direito de ficar aí, pelas vítimas e pelo povo de Deus.
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Abusos sexuais. “O sentimento de traição é forte”. Entrevista com Véronique Margron - Instituto Humanitas Unisinos - IHU