“O Brasil vai voltar ao multilateralismo climático com toda a força”. Entrevista com Marina Silva

Marina Silva e Lula em encontro com lideranças locais durante caminhada pela Grande Belo Horizonte (MG) em outubro de 2022, durante a campanha à presidência | Foto: Ricardo Stuckert/Fotos Públicas

09 Novembro 2022

Cotada para assumir o Ministério do Meio Ambiente do governo brasileiro pela segunda vez, a ambientalista Marina Silva afirma em entrevista à Mongabay que a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva representa um novo ciclo de prosperidade para o país, “em que será possível fazer a transição para um novo modelo de desenvolvimento capaz de combater a desigualdade com democracia e sustentabilidade

“Uma parte do agronegócio está percebendo que essa prática do Bolsonaro e do bolsonarismo é um péssimo negócio”, disse a deputada federal eleita sobre a possibilidade de unir a agenda ambiental às demandas do agronegócio.

Marina destacou que os desafios de agora são muito maiores do que quando integrou o primeiro mandato de Lula, em 2003: “Não vamos nos tornar sustentáveis num piscar de olhos. É uma transição”.

A entrevista é de Jaqueline Sordi e publicada por Mongabay, 07-11-2022.

Eis a entrevista.

Mulher, preta e amazônida, a ex-ministra do Meio Ambiente e recém-eleita deputada federal Marina Silva é hoje uma das mais complexas e fascinantes figuras da política brasileira. Filha de seringueiros e alfabetizada aos 16 anos, sua força e consistência intelectual contrastam com o corpo frágil, resultado de uma série de doenças que a acometeram ao longo da vida, como malária, contaminação por mercúrio e leishmaniose.

Nada disso foi empecilho para que percorresse uma trajetória de conquistas na política e no cenário internacional. Nas eleições de 2022, Silva se reconciliou com o partido do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, de quem foi ministra entre 2003 e 2008. A ambientalista foi um dos nomes de peso da frente ampla que derrotou o presidente Jair Bolsonaro no segundo turno realizado em 30 de outubro por uma margem de apenas 1,8 ponto percentual. Em troca do apoio, Marina Silva incluiu uma série de compromissos ambientais no plano de governo de Lula.

Sua trajetória de sucesso na política é fruto de uma formação que começou com a convivência com povos indígenas e ribeirinhos e seguiu por meio do diálogo com intelectuais europeus ao graduar-se em história e se especializar em psicopedagogia e teoria psicanalítica. Com uma carreira política ascendente que começou aos 30 anos, quando foi eleita vereadora no município de Rio Branco, no estado do Acre, Marina teve uma atuação fundamental no campo ambiental ao assumir o cargo de ministra do Meio Ambiente durante o governo Lula, em 2003.

Neste período, implantou algumas das medidas mais importantes para a proteção dos biomas brasileiros e foi protagonista mundial na criação de áreas protegidas e no combate ao desmatamento da Amazônia.

Em 2008, Marina deixou o ministério por não encontrar mais respaldo à sua política ambiental em uma agenda voltada aos grandes projetos de infra-estrutura, que ditaria os rumos do governo nos anos seguintes. Permaneceu mais três anos em Brasília para concluir seu mandato como senadora, do qual tinha se licenciado para ocupar o ministério, até 2011.

Desde então, passou a trilhar um caminho independente, fundando seu próprio partido, o Rede Sustentabilidade, e foi derrotada em três eleições presidenciais (2011, 2014 e 2018). A reaproximação com o Partido dos Trabalhadores (PT) após 14 anos de rompimento ocorreu em 12 de setembro deste ano, quando Lula assinou o compromisso ambiental sugerido por Marina.

Entre os pontos mais importantes da agenda estão a tolerância zero com o desmatamento, a adoção de uma política ambiental transversal, que perpassa todas as áreas do governo — demanda apresentada por Marina desde que integrava o governo Lula e que nunca havia sido atendida — e um plano de infraestrutura voltada ao desenvolvimento sustentável.

Fortemente cotada para voltar a ocupar o cargo de Ministra do Meio Ambiente a partir de 2023, a deputada federal prefere não comentar sobre o assunto para “não criar qualquer tipo de constrangimento” com o recém-eleito presidente. No entanto, fala sobre o futuro da política ambiental brasileira com a consistência de alguém à altura de assumir o desafio de reconstruir uma agenda desmantelada durante os quatro últimos de mandato Bolsonaro.

À Mongabay, Marina falou durante uma hora sobre Amazônia, política e relações internacionais no meio ambiente.

 

 

Eis a entrevista.

O que significa a vitória de Lula para o futuro do planeta, considerando que o Brasil é um dos cinco maiores emissores de CO2 do mundo e que o desmatamento é o maior responsável por essas emissões no país?

Significa que a gente tem a chance de poder dar a contribuição que o Brasil pode dar no contexto da crise ambiental global que estamos vivendo, principalmente na questão da redução de perda de biodiversidade e do enfrentamento da mudança climática. Do ponto de vista dessa contribuição, significa que o Brasil precisa fazer o seu dever de casa, liderar pelo exemplo, fazer a transição para um novo modelo de desenvolvimento que seja capaz de combater a desigualdade com democracia e sustentabilidade. É um novo ciclo de prosperidade. Isso não acontece da noite para o dia, mas a gente já pode colocar as principais pilastras para esse novo caminho ou essa nova maneira de caminhar.

No último domingo, foi derrotado um governo que aumentou, em um mandato, o desmatamento da Amazônia em 73%. Voltamos a um governo que conseguiu reduzir o desmatamento na região em quase 70% em oito anos. Dá para repetir a fórmula da primeira era Lula?

Acho que não é uma questão de repetir. Hoje, a situação é muito mais grave. Vamos ter que enfrentar uma desconstrução das políticas públicas, dos órgãos de gestão, monitoramento e de fiscalização incomparavelmente maior do que em outros tempos. Será preciso fazer aquilo que está no documento que o presidente Lula se comprometeu no dia que nos recompomos política e programaticamente — porque pessoalmente a gente nunca tinha rompido o vínculo. Nas propostas que eu apresentei, consta o “Resgate atualizado da agenda socioambiental perdida”. Não é uma repetição do que foi, mas é com base em muitas ações que deram certo e que vão continuar sendo implementadas, mas ganhando uma nova dimensão.

Por exemplo: a questão da destinação das áreas florestadas na ordem de 57 milhões de hectares para Terras Indígenas, Unidades de Conservação de Proteção Integral ou Uso Sustentável. Essa é uma ferramenta muito poderosa para se fazer uma muralha verde de proteção da Amazônia. Temos também a política voltada para a questão de uma nova economia na Amazônia, com investimento nessa nova economia, na bioeconomia. É uma mudança de paradigma. A ideia de infraestrutura para o desenvolvimento sustentável é um repensar sobre os grandes projetos na Amazônia à luz dos novos ganhos que temos, sobretudo na agenda de geração de energia a partir do sol, do vento, da biomassa, porque essa energia já é mais barata do que a própria energia de hidroeletricidade.

A gente sabe que o caminho para a reconstrução da política ambiental brasileira é longo, mas algumas medidas imediatas podem e devem ser tomadas a partir do dia 1 de janeiro para começar a reverter o quadro atual. Quais medidas você entende como mais urgentes? Retomada Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm)? O Fundo Amazônia?

O documento [elaborado e entregue por Marina Silva ao presidente Lula] apresenta os principais eixos estratégicos e as diretrizes para essa mudança. A retomada PPCDAm será necessária de forma atualizada, pois a realidade mudou. Hoje você tem uma política pública que havia dado certo e que foi abandonada [o PPCDAm foi criado em 2004 e abandonado no início do governo Bolsonaro]. Naquele momento nós tínhamos uma realidade que era grave: o desmatamento chegou a 27 mil km², o segundo maior da história do Brasil, em 2004.

A política foi então criada e implementada, e tivemos um ganho de reduzir o desmatamento em 83% por quase uma década. Agora, essa política que havia dado certo foi abandonada juntamente com o desmonte da própria governança ambiental, com o enfraquecimento do Ibama, do ICMBio, do Inpe, com a retirada do serviço Florestal Brasileiro do Ministério do Meio Ambiente e com a sinalização de mudar a legislação para torná-la permissiva com os crimes ambientais, além do desrespeito às comunidades indígenas.

O descontrole que nós temos hoje em relação à grilagem, desmatamento, queimadas, tráfico de drogas, tráfico de armas, garimpo ilegal e todo tipo de contravenção está em um grau muito maior do que nós tínhamos (até 2018). Então essa atualização será necessária, assim como será necessário agregar novas medidas. O trabalho de inteligência da Polícia Federal que foi feito naquela época, por exemplo, que fez com que levássemos à cadeia mais de 725 pessoas, que levou à apreensão de 1 milhão de metros cúbicos de madeira, ao cancelamento de cerca de 35 mil propriedades de grilagem e à desconstrução de quase 2000 empresas criminosas que atuavam na Amazônia, agora se depara com um grau maior de dificuldade.

Nós implodimos 86 pistas clandestinas, e agora são 1.264 pistas. Há um descontrole das nossas fronteiras. Durante o governo do presidente Lula nós combinamos a criação de Unidades de Conservação com criação de Terras Indígenas, combate a práticas ilegais e apoio às iniciativas sustentáveis. Agora, esse trabalho todo terá que ser ampliado. Mas as operações e a fiscalização do Ibama deverão contar com o suporte de inteligência da Polícia Federal e do Exército naquilo que pode ser a sua atribuição.

No caso das operações que nós fizemos, eu me lembro que a Operação Curupira, que foi a maior operação já feita de combate a crimes ambientais talvez do mundo, envolveu 480 policiais federais e, quando foi realizada, o Mato Grosso era responsável por quase 80% do desmatamento da Amazônia. Nos meses seguintes, tivemos uma queda no Mato Grosso de 92% do desmatamento. Esse trabalho foi feito durante 22 meses. Vamos precisar recompor e ampliar a DIREC, que é a Diretoria de Combate a Crimes Ambientais da Polícia Federal, e restituir o suporte do COTER, que é do Exército, mas que nos dava suporte logístico.

A gente sabe que esse caminho para a reconstrução é longo. Mas o que você acredita que é mais urgente? As três, quatro medidas mais urgentes que devem ser tomadas ou iniciadas já a partir de 1 de janeiro.

Em primeiro lugar, é preciso pensar em recompor as equipes. Nós temos uma desestruturação da governança ambiental, onde as equipes técnicas foram substituídas por equipes políticas e militares que não entendem da agenda de meio ambiente, que não têm competência técnica para fazer as fiscalizações, as autuações, os processos de licenciamento, a gestão das Unidades de Conservação. Até nos processos de monitoramento eles tentaram interferir.

A recomposição das equipes, a recomposição dos orçamentos do ICMBio, do Ibama, além de trazer o Serviço Florestal e a Agência Nacional de Águas de volta para o Ministério do Meio Ambiente são medidas urgentes. É preciso também pôr um freio no que está acontecendo no Congresso Nacional para que o pacote da destruição não tenha continuidade. O Governo Federal tem muitas ferramentas para agir de modo próprio, mas se a legislação for mudada ele fica engessado em alguns aspectos. Então, é preciso conter o avanço da aprovação de medidas em relação ao licenciamento ambiental, em relação à grilagem, demarcação das Terras Indígenas e mineração em TIs, além de frear o “pacote do veneno”. E, obviamente, retomar a prática de agir de forma transparente.

Temos pela frente dois meses sob a presidência de Bolsonaro, com diversas pautas antiambientais em tramitação no Congresso, que terão forte pressão da bancada ruralista para serem votadas. Quais são os principais riscos que você enxerga nesse período? E o que você entende que pode ser feito para frear essas votações?

Bem, eu espero que o Congresso não tome medidas para fazer andar projetos que serão totalmente incompatíveis com o que se delineia para as políticas ambientais nos próximos quatro anos do governo brasileiro. Se numa situação de presença do governo Bolsonaro esses projetos não conseguiram andar, isso será ainda mais difícil agora que o atual governo está com o prazo de validade já estabelecido. Eu espero que tanto o presidente da Câmara dos Deputados quanto o presidente do Senado, que têm um poder sobre a tramitação desses projetos, utilizem esse poder para não permitir qualquer tipo de aventureirismo no trâmite desses projetos.

O bom senso indica que não se deve fazer isso a toque de caixa. A atitude do deputado federal Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, de já reconhecer a vitória do presidente Lula [antes do presidente Jair Bolsonaro], dá uma sinalização de que talvez ele não vá atropelar nenhum processo que não deva ser atropelado. Já o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, já vinha ajudando a não permitir, do jeito dele, que esses projetos andassem. O meu temor tem a ver mais com o que pode acontecer nos territórios indígenas, e aí é preciso uma vigilância muito grande dos órgãos de Justiça, do Ministério Público e das autoridades para assegurar que os povos indígenas terão proteção, assegurar que as terras públicas não serão invadidas e que não ocorrerá um processo de revanche institucional em função desse espaço de tempo que temos pela frente.

Ao longo dos últimos anos, tivemos retrocessos também em relação aos compromissos globais de redução nas emissões de gases de efeito estufa. Ainda é possível cumprir com o que havia sido prometido?

A meta era reduzirmos as emissões em 50% até 2030, tomando como base o ano de 2010. Não só deixamos de implementar as medidas que alcançariam esse objetivo, como vamos ter um aumento de 12% nas emissões. Então é preciso que nessa COP [27ª Conferência do Clima da ONU, que está ocorrendo de 6 a 18 de novembro no Egito] o Brasil trate de aumentar esses compromissos para que a gente faça frente a esse déficit de redução, que é enorme.

No caso do Brasil, o nosso maior vetor é o desmatamento e uso da terra. Cerca de 70% das nossas emissões advêm do desmatamento e do uso da terra, sendo que o desmatamento é o que tem o maior potencial de emissão. No caso da agricultura, por exemplo, nós temos a emissão de metano, que é incomparavelmente mais impactante do que o CO2. E ele é de curta duração, dura um período de mais ou menos 12 anos (na atmosfera). Então o compromisso global de redução de metano tem um papel importante, inclusive, para alcançarmos o objetivo em relação ao CO2, que é de longa duração, algo em torno de 100 anos.

Quanto mais você diz diminui a emissão de metano, mais você está criando um “espaço de conforto” [para redução das emissões de longa duração]. No caso do Brasil, há o compromisso para a redução do metano, mas o percentual e como isso vai ser feito ainda é um arranjo a ser estabelecido. Há estudo e tecnologia para que a gente consiga fazer isso. E há um setor da agricultura brasileira que quer fazer isso. Outro que não quer, e este terá que se enquadrar.

A gente não pode tratar o agronegócio como se ele fosse homogêneo. Não é homogêneo. Você tem uma parte que é reacionária, que tem uma visão negacionista, que quer voltar para o início do século 20, mas também tem uma parte que está na vanguarda desse debate. E tem cerca de 70% a 80% que ficam olhando para um lado e para o outro, em uma posição de pêndulo. Se a força gravitacional está para o lado dos que querem voltar para o início do século 20, é para lá que possivelmente esse grupo vai.

Mas se você cria um espaço virtuoso, dá escala para as coisas boas que já temos aqui, essas pessoas não têm uma índole de querer destruir. Por isso, uma das propostas que estão naquele documento que o presidente Lula assumiu é de que nós devemos utilizar o Plano Safra [programa do Governo Federal que concede crédito a pequenos e médios produtores e que permite custear insumos, adquirir equipamentos, entre outros] como a base para a transição da agricultura de baixo carbono. É dessa forma que nós vamos conseguir diminuir a emissão de CO2 de forma sustentável, em que você vai ter investimentos com as tecnologias já desenvolvidas pela Embrapa para que grandes produtores continuem suas produções sem precisar mais derrubar a floresta, e ainda sequestrando carbono da atmosfera e fixando o carbono.

Marina Silva e Lula em entrevista coletiva em São Paulo, em setembro de 2022 | Foto: Ricardo Stuckert/Fotos Públicas

Você acha possível que o futuro governo encontre uma forma de conciliar proteção ambiental com os interesses do agronegócio? Como entende que isso pode ser feito?

Vou dizer que tem, sim, uma forma de integrar meio ambiente e economia. Alguns dos setores do agronegócio não podem prevalecer em prejuízo dos interesses estratégicos do próprio setor e do país. Nós não finalizamos o acordo com o Mercosul até agora, que é importante para o Brasil e para a União Europeia, em função desses setores. Eles não podem sequestrar os interesses econômicos, sociais e ambientais do Brasil.

Por isso o diálogo e a mediação serão necessários. Se trata de uma transição. Ninguém vai tornar a agricultura de baixo carbono num estalar de dedos, assim como não se consegue tornar limpa a matriz energética americana, chinesa e europeia num estalar de dedos. Há um espaço de transição. O importante é ter uma trajetória virtuosa para essa transição. E o Plano Safra é a base para isso. Quando você tem um governo que tem políticas estáveis, que não são sazonais, a tendência é de haver um ajuste.

Tanto é que quando eu estava no Ministério [do Meio Ambiente] isso já estava acontecendo. Infelizmente, quando começou a ter descontinuidade, voltamos para um terreno difícil, porque se você está fazendo investimento, usando tecnologia, mão de obra qualificada, todo suporte de pesquisa, isso tem custo. E você vai competir com quem está fazendo com uma régua mais baixa? Aí você cria um desequilíbrio. Se todos estão, digamos, no mesmo trilho, aí você tem uma regra comum que é para todos. E isso é algo que tem que se refletir não só no Plano Safra, mas os bancos também devem atuar no sentido de cobrar contrapartidas ambientais para poder fazer a tomada de seus recursos. Os tomadores desses recursos têm que se deparar com os compromissos do setor financeiro também em relação à questão climática.

Apesar da eleição de nomes importantes para a defesa do Meio Ambiente, como o da senhora e da líder indígena Sônia Guajajara para deputadas federais, tivemos um aumento da bancada mais conservadora tanto na Câmara como no Senado. Essa nova configuração terá como consequência direta um menor compromisso do novo Congresso com a defesa do meio ambiente? Como deve ser a atuação em diferentes instâncias para evitar que essa bancada trave os possíveis avanços do novo governo?

De fato, tivemos duas coisas que precisam ser vistas. Nós tivemos algumas perdas de pessoas que eram muito relevantes na agenda socioambiental, como a Vivi Reis [PSOL], o Rodrigo Agostinho [PSB], o Alessandro Molon [PSB], a Joenia Wapichana [Rede], que não foram reeleitos. E ao mesmo tempo tivemos, graças ao orçamento secreto, que é um recurso do orçamento do Estado brasileiro usado dentro do Congresso para dar suporte político aos deputados e senadores da base de sustentação do governo, que tiveram cerca de R$ 50 bilhões para fazer suas campanhas. Então, a bancada ruralista aumentou significativamente.

Agora, mesmo com esse aumento, nós tivemos a eleição de novos nomes, muitos deles sensíveis à agenda ambiental. Mas é preciso olhar para o contexto. Nós vamos estar em um contexto que tem um Governo Federal alinhado com a agenda da sustentabilidade, do combate ao desmatamento, que quer alcançar desmatamento zero e que buscará dar conta dos seus compromissos na questão climática e de biodiversidade. Nós vamos ter uma sociedade civil mobilizada, uma comunidade científica muito ativa e mobilizada, um contexto de uma agenda internacional que cada vez mais vai afunilando para taxar produtos que sejam carbono-intensivos. Esse contexto vai reverberar dentro do Congresso.

Não é que o Executivo interfira no Congresso, mas o próprio contexto sim. Quando você junta a sociedade, as mudanças no Governo Federal, a conjuntura internacional, o Brasil não vai poder ficar trancado do lado de fora. Acho que uma parte do agronegócio está percebendo que essa prática do Bolsonaro e do bolsonarismo é um péssimo negócio. Não ter finalizado o acordo com o Mercosul é um péssimo negócio. Ter perdido alguns investimentos é um péssimo negócio, ter tido alguns contratos cancelados, um péssimo negócio. As pessoas estão começando a perceber que existe um caminho virtuoso. É o que eu chamo de competição pelo caminho de cima. Quem quiser continuar competindo pelo caminho de baixo, da ilegalidade, da violência, da destruição do meio ambiente, de não ter compromisso com a questão climática e de preservação da biodiversidade, vai ficar trancado pelo lado de fora. Nós temos um espaço para transitar para essa competição pelo caminho de cima, que é o caminho virtuoso, de se integrar às cadeias produtivas globais. Dentro da mesma quadratura ou da mesma régua. As pessoas estão percebendo isso.

A senhora, que já foi Ministra do Meio Ambiente no governo Lula, pediu demissão e se afastou do PT após desavenças políticas, principalmente por entender que a visão desenvolvimentista do governo ia de encontro com sua política ambiental.

Acho que se a gente tratar como uma política do PT, talvez a gente não esteja alcançando o que aconteceu nessas eleições. Diria que a política do governo tem a chance de se transformar numa política de país. E foi isso que o presidente Lula sinalizou quando assumiu aquele compromisso.

Foi esse presidente que falou que a mudança climática é uma prioridade. Foi esse presidente que falou que quer alcançar o desmatamento zero. Foi esse presidente que falou que vai acabar com o garimpo ilegal. Foi esse presidente que falou que quer criar um novo ciclo de prosperidade na agenda da sustentabilidade. Então não será mais a política do PT. Acho que tivemos um ganho nesses anos todos. Será a política do Brasil, e a política do Brasil sustentada pelo partido do presidente também.

Órgãos de proteção e fiscalização como Ibama, ICMBio e a Funai foram sistematicamente desmantelados e desacreditados ao longo dos últimos quatro anos. Como retomar a atuação desses órgãos?

É preciso ter uma agenda para recompor o orçamento, recompor as equipes, ter planos e estratégias que são diferentes em relação às abordagens anteriores. É preciso retomar a gestão e a fiscalização, o monitoramento, que são as atribuições precípuas dos órgãos ambientais, com a necessária autonomia desses órgãos.

Agora, sobre a credibilidade do Ibama, mesmo Bolsonaro não consegue derrubar. O Ibama é uma marca. O que Bolsonaro conseguiu foi uma suspensão autoritária, intimidatória, de uma instituição que agora também tem um aprendizado.

Vai ter uma parte [dos órgãos públicos e da sociedade] que vai continuar resistindo no maior grau, mas tem a outra metade que vai continuar se empoderando. E tem que ter um diálogo inclusive com essa parte que resiste, porque mediações precisam ser feitas.

Quais são essas mediações?

Não vamos nos tornar sustentáveis num piscar de olhos. É uma transição. Agora eu não tenho como fazer a transição num empreendimento de alto impacto. Inclusive, tem uma lógica que é: vamos decretar isso aqui como utilidade pública para não ter regramento ambiental. Nunca vi nada mais contraditório e absurdo, porque se é de utilidade pública, se é o Estado que está fazendo, aí é que ele deve liderar pelo exemplo.

Quando eu fui para o Ministério do Meio Ambiente a gente tinha essa determinação. Não precisa ficar querendo ocupar a cena internacional de qualquer jeito. Não! Vamos fazer o dever de casa. E, fazendo o dever de casa, o Brasil assumiu esse protagonismo. Certo? E que o mundo todo está muito interessado em que volte.

Acho que a gente pode ter um círculo virtuoso de agendas que não têm mais a lógica da externalidade negativa. As externalidades têm que ser cada vez mais positivas. Já está delineado pela própria natureza que o mundo vai ter que cooperar em saúde e clima: não tem saída isoladamente, só se resolve no espaço do multilateralismo.

É por isso que foi muito importante o governo Biden fazer o movimento que fez, ter conseguido a maioria apertadíssima no Congresso para dar continuidade às suas medidas. E o Reino Unido, mesmo sendo um governo conservador, não sendo negacionista, dá uma contribuição na agenda de clima. A União Europeia sempre liderou essa agenda e infelizmente agora tem uma dificuldade em função da guerra que está acontecendo na Ucrânia. Mas essa agenda terá que ser retomada porque tem uma guerra planetária acontecendo. Existem mísseis e bombas atômicas de carbono sendo lançados na atmosfera. Essa crise energética que é resultado dessa guerra na Ucrânia vai dificultar um pouco, acredito eu, nas negociações da COP.

Como a senhora acredita que deve ser a atuação do governo de transição nessa COP? Que sinalizações deve passar para os outros países?

Não estou mandatada para falar em nome do governo, mas pelo discurso do presidente Lula, pelo que está no programa, por tudo o que eu sinto no conjunto da obra, dos atores que estarão lá não só do governo, mas da sociedade, da comunidade científica, da parte dos empresários que já entenderam a importância da agenda, essa equipe de transição deve atuar de forma proativa e deixando claro que o Brasil volta ao multilateralismo climático com toda a força. Teremos desafios para essa COP27, como aumentar os compromissos, as ambições, encarar a questão da mitigação e, principalmente, da adaptação, porque nós já estamos vivendo sob os efeitos das mudanças climáticas.

Trabalhar a questão do financiamento, e o Brasil é um país de renda média-alta que em Bali [na COP de Bali, em 2007] assumiu o compromisso de também fazer aporte de recursos [para financiar os países de baixa renda para adaptação e mitigação]. O Brasil não precisa, como os países de renda média-baixa e de renda baixa, ter dinheiro para poder fazer o dever de casa, mas existem países que precisam. Precisamos de cooperação. Cooperação técnica, cooperação científica, parcerias, inclusive para os nossos produtos sustentáveis terem acesso a mercados.

Precisamos inclusive de apoios financeiros, como é o caso da Noruega [que destina recursos ao Fundo Amazônia], mas não condicionamos isso para fazer o dever de casa. Somos um país de renda média-alta, então devemos insistir para que os recursos de financiamento para transição climática dos países de renda baixa e de renda média-baixa sejam aumentados. Para que os recursos para as populações originárias do mundo inteiro, que são responsáveis por 80% das áreas protegidas do planeta e que recebem pouquíssimo dinheiro por esse relevante serviço social, cultural, civilizatório, científico, aumentem.

E a gente deve enfrentar o problema complexo da questão de perdas e danos. Os países altamente vulneráveis que vivem as perdas e os danos das mudanças climáticas, que não contribuíram para o aquecimento do planeta, que são as vítimas daquilo que os grandes emissores produziram, eles têm que ter reparações históricas. Sei que tem uma complexidade porque existem muitos problemas [no mundo] e há um medo nos países desenvolvidos: “bem, se formos criar o precedente de reparação histórica para tudo o que já aconteceu…”. Eles acham que isso é inviável.

Pensei uma ideia conversando com o professor Eduardo Viola [da Fundação Getúlio Vargas], que é um grande colaborador, que talvez um caminho para pensar a questão da reparação é pensar em perdas e danos efetivamente ativos. A mudança climática está ativa. É terrível o que aconteceu com a escravidão. Precisamos desativar as consequências e as estruturas que mantiveram em situação de aviltamento econômico, social e em todos os sentidos, o povo preto no Brasil. É uma agenda que precisamos fazer. Mas não temos no cenário global a possibilidade de que alguém queira voltar a nos escravizar. Então, não é algo que esteja ativo. A mudança climática é algo que causou dano histórico e que está ativa.

O que nós não trabalhamos é com a lógica chantagista do Bolsonaro. Essa lógica da chantagem de ir para as COPs para chantagear os países ricos, para dizer que nós só vamos nos preocupar com as nossas florestas e com os nossos povos originários se nos pagarem para isso. Não preciso que alguém me pague para eu cuidar, e vou usar uma metáfora aqui, do meu filho. Quero cuidar do meu filho e tenho meios para cuidar dele. Agora, claro, se não tivesse esses meios, precisaria de ajuda. No caso do Brasil, essa chantagem é perversa, porque ela é uma desculpa para não fazer.

Recentemente houve alguns acenos sobre a possibilidade de a senhora assumir o Ministério do Meio Ambiente. No caso de um convite, a senhora considera essa hipótese?

Me sinto muito feliz de ter contribuído programática e politicamente com esse movimento que acabamos de ver, em que a questão ambiental e climática foi colocada no mais alto nível da disputa política pela campanha do presidente Lula, o que coloca o Brasil no patamar do que está acontecendo no Reino Unido, na Europa, nos Estados Unidos, no Japão, no Canadá. O Brasil está, digamos, nessa quadratura. A escolha do Ministério é um ato de escolha do presidente eleito. E acho que, nesse momento, tudo o que os aliados não devem fazer é criar qualquer tipo de constrangimento. Ele está com as políticas. Ele sabe o desafio, o tamanho do desafio e vai fazer as suas escolhas com base naquilo que ele acha que é o melhor para o governo.

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