25 Outubro 2022
No dia em que completou 81 anos de seu martírio, a cidade do Crato (CE) acolheu a cerimônia de beatificação de Benigna Cardoso da Silva, a menina de 13 anos assassinada a facadas ao defender-se do assédio sexual de um jovem, algo que já tinha acontecido repetidas vezes, enquanto ia buscar água numa cacimba próxima do lugar onde morava. Uma adolescente que é considerada um símbolo da luta contra o feminicídio e o abuso sexual de crianças e adolescentes.
A reportagem é de Luis Miguel Modino.
Nascida em Santa do Cariri (CE) aos 15 de outubro de 1928, órfã de pai e mãe com um ano de idade, os poucos dados biográficos conhecidos dizem que ela era fiel assídua às missas na Igreja Matriz da cidade. Seu assassinato causou grande comoção e no local do crime, onde logo foi construída uma pequena capela, e seu sepulcro se tornaram pontos de visitação.
O representante do Papa Francisco na cerimônia de beatificação, concelebrada por mais ou menos 20 bispos, centenas de padres e que contou com a presença de milhares de devotos da nova beata, foi o Cardeal Leonardo Steiner, que se mostrou surpreendido pela nomeação. O arcebispo de Manaus, que disse estar muito feliz de poder presidir uma celebração importante para o Ceará e para a Igreja no Brasil, definiu a nova beata como “uma menina que mostra o valor da mulher, a dignidade da mulher, mas mostra também o grande amor a Jesus”.
O cardeal destacou em Benigna “como foi fiel no seguimento de Jesus”, e como ela representa “a integridade da mulher, a dignidade da mulher. Mesmo sendo morta, ela mostra o que significa uma mulher que tem dignidade, ela preserva sua dignidade, ela luta pela sua dignidade”, uma atitude que definiu como “um grande ensinamento diante do feminicídio e diante do abuso de crianças e adolescentes”, considerando-a como a bem-aventurada que pode nos ajudar na superação desses crimes.
O Arcebispo de Manaus destacou o amor da Beata Benigna pela Palavra de Deus, pelas histórias da Sagrada Escritura. Também o fato dela cuidar das tias que a adotaram junto com seus irmãos e o fato de não sair do local onde morava, mesmo diante dos conselhos para fazer isso, para continuar cuidando das tias. Nesse sentido, ele disse poder considerar a nova beata como “a mártir do cuidado”.

Dom Leonardo Steiner na cerimônia de beatificação de Benigna Cardoso da Silva
Foto: Luis Miguel Modino/Captura de tela
Em sua homilia, lembrando as circunstâncias da morte e a passagem do Evangelho lida na celebração, onde relata o encontro de Jesus com a Samaritana no poço de Siquem, o Arcebispo de Manaus definiu a fonte como o lugar “onde se encontra a água que preserva e concede vida, sacia a sede de todos”, enxergando na nova beata “a mulher-menina que vai ao poço em busca de água que a fez percorrer o caminho do serviço, da dignidade, da santidade”. Alguém que “foi à fonte, em busca de água”, para quem o “lugar da água, da vida, tornou-se lugar da agressão, da violência, torna-se lugar da morte. Lugar da morte, fonte de resistência, de transparência, de fortaleza, de dignidade. Junto à fonte, Benigna oferece a sua vida na fidelidade a Jesus”.
Em Benigna, Dom Leonardo destacou que “desde cedo a Palavra e a Eucaristia foram bebida e alimento! Dessa fonte recebeu forças para perseverar, resistir, temperar-se, permanecer fiel aos desejos do seu coração”. Também que no fato de participar da comunidade e no cuidado das tias doentes, “cresceu na bondade, na generosidade, no cuidado das pessoas idosas, aprendeu na infância a amar Jesus! O seu amor, a sua misericórdia, a levou ao martírio”.
Nela, o Cardeal Steiner vê, seguindo o Livro do Cântico dos Cânticos, “um amor fiel, límpido, puro, virginal”, insistindo em que “o amor vence a morte. Na morte vemos e percebemos a grandeza transparente e forte do amor benigno, a suavidade, a ternura de Deus”. Um amor que “na morte supera transparentemente as paixões e deixa nascer e ver o amor puro e casto”, seguindo as palavras de São Paulo, que ressoam “diante da brutalidade, mesmo dos nossos dias em relação às crianças abusadas e o feminicídio”.
Um elemento destacado pelo Arcebispo de Manaus foi o arrependimento do homem que levou Benigna à morte. Segundo ele, “a pureza e a força conduzem o jovem à reconciliação, à conversão. O admirável que ele a busque como intercessora e é atendido”, insistindo em que “não há vingança, indiferença, rejeição, mas acolhimento de um homem arrependido”.
Uma Bem-aventurada que Dom Leonardo vê como “indicadora e defensora da dignidade da mulher”. Benigna é “exemplo de não subjugação das mulheres, defensora da própria força e valor, da dignidade e da beleza, da sexualidade e da maternidade, do vigor e da ternura. Preferiu a morte que a paixão, preferiu a morte que romper com a sua dignidade”. Alguém que “hoje contemplamos e invocamos a bem-gerada da Palavra de Deus, da Eucaristia, do cuidado às pessoas necessitadas, como defensora da dignidade de mulher, como ícone contra o abuso sexual de crianças e adolescentes, como a menina da misericordiosa no cuidado para com as pessoas idosas, como indicadora do caminho da pureza, da liberdade, da santidade”.
A ela pediu o Cardeal Steiner que proteja e interceda por nossas crianças e adolescentes, que “as nossas crianças sejam cuidadas e amadas, as nossas adolescentes, respeitadas e maturadas. Ajuda-nos a superar o sofrimento dos abusos sexuais e do feminicídio. O teu nascimento no martírio, a tua presença transparente, ó Bem-aventurada, nos desperte para a dignidade da mulher e a superação do abuso das crianças e adolescentes!”.
Uma beatificação que já está rendendo frutos, pois no mesmo dia em que ela aconteceu, “é sinal de esperança a instalação do Juizado de Violência Doméstica e familiar contra a Mulher na Comarca de Crato. Tudo para a celeridade na tramitação dos feitos e também para garantir os direitos fundamentais das mulheres nas relações domésticas e familiares”, lembrou o cardeal.

Dom Leonardo Steiner na cerimônia de beatificação de Benigna Cardoso da Silva
Foto: Luis Miguel Modino/Captura de tela
Segundo ele, “Benigna nos anima a criar um ambiente familiar e social de cuidado, respeito e dignidade entre nós”, uma necessidade no Brasil, onde o crime do feminicídio e dos abusos sexuais contra crianças e adolescentes são comuns e muitas vezes ficam ocultos ou são esquecidos pela justiça. Uma menina que em palavras de Dom Leonardo nos diz que “a inocência, a pureza, abrirá o caminho para celebrarmos a Padre Cícero Bem-aventurado e depois santo”, o que despertou aplausos na multidão presente. Aquele que é considerado, ainda sem ser reconhecido pela Igreja, como um santo pelo povo nordestino, lhe pediu que “nos ajude a ser perseverantes e não abandonemos a fé em Jesus”.
Finalmente, Dom Leonardo implorou a intercessão da Bem-aventurada Benigna: “Olha as nossas crianças, nossas jovens, nossos jovens, sintam-se amadas e cuidadas. As mulheres sejam respeitadas na sua dignidade, na sua maternidade. Ajuda-nos a contar as histórias de Jesus, ensina-nos a amar e viver a Palavra de Deus, a Eucaristia”.
Leia mais
- Registros de violência doméstica e sexual contra mulheres crescem no Brasil em 2021
- Número de estupros de LGBTQIA+ cresceu 88% em 2021
- Pesquisador lança livro sobre perseguição política a personagens LGBTQIA+
- Violência contra a mulher: tratam-se os sintomas, não as causas. Entrevista especial com Patrícia Grossi
- Mitos e preconceitos dificultam combate ao feminicídio
- A cada 25 horas, uma pessoa LGBT morreu vítima de violência no Brasil em 2016
- Vão ter de engolir os LGBT
- O ódio aos LGBT e um Suicídio Evitado
- A crise pode ser contada em mortes, quando se é LGBT
- “A igualdade de gênero gera sociedades menos violentas, mais felizes”. Entrevista com Jeff Hearn
- Violência contra mulher cresce no período de quarentena
- Por que falamos de feminicídios?
- Sinais do aumento de feminicídios. Por que elas são mortas?
- Desigualdade de gênero, um passo atrás de quase 10 anos
- Desigualdade de gênero: Mulheres trabalham cinco horas a mais e ganham 76% do salário dos homens
- Calculadora revela desigualdade de gênero no mundo
- Para combater a violência contra as mulheres, é preciso partir dos agressores
- Anti-maternidade
- Violência de gênero é mais do que o homem agressor e a mulher vítima
- América Latina. Mulheres contra o machismo
- Por um feminismo sem fronteiras
- Brasil tem dois mil órfãos do feminicídio por ano
- Por um feminismo de baderna, ira e alarde
- 8 de março, data para lembrar que sem as mulheres não somos nada
- O lugar mais perigoso do mundo para uma mulher: dentro da sua própria casa
- Violência de gênero é obstáculo para garantia de direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e jovens
- Casa. O lugar mais inseguro para as mulheres
- Sinais do aumento de feminicídios. Por que elas são mortas?
- “Uma falha do pensamento feminista é acreditar que a violência de gênero é um problema de homens e mulheres”, aponta Rita Segato
- Registro recorde de feminicídios no Estado de São Paulo no Brasil, informa jornal do Vaticano
- Atlas dos feminicídios no RS: pesquisa aponta mais tentativas consumadas no interior
- Três mulheres sofrem violência a cada hora na Região Metropolitana de Porto Alegre
- Violência contra mulheres aumenta no Brasil
- Elas, as apagadas da história
- “O problema da violência sexual é político, não moral”. Entrevista com Rita Segato
- A base política das relações de violência de gênero. Entrevista com a antropóloga Rita Segato
- Por que homens matam mulheres?
- “O novo feminismo, o mais jovem, em especial na América Latina, aceita e busca o diálogo com os homens”. Entrevista com Lydia Cacho
- “A América Latina feminista que queremos não será possível sem as mulheres pobres, que hoje encontram refúgio na religião”, avalia a teóloga Nancy Cardoso
- Feminismo: "Estes últimos dez anos viram o triunfo da masculinidade". Entrevista com Anne Soupa
- Feminismo é necessário e urgente. Entrevista especial com Lola Aronovich
- Cultura do patriarcado e desigualdades históricas entre os sexos são vetores de uma epidemia de violência contra a mulher. Entrevista especial com Nadine Anflor
- Feminicídio não é crime passional. É crime de ódio
- Mulheres, a primeira vítima do capitalismo
- Combate ao feminicídio não pode ser reduzido ao Direito Penal. Entrevista especial com Luanna Tomaz
- Feminicídio. Uma nova conquista de direitos da mulher
- Maria da Penha espera que governo saia da 'escuridão'
- Agressão contra a mulher é uma violência de repetição, diz socióloga
- Sem debate franco sobre gênero, mulheres estão fadadas à violência doméstica. Entrevista especial com Fernanda de Vasconcellos
- Direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Entrevista especial com Telia Negrão
- A necessidade dos vínculos para cessar a reprodução da violência
- Dia Internacional da Mulher: a origem operária do 08 de Março
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Cardeal Steiner beatifica a menina Benigna, “defensora da dignidade da mulher, ícone contra o abuso sexual de crianças e adolescentes” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU