Pe. João Augusto Mac Dowell, SJ (*09-06-1934 - +13-09-2022): a nobre simplicidade de um homem de fé, razão e coração

João Augusto Mac Dowell | Foto: FAJE - Youtube

19 Setembro 2022

 

"Neste momento em que damos adeus ao mestre, orientador e amigo, nada melhor do que recolher, no depositário de nossas mais caras lembranças, o legado que ele nos deixou, o legado de um buscador inquieto da verdade que jamais prescindiu das 'duas asas' que o mantiveram firme e perseverante em sua busca vital, as asas da fé e da razão. Com efeito, na compreensão de Pe. Mac Dowell, a de modo algum obscurece a razão, não tolhe sua liberdade nem cerceia seu dinamismo", escreve Vinícius Augusto Teixeira, padre da Congressão da Missão - CM.

 

Eis o artigo. 

 

A recordação de Pe. João Augusto Mac Dowell, SJ, desperta naqueles que o conheceram um sentimento de profunda gratidão. Gratidão por tudo o que este homem significa e por tudo o que realizou ao longo de seus longevos 88 anos. Sabemos de seu respeitável currículo acadêmico e de sua extensa ficha de serviços à Companhia de Jesus, à Igreja e à sociedade, especialmente no campo do ensino, da pesquisa, da gestão e do governo. Com efeito, em todos os empenhos que assumia, Pe. Mac Dowell demonstrava aquela “magnanimidade e fortaleza de ânimo”, tão vivamente recomendadas por Inácio de Loyola a seus companheiros (Constituições, 728). Mas, acima de tudo, somos agradecidos por sua aquilatada qualidade humana, cravejada de sólidas virtudes, que o faziam apreciado por quantos eram alcançados por sua sabedoria e generosidade, sempre revestidas de discrição, fineza e disponibilidade. A riqueza da personalidade deste Jesuíta de pura cepa torna muito exigente a tentativa de descrevê-la, ainda que sem a pretensão de esgotá-la. Contudo, a distância imposta pela morte permite-nos divisar com mais nitidez os contornos de sua figura a um só tempo nobre e simples, cinzelada pela mais genuína tradição inaciana. Assim, não nos furtamos ao dever do justo reconhecimento: “Dever do luto, dever da gratidão”, diz Comte-Sponville em seu Petit Traité des Grandes Vertus, dever que nos permite exclamar: “Que bom ele ter vivido! Que bom tê-lo conhecido!”.

 

O filósofo

 

Que bom ter conhecido o Prof. Mac Dowell nos idos de 2004, quando ele exercia a função de reitor do então Instituto Santo Inácio (ISI), hoje Faculdade Jesuíta (FAJE), em Belo Horizonte (MG). Ao ouvir seu primoroso discurso na abertura do ano acadêmico, logo me dei conta de que estava diante de um homem de elevada cultura, que personificava aquilo que se dizia lapidarmente a respeito do célebre Padre Vieira, também Jesuíta: “Os bons oradores são como as estrelas: altíssimos e claríssimos”. Pude testificá-lo naquele mesmo ano, quando tive Mac Dowell como professor, primeiro de Ética e, no ano seguinte, de Filosofia da Religião. Conservo ainda suas volumosas apostilas, profundas e densas em seu conteúdo, impecáveis no rigor metodológico, sem deixar, porém, de ser acessíveis e compreensíveis a seus alunos ainda tateantes no universo filosófico. A vastidão da cultura de Pe. Mac Dowell permitia-lhe circular com desenvoltura por todos os períodos da história da Filosofia, destacando os autores emblemáticos de cada época, desde os clássicos da Antiguidade até os modernos mais afinados com os problemas contemporâneos. Ficava patente sua familiaridade com os pensamentos de Aristóteles, Tomás de Aquino, Heidegger e Lima Vaz, entre outros.

 

Da mesma forma, sobressaíam seu acendrado interesse pelo diálogo com a sociedade atual, bem como sua análise crítica das realidades e tendências que caracterizam esta mudança de época em que vivemos, sem jamais insular-se em unilateralismos ideológicos. Que o diga sua compreensão arguta da relação entre modernidade e secularização, sobre a qual escreveu e falou fartamente, evidenciando seus desdobramentos e incidências na pluralidade do fenômeno religioso contemporâneo. Este, aliás, foi um dos temas da última conversa presencial que tivemos, quando o visitei por ocasião de minha penúltima viagem ao Brasil. E, horas depois, recebi por e-mail o texto do magistral verbete escrito por ele sobre essa mesma temática para um dicionário recém-publicado.

 

Entretanto, para Mac Dowell, a filosofia não era apenas uma atividade intelectual ou um deleite metafísico. Era, acima de tudo, um compromisso de vida, uma missão, um serviço aos outros, uma disposição contínua de apontar os caminhos da verdade, do bem, da beleza. Por isso, sua precisão e clareza de modo algum o impediam de preocupar-se com a assimilação dos conteúdos por parte de seus estudantes, motivo pelo qual interrompia com frequência suas exposições para interrogar-nos se estávamos entendendo e acompanhando seu raciocínio. Nenhuma pergunta lhe aprecia desprezível e respondia a todas com leveza e objetividade, ampliando nossos horizontes e aclarando nossas buscas, sem exigir-nos a pré-compreensão que ainda não podíamos ter ou expressar naquela etapa seminal de nossa formação acadêmica. A profusão de exemplos ilustrativos, o ânimo sereno, a cordialidade no trato, seus gestos de confirmação e incentivo comunicavam a todos segurança e tranquilidade, tornando suas aulas amenas e encorajando-nos a prosseguir nos percursos indicados pelo saber filosófico. Ficou gravada em nossa memória sua habitual exortação, sempre acompanhada de um sorriso: “Coragem!”. É assim: “O que vivemos em profundidade permanece sempre em nós”, como anotou Merleau-Ponty, em sua Phénoménologie de la perception.

 

E tudo isso talvez se deva ao fato de que o Prof. Mac Dowell sabia aliar à sua alta competência filosófica e à sua incomum capacidade de trabalho a humildade e a simplicidade que são próprias dos homens virtuosos, daqueles que não buscam a si mesmos e a seus interesses quando se dispõem a fazer o bem, corde magno et animo volenti, por convicta fidelidade à sua consciência. Eram precisamente essa humildade e essa simplicidade que reluziam na conduta de Mac Dowell e que o tornavam acessível a todos e sempre disposto a escutar, orientar e ajudar. Seu interesse – estava claro – não era outro senão fazer-nos crescer, ajudar-nos a ser sempre mais para atuar sempre melhor em meio à complexidade dos tempos hodiernos. Os versos de A. Machado, adaptados por J. M. Serrat, servem de moldura para a existência desse mestre sábio e modesto, do qual nos despedimos: “Todo pasa y todo queda, pero lo nuestro es pasar, pasar haciendo caminos, caminos sobre la mar. Nunca perseguí la gloria ni dejar en la memoria de los hombres mi canción…”.

 

Mas sobre o filósofo – que por sinal obteve seu doutorado aos 34 anos de idade – muitos ainda poderão escrever com mais autoridade e riqueza de pormenores, colocando em realce a multiplicidade de feitos e iniciativas que pontilharam a larga e exitosa trajetória acadêmica de João Mac Dowell.

 

O homem de Deus

 

A segunda faceta de Pe. Mac Dowell que conheci de perto foi a do homem de Deus, a do contemplativus in actione, a do exímio orientador espiritual, no sulco traçado por sua identidade jesuítica. E que bom tê-lo conhecido assim! Ainda como estudante de Teologia, pedi que ele me acompanhasse espiritualmente. Ao todo, foram mais de 10 anos de acompanhamento, com encontros quase sempre mensais. Sua disponibilidade era constante e sua acolhida sempre calorosa. Introduzia nossos colóquios com uma oração e se punha a escutar-me com paciente e respeitosa atenção. Em seguida, orientava-me com a serena lucidez que sua maturidade humana e espiritual lhe outorgava. Pautava-se nos Exercícios de Santo Inácio, relacionando-os com o carisma da Congregação a que pertenço, partilhando suas próprias convicções, evocando às vezes suas experiências. Assim, ajudava-me a palmilhar caminhos pelos quais ele já havia transitado como homem, companheiro de Jesus e sacerdote. Terminávamos sempre com a confissão sacramental. Não tenho palavras para expressar o quanto fui agraciado por aquele acompanhamento. Sei que ainda colherei por muito tempo as ressonâncias daqueles encontros inspiradores que tanto me incitavam a buscar, encontrar e amar a Deus no cotidiano da vida.

 

As ênfases de Mac Dowell – devidamente aplicadas às situações que lhe expunha – giravam em tono daquilo que ele considerava o âmago da vida cristã e, por conseguinte, da vida consagrada e do ministério presbiteral: a experiência do Deus-Amor como princípio e fundamento de tudo o que somos; a disposição de conhecer e realizar sua vontade pela via do discernimento e da disponibilidade; o humilde reconhecimento de nossas fraquezas, o mergulho confiante no oceano infinito da misericórdia e o reordenamento da própria existência na perspectiva do Reino; a graça e a decisão de seguir a Jesus Cristo, percorrendo os mistérios de sua vida e entrando na dinâmica de seu ser-para-os-outros; o lugar imprescindível da oração e a contemplação do amor de Deus no dia a dia, nas relações interpessoais e na missão que decorre do chamado que o Senhor nos dirigiu para realizar plenamente o fim para o qual fomos criados. Conservo ainda as preciosas indicações que Pe. Mac Dowell me enviou por e-mail, quando lhe comuniquei minha intenção de fazer os Exercícios de 30 dias. Terminou sua mensagem recordando-me um trecho de uma carta de Santo Inácio a um Cardeal, datada de 1542: “São muito poucas as pessoas que compreendem o que Deus faria delas se se abandonassem inteiramente em suas mãos e se deixassem formar por sua graça”.

 

Do recato da orientação espiritual, desabrochou uma amizade que se dilatava em outras formas de presença, interação e serviço. Foi reconfortante tê-lo ao meu lado nas Ordenações Diaconal e Presbiteral, assim como era também gratificante contar com sua colaboração em diversas oportunidades. Era o que ocorria, por exemplo, quando, exercendo o ministério da formação, convidava-o a orientar manhãs de espiritualidade no seminário e a atender nossos seminaristas em confissão. Ou ainda quando, trabalhando em paróquia, convidava-o a celebrar a Eucaristia na novena do padroeiro. Aceitava com visível agrado, preparava-se com esmero e comparecia com entusiasmo, dirigindo-se à comunidade com sua costumeira simplicidade. A alegria que se irradiava de seu semblante revelava sua grande sensibilidade pastoral. De fato, sempre comentava o quanto o edificava estar com o povo de Deus, especialmente as pessoas mais simples das comunidades que atendia e para as quais era tão somente o Pe. João. Havia entendido o que escreveu Inácio aos Padres e Irmãos do Colégio de Pádua, em 1547: “A amizade com os pobres nos faz amigos do Rei Eterno”.

 

O homem da fé e da razão

 

Neste momento em que damos adeus ao mestre, orientador e amigo, nada melhor do que recolher, no depositário de nossas mais caras lembranças, o legado que ele nos deixou, o legado de um buscador inquieto da verdade que jamais prescindiu das “duas asas” que o mantiveram firme e perseverante em sua busca vital, as asas da fé e da razão. Com efeito, na compreensão de Pe. Mac Dowell, a fé de modo algum obscurece a razão, não tolhe sua liberdade nem cerceia seu dinamismo. Antes, ao contrário, por seu caráter marcadamente transcendental, é próprio da fé iluminar a razão a partir de dentro, ampliar infinitamente seu panorama e estimular seu anseio de plenitude, suscitando e confirmando atitudes e compromissos de indiscutível alcance humanizador e relevância ética. Assim, é ilusório pensar que ignorar a Deus poderia dotar de maior eficácia o labor intelectual e a atividade acadêmica. Seria, na verdade, empobrecer e estreitar o horizonte de compreensão e sentido da existência e de suas relações, desprezando aquela sede do Absoluto que constitui essencialmente o ser humano, habita sua interioridade e o impulsiona na direção da meta a que se reconhece ou se sente radicalmente destinado. Sem a perspectiva unificadora da fé, as experiências mais significativas da vida seriam como contas soltas e dispersas de um colar cujo fio se rompeu. Não foi à toa que o filósofo cristão E. Mounier quis afirmar: “Medo da liberdade, medo da verdade, medo de viver se retiram imediatamente diante de uma fé que se afirma como o Caminho, a Verdade e a Vida” (L’affrontement chrétien, p. 122). Daí decorre que a força humanizadora do cristianismo, ou seja, sua capacidade de apontar o sentido da vida e de promover a transformação da sociedade, seja o mais valioso preâmbulo existencial à transmissão da fé.

 

Ao se referir à atitude requerida pela investigação filosófica sobre Deus, em sua magistral apostila de Filosofia da Religião, que ainda esperamos ver publicada, Mac Dowell franqueia-nos o fulcro de seu pensamento iluminado pela fé cristã:

 

“Toda reflexão filosófica autêntica supõe o amor à verdade, que combina duas atitudes fundamentais. De um lado, o desejo de saber, de crescer no conhecimento do sentido das coisas e da própria existência. De outro, uma grande abertura e honestidade intelectual, isto é, a capacidade de libertar-se de ideias preconcebidas, de preferências subjetivas, para deixar-se impactar pelo que se mostra, pelo que é, como é, e não como eu gostaria que fosse. No caso da questão de Deus, o desejo da verdade e a abertura para ela são ainda mais necessários. De fato, quem tem fé reconhece que ‘foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de conhecê-lo, para que, conhecendo-o e amando-o, possa chegar também à verdade sobre si próprio’ (João Paulo II. Fides et ratio). Diante da elevação deste conhecimento, requer-se uma profunda humildade, com o reconhecimento de que a busca de Deus não é fruto simplesmente de nossos esforços, mas um dom do próprio Deus. Como diz Santo Irineu: ‘Ninguém pode chegar a conhecer Deus a não ser que Deus o ensine’”.

 

E conclui, citando a oração com a qual Santo Anselmo introduz sua reflexão sobre a verdade de Deus, oração que Pe. Mac Dowell pode ter feito sua em muitas circunstâncias de sua vida quase nonagenária: “Ensina-me a procurar-te, mostra-te a quem te procura; pois não posso procurar-te se não me ensinas, nem encontrar-te se não te mostras. Que te procure desejando, deseje procurando, encontre amando, ame encontrando” (Proslogion, 1).

 

Tendo chegado ao termo de sua laboriosa e profícua peregrinação terrena, coroada pela gratidão e pela admiração daqueles que o conheceram, João Augusto Mac Dowell encontra agora Aquele a quem amou, desejou e procurou, conduzido pela fé e pela razão. Dessa forma, ele nos recorda o que escreveu Inácio de Loyola a A. Enriquez: “Sempre devemos lembrar-nos de ser peregrinos até chegar à nossa pátria celestial e de não nos apegar tanto às pousadas e terras por onde passamos a ponto de esquecer-nos para onde vamos ou perdermos o amor de nosso fim último”.

 

Leia mais