Fé, Política e Democracia

Comunidade de Varginha (Manguinhos) recebeu visita do Papa Francisco, na JMJ 2013, Rio de Janeiro. Foto: Tania Rêgo | Agência Brasil

14 Setembro 2022

 

"Estamos diante de um penoso projeto de morte, justamente quando nossa interpretação sobre o serviço ficou turva. Novamente estamos a confundir ser – vir com servidão, lugar onde reina a incapacidade de agir coletivo e crítico, marcado que é por uma profunda ausência de democracia", escreve Rafael dos Santos da Silva, professor na Universidade Federal do Ceará – UFC, mestre em Administração Pública, doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra e membro do grupo de Pesquisa Josué de Castro – PUC-Rio. É também Conselheiro Convidado do IBASE-RJ, membro do Movimento Igreja em Saída e assessor dos Movimentos Sociais.

 

Eis o artigo. 

 

Na sua primeira visita ao Brasil, em 2013 o Papa Francisco surpreendeu a organização do evento e o chefe de sua segurança e quis estar com os pobres. Imediatamente improvisaram um palco em meio a um terreno enlameado sem nenhuma infraestrutura aparente, bem ao contrário do palco suntuoso preparado para as autoridades. Ao subir nesse tímido palco o bispo de Roma foi recebido de forma muito afetuosa e como quem retribuía sentenciou: “vamos botar água no feijão.”

 

Botar água no feijão é uma expressão tipicamente da periferia. Um ditado popular bastante usual entre as pessoas mais humildes, porque revela proximidade, colaboração e principalmente comunhão. Tem a função de anunciar a chegada repentina de alguém, mas que será prontamente recebido(a) porque a tradição forjada pelo pobre diz que o pouco que se tem deve ser repartido com alegria. Portanto, ao chegar na casa do pobre é preciso com ele cear. Botar água no feijão é nesse sentido um gesto de comunhão com o caminheiro cuja jornada vem de longe. É a forma de se fazer um com ele.

 

Mais do que isso a expressão utilizada com sabedoria por Francisco nos possibilita abrir uma importante reflexão assentada na ideia de servir. Observe que se tomarmos a palavra pelo averso podemos extrair dela a expressão vir a ser, ou seja, existe aí a tarefa de estar presente na vida do outro para com ele agir desapegadamente. O ato de servir, é, portanto, a mais potente possibilidade de agir a partir do movimento de insurreição, contra toda forma de opressão. É a mais sublime expressão de se colocar na estrada da vida. É nessa circunstância que ocorre a capacidade de se inserir na história e dela tomar parte e como consequência assumir a responsabilidade de modifica-la. Logo, “vir a ser” é antes de tudo colocar-se em saída.

 

Deste modo, colocar-se a serviço exige se organizar, mudar o rumo da história, o curso da vida quando esta oprime. É neste limite, reafirmar que a história não acabou, nem está pronta sem possibilidade, razão pela qual não podemos esquecer que a ação coletiva absorve em si toda oportunidade de identificar e organizar o conjunto das pessoas para ir em busca daquilo que ainda não há. Por isso, o ideal do serviço pressupõe uma boa dose de fé na melhor expressão da oração - orar e agir. Uma boa noção do agir coletivo é expressa na noção de igreja-comunidade que desde o povo hebreu foi utilizada para conferir crédito à necessária existência. Aqui a ideia de serviço toca a lógica da re-existência, ou seja, existir novamente.

 

O povo Hebreu pôs sentido coletivo em vossas ações a partir da igreja que se colocava a caminhar rumo ao prometido. Aquilo que ainda não possuíam, mas já desejavam. Mas o que especialmente seria? A terra prometida? O reino de Deus? Ou tudo isso junto? Precisava ser tudo isso junto porque a escolha e a ação coletiva não aceitam meias vitórias, arranjos ou retalhos. A conquista precisa ser plena!

 

Em outras palavras, a comunidade põe-se a serviço agindo coletivamente para sendo fiel a sua história, enxergar-se nas lutas necessárias às vossas vidas. Até alcançar a justa medida. Hoje, a luta por justiça continua nas relações sociais. Isso porque grassa sobre nós um projeto de morte. Novamente os cavaleiros do apocalipse que já haviam tomado de conta da idade média reapareceram tomando de assalto novamente a democracia, e de novo reproduzindo-se em forma de forme, peste e guerra. Como se não bastasse, ainda há novamente um faraó a desdenhar da vida de seu povo. Estamos diante de um penoso projeto de morte, justamente quando nossa interpretação sobre o serviço ficou turva. Novamente estamos a confundir ser – vir com servidão, lugar onde reina a incapacidade de agir coletivo e crítico, marcado que é por uma profunda ausência de democracia.

 

Há nesse espaço a obediência vazia, isolada de um projeto comum. Aqui se estabelece uma confusão entre conformismo com resiliência, elemento que vai desembocar na escravidão, ou seja, lugar da ação sem fé e como consequência, da ausência da noção do bem comum. Nesse tipo de serviço vazio está o último rateio encarnado na dimensão da política que sem razão, fica igualmente esvaziada. Uma política voltada para os faraós não para o seu povo. Sustentada para as elites econômicas e nunca para as maiorias sociais. Como resultado, tem-se uma economia política sem povo, sem chão, portanto sem história.

 

Nesse contexto, o povo de Deus não encontra energia para questionar a força que os toma. A noção coletiva sede espaço a ideia de propriedade privada. Os grandes latifúndios são vistos como casos de sucesso. Os bens naturais são interpretados como recursos naturais, e somente quem tem posses pode deles prescindir. Aqui uma insensatez individual visa privatizar a água, os rios, até que toda forma de vida fique privatizada ou envenenada, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Não raras as vezes, nesse tipo de ambiente brota oportunistas que se especializam em maquiar o sistema eleitoral para dele tirar toda sorte de proveito. Como consequência o jogo político é tomado de assalto e a esperança na vitória coletiva é simplesmente adiada.

 

É comum nesse ambiente a comunidade encontrar-se esfacelada e já não consegue modificar a dura realidade em que condena 12 milhões de pessoas desempregadas. 4 milhões de desalentados e 125 milhões de brasileiros(as) obrigados a enfrentar algum tipo de insegurança alimentar, sendo que destes, 33 milhões simplesmente sucumbem a fome profunda. Esse cenário é possível mesmo estando essa gente a residir num país que se orgulha por ser o maior exportador de grão? O maior produtor de proteína animal e de comodities minerais do mundo? Tal contradição nos faz refletir: onde está nossa fé? E porque está fé não encontra pouso na nossa ação política? Aqui uma questão central se impõe: qual é o papel das igrejas em saída em um cenário para garantir vida? Essa me parece ser a questão central nesse início de século.

 

Nesse limite é preciso recuperar o papel da igreja comunidade; igreja povo que se coloca a caminhar... Igreja que se põe em movimento na história para dela tomar posse e consequentemente muda-la. A final, boa razão tem o Papa Francisco ao sentenciar que: “nossa passividade não cabe na mesa da comunhão”. Dai porque é o próprio Bispo de Roma quem nos aponta o modelo necessário ao defender radicalmente que precisamos de uma “igreja pobre para os pobres.” Aqui, chamo atenção quando a palavra pobre aparece na frase do papa, pela primeira vez é para designar uma qualidade. Trata-se, portanto de um adjetivo a caracterizar o sujeito, no caso especifico a igreja.

 

No entanto, quando a palavra é dita pela segunda vez, já é em forma de substantivo, cuja função semântica é identificar o sujeito. Sem pretensão de relembrar as aulas de português, compreender essas duas dimensões da pobreza é para nós importante porque nos ajuda a apontar a tarefa da igreja e aquém efetivamente ela deve se portar. Inicialmente a palavra pobreza indica carregar pouco, viver apenas com o essencial. Não acumular para não perder no seu horizonte um projeto maior. Negar essa realidade é ignorar efetivamente aquele(a) afetados pela ganancia de quem acumula. Nesses termos, uma igreja pobre para os pobres já era sustentada pela igreja primitiva exatamente quando no capítulo 4 de atos dos apóstolos se lia: “(...)e entre eles não havia quem passasse fome porque dividiam tudo em comum”

 

Essa noção de comunidade baseada no VIR a SER é a melhor expressão de comunidade de vida que ao agir sobre a história modifica radicalmente seu curso conferindo-lhes outra realidade, e por isso é sempre motivada a sair de onde se encontra, daí porque falar em igreja em saída, que na melhor expressão da “Evangelho Gaudium: 46” são comunidade com as portas abertas, prontas para sair ao encontro das periferias físicas e existências. Não significa sair sem direção, nem sem sentido, mas saber identificar na caminhada aqueles(as) que estão caídos pelo logica do sistema político do nosso tempo. Logo, uma igreja que se põe a sair traz no centro da sua tradição o pobre e a democracia.

 

Essa tarefa é complexa depende de decisão individual e coletiva de vir a ser. Esta enraizada na responsabilidade – ou seja, na resposta a possibilidade dada ao coletivo de mudar o curso da história. Como? Se pondo a serviço contra toda forma de opressão e contra tudo que produz pobreza. Hoje produzir pobreza significa retirar a terra do índio, do camponês e dos povos tradicionais. No meio urbano, aquilo que torna menor os desempregados, que escraviza as mulheres e as mães monoparentais. Sequestra o sonho da juventude, em especial as jovens que tendo direitos básicos negados, são jogadas a beira das estradas, como quem descartadas não servem ao sistema, lhes resta o caminho único da prostituição. Como se não bastasse são açodadas nas consequências desse processo, sobretudo quando são brutalmente engravidadas.

 

Não faltam que condenem o aborto, mas paira um profundo silêncio sobre o estupro. Estão desta forma, expostas a uma dinâmica social da pobreza cuja vulnerabilidade vai pouco-a-pouco lhes tornando desfiliadas do tecido social. Dito de outro forma, a produção de pobreza material e sequestro da democracia são irmãs siamesas.

 

Diante desse cenário, uma pergunta se impõe: qual o papel do cristão, dos cristãos e das igrejas cristãs? Toda igreja que se põe em saída precisa ter no seu horizonte as pessoas empobrecidas e marginalizadas pelo sistema social excludente que impera no seu tempo. É preciso recuperar a tarefa pedagógica assumida pelo bom samaritano que consistiu na capacidade de parar o curso do seu projeto, auxiliar e se comprometer com o outro, até que sua dignidade fosse restabelecida. Em nosso contexto, isso significa mudar radicalmente o sistema de opressão que age sobre nossas vidas. Tal tarefa exigi vir a ser (ou servir) na política, lugar próprio da ação. Exige democracia.

 

Agir na política não é apenas votar bem. Isso é fundamental! Mas é ter no pobre/oprimido a balança da justiça. Razão pela qual é necessário disputar o dinamismo do processo social revelado nas estruturas políticas. Por isso, cabe ao bom samaritano de nossos tempos, organizar a vida pública das comunidades. Ajuda-las na compreensão histórica, social, econômica, ambiental e política e construir conjuntamente as ações coletivas. Dito de outra forma, se tiver que dançar com eles, dance... se tiver que sofrer suas dores, que sofra... porque o samaritano de nossos tempos vive coletivamente sua comunidade e dela toma parte até que um dia a vitória apareça. Isso significa literalmente fazer a travessura no deserto rumo a terra prometida.

 

É preciso ser igreja em saída. Logo é necessário potencializar a relação igreja/política para desta forma ser possível reluzir a missão última do reino de Deus ainda aqui. Razão pela qual é preciso apostar na ousadia de sair de si e ir ao encontro do outro, até desencadear um processo sem volta e romper “o mito da consciência isolada da auto referência.” Somente aí será possível vencer a apatia social que teima em nos imobilizar. A igreja em saída não pode apostar no “salve-se quem puder” nem “no primado da indiferença”. Por isso, precisamos escutar os índios, os negros, as mulheres, os pobres, que bem foram lembrados por Jesus no evangelho, justamente quando dizia: estive nu... estive com fome... estive preso... Ser igreja em saída é fazer da luta por justiça sua principal liturgia. É disponibilizar nossas ações contra toda forma de produção de pobreza, injustiça e miséria, e compreender o velho ensinamento em que diz que ao contrário de riqueza, não é pobreza, mas injustiça social.

 

Por isso devemos agir coletivamente como comunidade de fé. Paradoxalmente, fé exige razão por que elabora outra dimensão da graça de Deus que se materializa na construção de uma outra sociedade. Aqui está a razão central de ser igreja, construir a caminhada – travessia – coletivamente para enfrentar todo tipo de injustiça social. Somente aí colocamos o projeto de Deus em prática porque vivemos sua melhor expressão, bem sintetizada por Francisco de Assis quando referindo-se a vivência do evangelho sentenciou: “pregai o evangelho e se precisar use palavras”.

 

O convite de viver o evangelho consiste em ser uma igreja em saída no exato limite de acabar com a fome dos 33 milhões de irmãos e irmãs espalhadas pelas periferias do Brasil. É mudar o chefe do executivo, mas com a devida radicalidade, mudar o sistema econômico que mata e condena 4,5 bilhões de pessoas no mundo a conviver com algum tipo de pobreza. É tencionar e mudar o sistema que naturaliza o fato de apenas 1% ter a mesma riqueza que a metade da população mundial. No Brasil, isso significa que apenas 8 afortunados tenha a mesma riqueza que 100 milhões de pessoas empobrecidas.

 

Aqui a fé e a política se encontram para gritar ao mundo que essa economia mata. Mas não só, é preciso construir uma nova economia que seja mais justa, mais fraterna, solidária e ecológica. Uma autêntica economia de Francisco, que traga no seu interior a potencia de recuperar as escrituras dos Atos dos Apóstolos e estabeleça a justa medida até que seja novamente possível dizer que “entre eles não havia quem passe fome, porque dividiam tudo em comum.” Na atualidade, as palavras dos apóstolos são bem sintetizadas na expressão do Papa Francisco quando falava aos movimentos sociais e aos bispos da Bolívia: “que não haja entre nós, nenhum camponês sem-terra, nenhuma família sem casa, nenhum trabalhador sem direitos”. Eis aí nossa essência.

 

Aí teremos atravessado o deserto junto com os pobres, e lá do outro lado não teremos mais pessoas em situação de pobreza porque todos vivem na plena justiça social. Não esqueça que tudo isso exige um longo caminho, e para nós brasileiros(as) chamo atenção o momento especial que viveremos em outubro próximo, quando inspirados pelos festejos de Francisco possamos de fato nos colocarmos a serviço e servir ao país com o peso nosso voto. É preciso parar o projeto de morte que grassa sobre nossa gente.

 

Portanto, é tarefa de todo cristão se opor ao estado de opressão, ainda que isso nos custe a vida. Ninguém desce da cruz ou abandona sua missão. Por isso, cristãs e cristãos uni-vos.

 

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