27 de agosto: A Páscoa de Hélder Câmara, Luciano Mendes de Almeida e José Maria Pires

Dom Hélder Câmara, Dom José Maria Pires e Dom Luciano Mendes de Almeida, em montagem sobre quadro de Cerezo Barredo. Animação: IHU

Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 29 Agosto 2022

 

O projeto de uma Igreja descentralizada, das periferias e dos pobres é central para entender o programa do pontificado de Francisco. Neste 27 de agosto, o mundo atenta-se à Itália para um dos mais importantes consistórios da era pós-conciliar. Há quase dez anos, Jorge Mario Bergoglio assumia a Cátedra de Pedro para dar impulso a uma Igreja reconstruída institucional e pastoralmente. Embora o espetáculo midiático espere por anúncio do fim do pontificado, o que acontece em Roma é a consolidação de uma Igreja Católica descentralizada de Roma, a afirmação do Concílio Vaticano II de ser uma Igreja atenta às dores do mundo. Por coincidência, ou por inspiração do Espírito, o Papa Francisco reúne os cardeais das periferias, e que andam pelas periferias do mundo, na data da Páscoa de três dos mais importantes bispos da história da Igreja latino-americana: Hélder Câmara, José Maria Pires (o dom Zumbi) e Luciano Mendes de Almeida.

 

O legado histórico destes três bispos para a Igreja no Brasil e na América Latina hoje também ressoa a nível global. Segundo o padre Júlio Lancelotti, eles deixaram "o legado do amor aos pobres, da defesa intransigente da vida dos pobres, da vida austera. Os três viveram de maneira austera, para os pobres e com os pobres; são vozes proféticas, testemunhas do Evangelho. São o prefácio do pontificado do Papa Francisco".

 

Nesta página, recordaremos a trajetória dos três santos populares, e símbolos do modelo de Igreja que Francisco insiste em consolidar. Acesse por meio dos links abaixo as dezenas de reflexões publicadas pelo IHU.

 

Dom Hélder Câmara

 

Dom Hélder (Foto: Instituto Dom Hélder Câmara)

 

Dom Hélder Pessoa Câmara nasceu em FortalezaCeará, no ano de 1909, e foi arcebispo de Olinda e Recife. Antes de exercer a função de arcebispo em Pernambuco, foi bispo auxiliar na Arquidiocese do Rio de Janeiro. Também foi um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, atuou como secretário-geral da CNBB, ajudou na criação do Conselho Episcopal Latino-Americano - Celam e recebeu quatro indicações ao Prêmio Nobel da Paz. Faleceu em 1999.

 

Não há como mensurar a importância de Hélder Câmara para a história eclesial, mas pode se dizer que nos mais marcantes eventos da Igreja latino-americana no século XX, dom Hélder não apenas esteve presente, mas atuou com protagonismo. O Prof. Dr. Ivanir Rampon, autor de dois livros sobre dom Hélder, publicados em diferentes idiomas, elencou em entrevista para o IHU alguns desses importantes eventos:

 

"Dom Hélder marcou e marca a história da Igreja no Brasil por seus feitos, tais como:

→a renovação da Ação Católica;

→a viabilização do Ano Santo de 1950 no Brasil;

→por ser o fundador (e por anos brilhantes, secretário) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB;

→pela sua decisiva participação na fundação do Conselho Episcopal Latino-Americano - CELAM;

→pela organização do XXXVI Congresso Eucarístico Internacional no Rio de Janeiro (1955);

→por iniciar a Cruzada de São Sebastião e o Banco da Providência;

→por viabilizar o Movimento de Educação de Base, a Operação Esperança, o Encontro de Irmãos e a Comissão Justiça e Paz;

→por difundir o espírito do Concílio Vaticano II;

→pela ativa participação em Medellín, ajudando a Igreja de Cristo a ter a coragem profética de assumir a opção pelos pobres;

→por ter aprofundado Medellín em Puebla quando forças contrárias queriam dar marcha a ré;

→por ter ajudado a Igreja a abraçar a defesa dos direitos humanos e a causa da redemocratização do país.

→Estes são alguns feitos. Existem tantos outros".

 

Já no Concílio Vaticano II, Hélder exerceu um papel de destaque pela defesa da colegialidade episcopal, por aproximar os diálogos entre os países do Norte e Sul Global e por afirmar a opção pelos pobres, firmada sobretudo no Pacto das Catacumbas. Para Rampon, foram as opções pastorais e a profunda abertura ao Espírito Santo que uniu dom Helder e o Papa Paulo VI em uma amizade espiritual, mesmo estando em realidades tão distantes. Os dois haviam se conhecido no Congresso Internacional da Ação Católica, em 1950, ainda padre e bispo, respectivamente, e lá nasceu a semente da fundação da CNBB e das conferências episcopais pelo mundo, um passo anterior ao Vaticano II, em vista de uma Igreja descentralizada.

 

No Concílio, Hélder também teceu relações intelectuais com teólogos igualmente renomados, como Henri de Lubac e Yves Congar. A historiadora Lucy Pina Nieta escreveu em livro sobre a rede intelectual formada pelo "bispo das favelas": "Ele costumava reunir no episcopado intelectuais, teólogos e artistas para trocar opiniões e encontrar possíveis soluções". A autora revela que as leituras de dom Hélder ainda passavam por Sigmund Freud, Romano Guardini, Marthin Luther King Jr. e até estudos marxistas.

 

Mas a mais importante relação tecida por Hélder Câmara foi a que o converteu radicalmente à opção evangélica pelas minorias. O Prof. Dr. José Oscar Beozzo descreve em entrevista ao IHU os passos eclesiais do "bispinho". O teólogo relata que dom Hélder passou de uma proximidade à Liga Eleitoral Católica e ao integralismo brasileiro para uma oposição contundente, ousada e corajosa à ditadura militar, perseguido e acusado por suposto comunismo. Essa perseguição foi descrita em sua célebre frase, recordada pelo Papa Francisco no discurso para a Cúria Romana no Natal de 2020:

 

"Quando dou uma esmola ao pobre, me chamam de santo;

Quando pergunto por que ele é pobre, me chamam de comunista".

 

Beozzo descreveu que essa conversão se deu pelo contato próximo e direto com os trabalhadores e educadores por meio da Ação Católica e pela inserção direta nas comunidades pobres do Rio de Janeiro e Recife e Olinda. Hélder desenvolvia sua teologia e sua pastoralidade em sintonia com o espaço em que estava inserido, assim também intuía a formação de novo modelo de Igreja, como podemos associar à afirmação do teólogo Eduardo Hoornaert, em entrevista ao IHU para este artigo "para ele, a Igreja tinha de ser minoria, ou seja, vivida em comunidades espalhadas minoritariamente na grande sociedade, sem aspirações hegemônicas".

 

 

Apesar da sua morte em 27 de agosto de 1999, a vida de dom Hélder Câmara ressoa na Igreja do Brasil e do mundo. No consistório de hoje, se dá mais um passo para essa Igreja espalhada, das minorias abraâmicas. A sua beatificação está em andamento no Vaticano, mas entre o povo há muito tempo já é celebrado como santo.

 

 

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Dom Luciano Mendes de Almeida

 

Dom Luciano (Foto: Guaxupé)

 

Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida nasceu no Rio de Janeiro, no ano de 1930, e foi arcebispo de Mariana. Antes de exercer a função de arcebispo em Minas Gerais, foi bispo auxiliar na Arquidiocese de São Paulo. Ingressou na Companhia de Jesus em 1947, sendo ordenado padre no ano de 1958. Também atuou como secretário-geral e presidente da CNBB. Faleceu em 2006.

 

A vida de Dom Luciano foi marcada pela proximidade com os que sofrem. Quando estudava na Itália, fez pastoral junto aos encarcerados, em São Paulo se colocou a serviço nas periferias, e em Mariana junto às comunidades rurais mais empobrecidas. Pelo Celam, visitava com frequências os países da América Latina, passou por quase todos eles, também esteve em outros locais de conflitos como o Líbano. "Tudo isso me despertou muito a consciência da América Latina. É a situação de populações sofridas, esmagadas, incompreendidas, empobrecidas que também desperta uma grande vontade de trabalhar e ajudar. São populações, às vezes, indígenas e, às vezes, que passaram pela tristeza da escravidão", narrou dom Luciano em entrevista ao IHU, quando esteve em São Leopoldo em 2005.

 

 

Como afirma o teólogo Geraldo Trindade, dom Luciano experenciou um cristianismo de despojamento e de amor pelo outro que sofre. "Ele pode ser chamado o irmão do outro. Nem amigo, nem colega, nem conhecido, mas irmão, que sentiu a dor, que se aproximou, que viu, que sentiu e amou! A apóstolo do amor e da caridade mostra que só se é possível viver o cristianismo amando, só se pode ser cristão despojando-se de toda e qualquer vaidade!", escreve em artigo publicado pelo IHU.

 

Dom Hélder (à esquerda) e Dom Luciano (à direita). (Foto: Irmandade dos Mártires da Caminhada)

 

Ainda, em outro artigo, Trindade ressalta a afinidade espiritual que Luciano e Hélder Câmara mantinham na radicalidade e na ousadia evangélica: "dom Luciano e dom Hélder, souberam viver neste mundo a diaconia cristã, do serviço fraterno, alegre e impetuoso, pois eram tomados pela fé em Cristo e em seu projeto de salvação. Eles nos envergonham pela radicalidade e fidelidade ao Evangelho, pois sabiam que o mundo, sofrido, complexo, pluricultural, midiático e ideário, é espaço absoluto e completo da ação do evangelizador".

 

Essa ousadia de Luciano era complementada pelo seu estilo alegre e corajoso, confiante na missão do Evangelho e desafiador para enfrentar a morte e o sofrimento. "Ele tinha características próprias de alguém cheio da santidade de Deus, de desprendimento, de vida austera, de pobreza, compaixão, misericórdia, de suportar a dor e o sofrimento, de enfrentar os grandes desafios", afirmou o padre Júlio Lancelotti em entrevista ao IHU. Lancelotti foi educando de dom Luciano no seminário em São Paulo, depois de concluir a teologia e ser ordenado, acompanhou o bispo na criação da Pastoral do Menor, assim como por anos, dias e noites, assumiram o serviço da Pastoral do Povo de Rua na maior arquidiocese da América Latina.

 

 

Essa visão complexa das periferias brasileiras aos desafios da América Latina e do mundo, o faziam um erudita no meio eclesial, representando a instituição em organismos internacionais como a Unesco. Desta experiência do micro e macro, sintetizou na sua entrevista ao IHU o dever ser da Igreja deste século: "A Igreja não pode ser só uma igreja ocidental, uma igreja que não consegue abrir-se a outras civilizações". Ainda, entendia que a Igreja no momento era contraditória em suas realidades locais, pois "há populações numerosas passando fome e miséria em nações católicas, o que significa uma discordância entre a afirmação da realidade e a vivência da solidariedade".

 

A sua busca pela coerência evangélica se expressou em todos os serviços que dispôs na Igreja. "Ele tinha uma grande preocupação em ligar à Igreja ao poder social. Ele estava atento, o tempo todo, à defesa dos interesses do povo. Ele agia muito fortemente junto ao presidente da República e aos poderes constituídos para ver o que era melhor para as pessoas que lutavam em favor da justiça", conta a historiadora e poetisa Margarida Drumond de Assis, em entrevista ao IHU. Do alto escalão do poder social aos enfermos, dependentes químicos e moradores de rua, Luciano transitava entre os desiguais, com a opção preferencial determinada por aqueles que sofrem: a caminho e em retirada, prestando cuidado aos feridos, como em um hospital de campanha.

 

Jesuíta como Francisco, Luciano morreu em 27 de agosto de 2006, portanto, não vivenciou o atual pontificado. Mas há uma sintonia clarividente entre os dois, defensores da coerência cristã e promoteres de uma Igreja das periferias. Foi no pontificado de Francisco, em 2014, que o Vaticano deu início ao processo de beatificação de dom Luciano Mendes de Almeida.

 

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Dom José Maria Pires

 


Dom José Maria Pires, o dom Zumbi. Foto: CEBI

 

Dom José Maria Pires nasceu em Córregos, Minas Gerais, no ano de 1919, e foi arcebispo da Paraíba. Foi ordenado bispo de Araçuaí, Minas Gerais, em 1957, tornando-se o primeiro bispo negro do país. Em 1965 foi nomeado para a Arquidiocese da Paraíba, a qual administrou por 30 anos. Autor de diversos livros, recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Federal da Paraíba. Faleceu em 2017.

 

Dom José Maria Pires foi padre conciliar no Vaticano II, participando de quatro sessões. Suas posições no concílio foram de defesa da formação sacerdotal voltada à realidade e o retorno da Igreja ao espírito das primeiras comunidades cristãs, um fundamento para as Comunidades Eclesiais de Base - CEBs. Ele também foi o primeiro bispo a presidir a Missa dos Quilombos, escrita por Pedro Casaldáliga e musicada por Milton Nascimento. Segundo o teólogo belga José Comblin, dom Zumbi foi um dos bispos que mais lutou para trazer o Vaticano II para as conferências de Medellín, Puebla e se efetivar na Igreja latino-americana e brasileira.

 

 

O apelido de Dom Zumbi lhe foi dado por Casaldáliga, após ser apelidade de Dom Pelé, por ser um bispo negro. Zumbi, remetendo ao líder quilombola do século XVII, não expressava apenas a cor da pele, mas a resistência e a doação pela libertação dos negros e da construção de pequenas comunidades - em sua arquidiocese chegaram a existir mais de 400 CEBs. O educador e antropólogo Mauro Passos apresenta detalhes da jornada de Dom Zumbi e seus escritos: "em lugar de fazer, mobilizava os grupos e as pessoas para com isso multiplicar ações. Para ele, a pastoral dever ser um farol iluminando a vida", afirma em artigo publicado pelo IHU.

 

Dom Helder e Dom José (Foto: Reprodução / Facebook)

 

Passos relata como dom José sempre foi incisivo e respeitoso em suas asserções, não temia as represálias, mas falava com a convicção de que o discurso deve se aliar à prática, e a prática deve se atualizar com a realidade do povo. Essa também era a percepção que Hélder Câmara tinha, como afirmou em prefácio de um dos livros do seu companheiro arcebispo: "Dom José Maria vai às causas, vai às raízes... E fala claro, sem perder a serenidade, mas chamando as coisas pelos nomes. Quem quiser livrar-se de um Cristianismo desencarnado, quem quiser livrar-se de ensinamentos inodoros, incolores, pregados no vácuo, leia suas páginas". E assim escreveu, dom Zumbi, em uma carta pastoral do ano de 1975 sobre o conflito agrário no Nordeste:

 

"Hoje, o fraco a ser protegido não é só a criança que atravessa uma rua movimentada ou o órfão que passa fome ou a viúva sem teto... O fraco é o operário que vive com salário mínimo, o trabalhador forçado a emigrar da terra em que nasceu. O fraco a ser protegido é o lavrador de Alagamar, de Piacas e de tantos outros sítios ou fazendas invadidas pelo boi ou pela cana".

 

O bispo do povo negro sabia muito bem se localizar no tempo e espaço que o aggiornamento do Vaticano II exigia. Ao saber onde se colocar, sabia que a missão cristã era comunitária, e a Igreja assim deveria ser, portanto, se atualizar era saber se descentralizar, ir às margens, aos marginalizados pelo poder temporal. No Brasil a exploração colonial e capitalista da terra cercou latifúndios, escravizou negros, segregou povos. Em artigo publicado pelo IHU no dia da morte de dom Zumbi, o sociólogo e teólogo Fernando Altenmeyer, constata que "como discípulo de Cristo, sabe mostrar ainda hoje as riquezas do Concílio Vaticano II, como um projeto de vida. Uma Igreja que se distancie dos 'centros' e que se aproxime das 'margens' do mundo. Uma Igreja que não espere nem confie nos poderosos e nos senhores do mundo. Uma Igreja que deve continuar a cumprir a missão profética de proclamar os direitos dos oprimidos mesmo sabendo que sobre ela pesa a cólera dos governantes, pois só esta fé autêntica é que poderá salvar a pobres e ricos. Nesta Igreja não há lugar para acomodados e passivos". 

 

 

Em 2011, dom Zumbi comentou sobre a sua frustração com a falta de profetismo da Igreja do Brasil, embora tenha participado ativamente da CNBB até o fim da sua vida em 27 de agosto de 2017:

 

"No Brasil, é visível que a Igreja está perdendo o profetismo. É uma Igreja que hoje não está se arriscando, que não está conseguindo fazer gestos que possam estremecer as bases. Hoje, para mim, quem tem profetismo no Brasil são organizações como o MST (Movimento dos Sem Terra). Esse, sim! Apesar de ser um movimento dos pequenos, dos fracos, politicamente está conseguindo abalar as estruturas. A Igreja é que devia fazer isso, no aspecto da Boa Nova"

 

Segundo o padre Júlio Lancelotti, não há no Brasil hoje bispos com a estatura de dom Zumbi, dom Hélder ou dom Luciano, e talvez sequer reconheçam a importância destes. No entanto, o legado de todos esses sempre foi maior que as paredes eclesiais, como para dom Zumbi, doutor honoris causa pela Universidade Federal da Paraíba, que proferiu novamente um discurso profético na sua cerimônia:   

 

"Já é muito ter terra, ter pão e ter instrução. Mas não basta. Fomos feitos para viver em sociedade. Ninguém é feliz sozinho. Deus que é um só não é solitário, Ele subsiste na trindade de pessoas. A Universidade cumpre também essa função social enquanto não só reúne e desenvolve ramos diversos do saber, mas também forma as pessoas para viverem em sociedade na qual cada um deve contribuir de acordo com sua capacidade e tem direito de receber de acordo com sua necessidade. Realiza assim, o ideal da educação que consiste no desenvolvimento de todas as potencialidades do indivíduo".

 

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