O prefácio do pontificado de Francisco: três exemplos de vida consagrada aos pobres. Entrevista especial com Fernando Altemeyer Junior e Júlio Lancellotti

O legado dos arcebispos brasileiros Dom Helder Câmara, dom Luciano Mendes de Almeida e dom José Maria Pires é um mapa precioso para o futuro da Igreja

Dom Hélder (esquerda), Dom Luciano (centro) e Dom José | Arte: Wagner Azevedo - IHU

Por: Patricia Fachin e João Vitor Santos | 27 Agosto 2020

Hoje, 27-08-2020, é dia de rememorar a trajetória de vida de três bispos profetas: dom Hélder Câmara, dom Luciano Mendes de Almeida e dom José Maria Pires, homens que marcaram uma virada na história da Igreja brasileira, viveram plenamente o Evangelho e se empenharam em tornar a Igreja mais fiel àquela de Jesus: uma Igreja pobre para os pobres.

 

Ao relembrá-los em seus aniversários de morte, o teólogo Fernando Altemeyer Junior destaca que eles “forjaram um novo modo de ser bispo, sem prepotência nem clericalismo. Eram pais espirituais com jeito personalizado e único: um cearense de gestos largos (Hélder), o outro, carioca, com curvatura aos últimos e um sorriso cativante (Luciano), e um negro mineiro assumidamente patriarca das tradições de seu povo e de alegria exuberante (José)”. Esse trio de bispos que formaram gerações, assegura, “nos deixaram exemplos de vidas consagradas aos pobres em aliança indestrutível, pela lucidez da mente e de uma palavra evangélica transparente”.

 

Júlio Lancellotti, que participou com Dom Luciano Mendes de Almeida da fundamentação da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo nos anos 1980, afirma que “eles sintetizam a palavra de Jesus no Evangelho: ‘quem quiser ser grande, seja pequeno’. Por isso eles são grandes, porque foram pequenos”. Dom José Maria Pires, lembra, representou “a figura da resistência, a figura emblemática de um arcebispo negro, voltado para a causa da libertação do povo”. Já dom Hélder Câmara, menciona, ultrapassava a compreensão: “ele é o encantamento da vida, da luta”, enquanto Dom Luciano Mendes de Almeida “tinha características próprias de alguém cheio da santidade de Deus, de desprendimento, de vida austera, de pobreza, compaixão, misericórdia, de suportar a dor e o sofrimento, de enfrentar os grandes desafios”.

 

Na data de hoje, em que se celebra o 21º aniversário da morte de dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, o 14º aniversário da morte de dom Luciano Mendes de Almeida, arcebispo de Mariana, e o 3º aniversário da morte de dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba, a IHU On-Line entrevista o teólogo Fernando Altemeyer Junior, por e-mail, e o padre Júlio Lancellotti, por telefone. Eles relembram o legado dos três arcebispos como inspirações para enfrentarmos os desafios do presente, em diálogo com o pontificado de Francisco.

 

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Fernando Altmeyer (Foto: Franciscanos)

Fernando Altemeyer Junior é graduado em Filosofia, pela Faculdades Associadas do Ipiranga, e em Teologia, pela Faculdade de Teologia N. Sra. da Assunção. É mestre em Teologia e Ciências da Religião pela Universidade Católica de Louvain-La-Neuve, na Bélgica, e doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Atualmente, leciona no Departamento de Ciência da Religião da PUC-SP.

 

Júlio Lancellotti (Foto: Jornalistas Livres)

Júlio Renato Lancellotti é formado em Pedagogia e Teologia, foi professor primário, professor universitário, membro da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo e há mais de dez anos é o vigário episcopal do povo de rua. É pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, na Mooca, zona leste de São Paulo.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Nesta quinta-feira, 27-08-2020, recorda-se a memória de dom Hélder Pessoa Câmara, falecido em 1999, de dom Luciano Pedro Mendes de Almeida, falecido em 2006, e de dom José Maria Pires, falecido em 2017. Que lembranças o senhor tem deles?

Fernando Altemeyer Junior - De dom Hélder, uma frase sintética e lapidar quando telefonei para Recife e pedi uma mensagem para o aniversário de dom Paulo [Evaristo Arns], a quem ele carinhosamente chamava de seu sobrinho, e ele me disse com voz retumbante: “Diga a dom Paulo que a Eucaristia vai salvar o mundo”.

De dom Luciano, ainda recordo com emoção as lágrimas que ele derramou quando falou do funeral de dom [Óscar] Romero, em San Salvador, e de nos dizer, em março de 1980, que aquele momento foi um divisor de águas em sua vida.

De dom José, um suave puxão de orelhas em conferência magistral que ele pronunciou no Instituto Pio XI, na Lapa, junto aos salesianos, e eu perguntei algo sobre o período conciliar e errei, creio eu, o nome do presidente Juscelino, trocando datas e fatos, e ele, com noventa anos e memória acuradíssima, me fez ver com clareza o que eu tateava nas reminiscências. Ele falava do fato como se fosse naquele momento e visse os personagens à sua frente, mas haviam transcorrido 60 anos! Fiquei admirado com a suavidade da correção, a veracidade dos dados e a memória plena.

 

Júlio Lancellotti – Tanto dom Luciano quanto dom José Maria Pires e dom Hélder são contemporâneos de luta e da criação das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs. Dom José Maria Pires, que foi chamado de dom Zumbi, representa a figura da resistência, a figura emblemática de um arcebispo negro, voltado para a causa da libertação do povo, seja na luta dos quilombolas, seja na luta da libertação da população negra. Participei com ele da ordenação de um padre negro e aquela foi uma celebração de negritude, de dança e manifestação. Dom José não usava mitra, mas um “chapeuzinho” afro, lembrando o ancestral negro. Portanto, dom José Maria Pires é um sinal muito forte da inculturação. Para nós jovens padres daquela época, a figura de dom José representava a figura da luta e da resistência. Além disso, ele era muito paterno, interiorizado e voltado para o outro.

 

 

Dom Hélder Câmara

Dom Hélder ultrapassa a compreensão porque, para nós, ele é o encantamento da vida, da luta, da resistência. Acompanhamos muito a censura feita a dom Hélder. Lembro da primeira entrevista que ele concedeu à TV, quando foi autorizado a falar. Ele disse: “Estou falando tanto porque há muitos anos eu não podia falar no Brasil”. A entrevista foi ao ar tarde da noite e naquele dia eu nem dormi, esperando para ouvi-lo falar. Ele sempre falou para as pessoas do exterior e foi censurado em seu próprio país, de tal modo que os jornais brasileiros não podiam nem citar seu nome. Se alguém for pesquisar nos jornais quem era o arcebispo de Olinda e Recife, durante a ditadura militar, não vai saber, porque os jornais não podiam citar seu nome.

Mas em 1980, ocorreu algo interessante: o Brasil pôde ver dom Hélder na visita do papa João Paulo II ao Recife. Essa cena ficou marcada porque ninguém podia vê-lo, e era proibido mencioná-lo nos meios de comunicação, mas na visita do papa, o Brasil inteiro viu dom Hélder e viu igualmente o papa falar a ele: “Meu irmão, irmão dos pobres”.

 

 

Ainda sobre dom Hélder, é interessante mencionar uma situação que ocorreu quando ele veio participar de um congresso em São Paulo. Na ocasião, dom Luciano pediu a um amigo nosso que trabalhava na Pastoral do Menor e a mim, que fôssemos a

o aeroporto buscá-lo. Eu fui “feliz da vida” e no aeroporto todas as pessoas o chamavam. Quando estávamos na Av. Marginal Tietê, em direção ao congresso, disse a ele que naquele caminho morava uma pessoa que gostava demais dele: minha mãe. Ele quis visitá-la e o encontro entre eles foi um encantamento, conversaram um tempão, porque dom Hélder não tinha pressa no encontro com as pessoas.

 

Dom Hélder (Foto: Instituto Dom Hélder Câmara)

Ao final daquele congresso, eu estava com o livrinho da liturgia das horas e pedi para ele assiná-lo. Ele olhou para mim e disse que aquele era um livro santo e eu justifiquei que queria ter o nome dele nesse livro santo, então ele escreveu “Hélder”. Tenho esse livro de oração até hoje.

Eu o vi novamente em Olinda, no Ceará, na procissão da Semana Santa. Era impressionante ver como o povo olhava para ele; era um orador que arrebatava as pessoas, com aquele sotaque nordestino, envolvendo a todos. Dom Hélder, para nós, é um sinal de santidade, proximidade, amizade e amor aos pobres e aos mais sofridos. Também é emblemática a figura dele na Catedral, defendendo os meninos e as meninas de rua. Para nós, em São Paulo, era muito forte ver a relação entre dom Hélder e dom Paulo: dom Hélder dizia que dom Paulo era o sobrinho dele e dom Paulo dizia que dom Hélder era o seu tio; Dom Paulo sempre abraçava dom Hélder.

 

Dom Luciano Mendes de Almeida

 

Dom Luciano (Foto: Guaxupé)

 

A figura mais forte na minha vida foi dom Luciano Mendes de Almeida, que foi meu formador e me levou de volta à teologia. Em 1980, eu estava na Pastoral do Menor e acompanhava o trabalho com os irmãos de rua. Naquela ocasião, após a visita do papa João Paulo II ao Brasil, dom Luciano, que era secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB e bispo auxiliar de São Paulo, estava nos contando sobre a viagem em que acompanhou o papa – inclusive, ele, como secretário-geral, segundo o protocolo, não deveria acompanhar a viagem do papa, porque quem acompanhava era o presidente da CNBB –, sobre como era a rotina daquelas viagens, e nos contou sobre uma noite em que o papa João Paulo II entrou no quarto dele e perguntou quando ele iria ordenar o Júlio. Respondi a dom Luciano que o papa nem sabia da minha existência para fazer esta pergunta e ele me disse: “Mas eu estou te perguntando”. Fiquei impactado e retomei meus estudos teológicos.

Antes disso, eu já tinha passado pelo seminário, havia feito o noviciado com os agostinianos, mas o mestre me mandou embora porque eu não servia para a vida religiosa, pois eu tinha um espírito muito livre e questionador. Dom Luciano conhecia minha vida, me provocou e foi por isso que eu retornei. Naquela época, eu já tinha concluído a faculdade de pedagogia e havia trabalhado como professor, mas optei por ficar na Pastoral do Menor, com a equipe de dom Luciano. Eu também acompanhava os trabalhos com o povo de rua, embora não existisse ainda uma pastoral para a população de rua. Quem criou essa pastoral foi dom Paulo, que me nomeou vigário episcopal para a população de rua.

Sempre tive muita proximidade com dom Luciano, no sentido de conhecer seu pensamento, suas atitudes, seus sentimentos, seu testemunho imensamente forte. Dom Luciano tinha características próprias de alguém cheio da santidade de Deus, de desprendimento, de vida austera, de pobreza, compaixão, misericórdia, de suportar a dor e o sofrimento, de enfrentar os grandes desafios. Imagine que quando o papa [João Paulo II] veio pela primeira vez ao Brasil, o presidente era [João] Figueiredo, ou seja, foi um momento difícil e desafiador, e víamos em dom Luciano uma pessoa livre, voltada para a justiça, para a defesa dos índios, dos negros, dos vulneráveis. Ele tinha proximidade com o Movimento dos Sem Terra, com a Via Campesina, com o Conselho Indigenista Missionário - Cimi. Acompanhamos toda a luta de dom Luciano pelas reservas indígenas, como a Raposa Serra do Sol. Foi uma luta muito pessoal e solitária.

 

Dom Luciano sempre foi muito respeitado, inclusive por aqueles que se opunham a ele. Os outros bispos faziam reverência diante da espiritualidade, santidade e autoridade moral dele. Eu andei com ele nas ruas, à noite, atrás das pessoas que estavam abandonadas. Lembro particularmente de um morador de rua que dom Luciano acompanhava. Num determinado dia, ele me telefonou de Brasília, pedindo que eu fosse ao Instituto Médico Legal - IML localizar o corpo dessa pessoa. Lembro de entrar lá e ver muitos corpos expostos, esperando para serem sepultados. Dirigi meu olhar para aquele que eu estava procurando e depois fiquei aguardando dom Luciano chegar. Quando ele chegou, perguntei se gostaria de ver o corpo antes de ele ser colocado no caixão e sabe o que ele fez? Benzeu todos os corpos que estavam no IML; fez uma oração para cada um, como se cada um fosse único. Depois, fomos para o cemitério, só nós dois, carregamos o caixão, e a roupa dele ficou marrom de andar no barro.

 

Dom Luciano (Foto: Arquidiocese de SP)

 

Numa outra ocasião, ele estava num ônibus e viu uma mulher passando mal. Ela estava em trabalho de parto e ele a levou para a maternidade. No dia seguinte, voltou até lá com um ramo de flores para dar a essa mulher que conheceu na rua. O médico do hospital disse a ele: parabéns, o seu filho nasceu (risos). Outra noite, eu já estava deitado e ele me ligou, dizendo que tinha uma pessoa caída na praça e perguntou se eu poderia levá-la para o hospital. Então, as coisas que dom Luciano fazia eram impressionantes. Ele telefonava, procurava as pessoas, andava com um monte de ficha de telefone no bolso e dava alguns telefonemas.

Um dia, eu disse a ele que precisávamos marcar a data da minha ordenação. Ele abriu a agenda e disse: esteja na minha casa em 1º de janeiro, às 7h da manhã (risos), e foi assim que marquei a minha ordenação. As histórias de dom Luciano são inúmeras. Foi uma alegria conviver com ele e, inclusive, depus, mais tarde, no processo de beatificação dele. Além disso, dom Luciano era um intelectual refinado: sua capacidade de síntese, de análise e raciocínio era imbatível.

 

IHU On-Line - Qual é o legado e a atualidade do trabalho desenvolvido por dom Hélder, dom Luciano e dom José para a Igreja brasileira e o Brasil de modo geral? Que traços destes legados são fundamentais de serem recordados hoje, considerando o atual momento que vivemos?

Fernando Altemeyer Junior - Esse trio de bispos profetas e de inteligência genial nos deixou exemplos de vidas consagradas aos pobres em aliança indestrutível, pela lucidez da mente e de uma palavra evangélica transparente.

Forjaram um novo modo de ser bispo, sem prepotência nem clericalismo. Eram pais espirituais com jeito personalizado e único: um cearense de gestos largos (Hélder), o outro carioca, com curvatura aos últimos e um sorriso cativante (Luciano), e um negro mineiro assumidamente patriarca das tradições de seu povo e de alegria exuberante (José).

Apesar de duramente perseguidos pelos militares na ditadura e pelos latifundiários, sempre mantiveram a serenidade e paz interior. Diria que unidos, deixaram o legado do diálogo e da fidelidade aos vulneráveis.

 

 

Pensando em nossos tempos de obscurantismo e golpes contra a democracia, cada um deles é paradigma de homens forjados na liberdade, na fé profunda em Deus e no respeito aos outros, de todos os credos e etnias. Penso os três bispos como homens de pés desnudos e corações aquecidos, ou seja, santos. Isso me fez recordar os três lemas episcopais que conformam belo programa eclesial. O slogan de dom Hélder: In Manus Tuas (Nas tuas mãos), o de dom Luciano Pedro Mendes de Almeida: In nomine Iesu (Em nome de Jesus), e o de dom José Maria Pires: Scientiam Salutis (A ciência da Salvação).

 

Dom José (Foto: Reprodução | Youtube)

Júlio Lancellotti – O legado do amor aos pobres, da defesa intransigente da vida dos pobres, da vida austera. Os três viveram de maneira austera, para os pobres e com os pobres; são vozes proféticas, testemunhas do Evangelho. Para mim, são três santos: um negro, um nordestino e um carioca-paulista, um grande intelectual. Dom Luciano falava francês perfeitamente, discursou na Unesco, em Paris, falava italiano sonoro, espanhol, ou seja, um homem poliglota e tinha um conhecimento invejável em filosofia e em teologia.

Eles são três grandes legados de fidelidade, de amor ao Evangelho, aos pobres. Abriram mão de tudo e foram punidos pela história, pela ditadura, e até mesmo incompreendidos dentro da Igreja.

 

 

IHU On-Line - De que modo a visão de Igreja de dom Hélder, dom Luciano e dom José dialoga com o pontificado do papa Francisco? Entre as causas abraçadas por eles, quais reaparecem no pontificado de Francisco?

Fernando Altemeyer Junior – Hélder, como participante ativo em todas as aulas conciliares do Vaticano II sem nunca ter tomado o microfone, Luciano, como a alma mater do documento da Conferência de Puebla, e dom José, como um novo Zumbi dos Palmares, expressam esse modo de ser Igreja das pequenas comunidades eclesiais movidas pela palavra e pelo serviço. Foram os três como “aperitivos” suculentos para a degustação do papa Francisco, e ele próprio é uma nova apresentação do saudoso e santo papa João XXIII.

 

A causa dos indígenas e dos povos aborígenes queimava o coração de Luciano e move as entranhas de Francisco. A reforma profunda da Cúria em favor da colegialidade foi a profecia permanente de Hélder e a tarefa diária de Francisco. E o enraizamento de José Maria na fé popular e mariana faz compreender a misericórdia como motor do papa Francisco. Os três bispos ao ficarem, em seu tempo histórico, ao lado dos favelados e gente dos mocambos (Hélder), dos menores e do povo de rua (Luciano) e do povo negro (José), espelharam, como anjos guardiães, a escolha estratégica do atual bispo de Roma ao defender os refugiados e imigrantes.

 

 

Júlio Lancellotti – O amor aos pobres e a dedicação aos pobres. O papa Francisco, por ser jesuíta também, lembra muito dom Luciano nas atitudes. Uma vez perguntaram para dom Luciano qual era a pessoa mais importante para ele e a resposta foi: a pessoa mais importante para mim é aquela com quem estou falando. Esse princípio de pessoa, de personalidade, percebemos também no papa Francisco. Então, dom Hélder, dom Luciano e dom José são o prefácio do pontificado de Francisco.

 

Dom José (Foto: Arquidiocese da Paraíba)

IHU On-Line - Com a crise pandêmica, volta à pauta do dia o problema das desigualdades, dos desfavorecidos, do sofrimento humano. Como os ensinamentos e a prática de dom Hélder, dom Luciano e dom José podem nos inspirar a enfrentar as dificuldades particulares deste momento?

Fernando Altemeyer Junior - Hélder ensinou vivendo em casa simples nos fundos de uma Igreja; Luciano ofertando sapatos, roupas, dinheiro, enfim cada minuto de sua vida aos pequeninos que o buscavam como barco salva-vidas; e José, peregrinando pelo Brasil por anos como pregador esmerado e místico. Esses são o rosto necessário para uma igreja despojada. Diante da atual crise dos clérigos aficionados e movidos pelo poder e pelo dinheiro, esses três bispos pobres entre os pobres traziam o maior tesouro de uma vocação episcopal: dar a vida por amor. Amor a Deus, amor ao Evangelho e amor profundo à liturgia.

A hierarquia precisa refazer a aliança com os pobres e romper com os opressores e grupos que alienam os pobres, mantendo-os no colonialismo, na submissão e na misoginia.

 

Júlio Lancellotti – Acredito que os três bispos, num momento como este, estariam junto do povo. Não imagino dom Luciano fechado num lugar; ele estaria no meio do povo, assim como fizeram São Luís Gonzaga, São Carlos Borromeu, Santa Catarina de Siena e todos os santos que tiveram que enfrentar pestes e epidemias, como São Vicente de Paulo.

Acredito que eles estão no lugar que Jesus queria que estivessem. Dom Hélder, dom José e dom Luciano sempre ficaram no lugar em que Jesus estaria; o lugar deles é o mesmo lugar onde Jesus estaria. Este é o grande legado que eles deixam: foram inabaláveis na sua opção, na sua decisão de estar junto aos fracos, aos que perdem, aos que são pisados e oprimidos. Eles conversavam com todos, mas sempre com o pé no chão, onde vivem os pobres.

 

 

Dom Hélder (Foto: Instituto Dom Hélder Câmara)

IHU On-Line - Em que medida a Igreja no Brasil hoje se alinha com a concepção de Igreja desses três bispos?

Fernando Altemeyer Junior - Eu diria que no momento em que os bispos do Brasil assumirem a medida ou régua de vida desses três místicos, Hélder, Luciano e José, teremos condições de contemplar novamente uma Igreja distante dos poderosos, encarnando-se como Templo do Espírito Santo na vida das imensas massas periféricas, dando testemunho da paz e de que tudo precisa ser feito em nome de Jesus. A bússola é Cristo, o vento é do Espírito, a meta é o Pai; e esses três bispos são mapas preciosos para a navegação. Sem profetas nem memória, a Igreja fala de estruturas, planos e poder, olvidando a graça, a partilha e o pão. Santos bispos Hélder, Luciano e José, orate pro nobis [orai por nós].

 

 

Júlio Lancellotti – Não temos uma medida para isso, mas a Igreja é multiclassista, ou seja, perpassa todas as classes, assim como o clero e o episcopado também. Então, vivemos um momento em que os grandes sinais diminuíram muito. Hoje, não acredito que em nosso episcopado tenhamos pessoas da estatura de dom José, dom Hélder e dom Luciano. Eles são grandes demais, porque se fizeram pequenos demais. Eles foram exageradamente compassivos e misericordiosos, por isso é muito difícil que haja comparação.

O nosso episcopado e o nosso clero nem se imaginam da estatura deles; eles sintetizam a palavra de Jesus no Evangelho: quem quiser ser grande, seja pequeno. Por isso eles são grandes, porque foram pequenos. Na nossa memória nunca vai faltar o H de Hélder, o J de José Maria Pires e o L de Luciano. Eles sempre estarão presentes; são inesquecíveis e viverão para sempre em nós.

 

Dom Hélder (à esquerda) e Dom Luciano (à esquerda). (Foto: Irmandade dos Mártires da Caminhada)

Dom Luciano e Dom Hélder (Arte: IHU)

Dom Hélder e Dom Luciano (Fotos: Reprodução e Diocese de Mariana)

 

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