A grande prova. Artigo de Ademir Guedes Azevedo

Reprodução da obra de Caravaggio, O Sacrifício de Isaque | Fonte: Wikimedia Commons

26 Agosto 2022

 

"Os momentos áureos da vida consagrada surgem quando homens e mulheres abnegados nadam contra a maré e se nutrem do desejo de entregar-se a Deus, mesmo nas noites mais densas de suas vidas", escreve Ademir Guedes Azevedo, padre, missionário passionista e mestre em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma.

 

Eis o artigo. 

 

Uma característica fundamental da época atual é a provisoriedade e isso se reflete em vários âmbitos da vida. Quase não se tem mais certezas sólidas e um niilismo crescente se verifica em diversos comportamentos, seja em âmbito social ou pessoal. A base filosófica da sociedade ocidental foi duramente golpeada e toda pretensão de absoluto é vista sob suspeita. Platão e Parmênides não suportariam viver nessa época marcada por uma excessiva distração, na qual a contemplação das verdades imutáveis soa como uma melodia insuportável aos tímpanos.

 

A consequência de tudo isso é viver como se nada valesse a pena. O desafio que resta, portanto, é o de encontrar um sentido que dê razões para o valor supremo da vida, ensinando-nos a seguir em frente, custe o que custar. Isso pode ser possível a partir de uma leitura judaica, mais do que meramente filosófica. A questão que mais nos desafia neste momento confuso da história pode ser posta assim: como lidar com os sintomas da provisoriedade e driblar o seu rotineiro pessimismo que nos faz cair no niilismo? Algumas figuras da literatura bíblica podem ser oportunas, pois elas nos desafiam a realizarmos a grande prova, ou seja, pela fé enxergamos a vida a partir do Mistério.

 

Neste breve texto limito-me apenas à figura de Abraão. Inicialmente, há algo em sua vida que parece muito com o que também hoje testemunhamos: o falso conceito de felicidade. Muitas pessoas insistem que ser feliz é conseguir realizações e reconhecimento. Mas isso é uma armadilha de nossa provisoriedade que não se contenta com aquilo que somos. O fato de Deus ter dado ao patriarca Abraão uma descendência, representada em Isaque, não significa ainda o estágio da fé, pois fé não é uma troca: faça isso e eu te dou aquilo. Abraão deixa sua terra e segue em frente e porque ele sai, Deus lhe dá Isaac. Mas isso é apenas desempenho humano. Nada de fé! Este comportamento está muito presente em nossas sociedades: muito esforço investido para conseguirmos chegar ao ápice de nossos sonhos, no entanto, essa corrida nos deprime e nos cansa e, ao final do dia, raramente nos sentimos felizes.

 

Este sintoma nos deixa ansiosos, frenéticos, angustiados e insatisfeitos, visto que há uma sociedade que sempre nos cobra desempenho e eficiência de nossa parte. E ai de nós se não nos enquadrarmos! Neste sentido, resta-nos exercitarmos outra lógica, aquela marcada pela grande prova. Quando Deus pede o sacrifício de Isaque, parece desmoronar o mundo do patriarca, no entanto, ele se põe a caminho de novo, mas não mais para lograr realizações pessoais, mas para obedecer a Deus que lhe pede uma prova. Isso sim é fé! Abraão entra na noite de sua alma e, sem desespero, abandona-se e não faz mais nenhuma relação de troca com Deus, pois não lhe pede mais nada, entra na lógica do dom.

 

O desempenho de nossas sociedades entra em pane quando aquela lógica neoliberal, uma mão lava a outra, não é o suficiente para explicar situações que acontecem conosco. É justamente aqui que a dimensão do Mistério se torna relevante. E nenhuma técnica moderna pode manipulá-la ao seu bel-prazer. Por isso, há momentos na vida que é necessário vivermos a grande prova, ou seja, outro modo de encarar a vida a partir do dom e da obediência a Deus, como nos ensina a experiência de Abraão.

 

Faço aqui uma menção ao mundo ao qual pertenço, a Vida Religiosa Consagrada. Muito desempenho e técnica na vida religiosa nos adoecem e nos afastam do Mistério, tornando-nos profissionais do sagrado, não homens de mística. Nem sempre tudo tem que ser garantido em nossas comunidades e nem tudo deveria ser tão bem claro. É preciso aprendermos a vivermos com uma reserva de dúvidas, pois a fé nos ensina a elaborarmos perguntas. A Vida Religiosa é a serva do Mistério e sua obediência ao mesmo deveria denunciar o ritmo de vida que pretende explorar tudo com suas técnicas, esgotando o máximo a reserva de dom e de fé.

 

A desculpa de que um bom patrimônio é necessário ter, pois ajuda no apostolado, é falacioso pois o que colocamos de melhor a serviço não são coisas, mas o nosso ser, a nossa própria vida. Basta um olhar atento à história e descobriremos que os momentos áureos da vida consagrada surgem quando homens e mulheres abnegados nadam contra a maré e se nutrem do desejo de entregar-se a Deus, mesmo nas noites mais densas de suas vidas. Oxalá possamos com eles aprender também a vivermos a grande prova que Deus nos pede.

 

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