A vida consagrada vale a pena?

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11 Janeiro 2022

 

"A vida religiosa consagrada, como toda vocação específica, tem suas luzes e sombras. A sua melodia torna-se afinada e bela aos ouvidos de nossos contemporâneos quando não se perde no superficial e se mantém obcecada a sua inspiração original", escreve Ademir Guedes Azevedo, padre, missionário passionista e mestre em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma.

 

Eis o artigo. 

 

Justo no dia em que completo dez anos de profissão religiosa na Congregação da Paixão de Jesus Cristo (Passionistas) me vem em mente este tema. Desde aquele 08 de janeiro de 2012 pude experimentar muitos momentos de alegria e de fraternidade intensa nas comunidades que morei. Mas também vivi algumas situações que me fazem desconfiar de que algo precisa melhorar para sermos mais fiéis à forma original da vida consagrada.

A vida religiosa consagrada, como toda vocação específica, tem suas luzes e sombras. A sua melodia torna-se afinada e bela aos ouvidos de nossos contemporâneos quando não se perde no superficial e se mantém obcecada a sua inspiração original: seguir radicalmente a Jesus com uma fé que espera contra toda esperança (cf. Rm 4,18). A natureza de tal fé julgo ser importante, pois sem a mesma é impossível perseverar no contexto de desafios hodiernos que enfrentamos.

Se é o seguimento de Jesus a coisa mais importante para a vida consagrada, então um rápido olhar sobre o modo de ser de Jesus, ou seja, a sua paixão por Deus e pelo seu Reino, descortinam todo o sentido que revigora a vida consagrada hoje. O que é mesmo seguimento para Jesus? Vejamos.

Alguns exegetas concordam que, numa determinada fase de sua vida, Jesus encantou-se pelo grupo de João Batista. O primado de Deus, pregado por João, exerce certo fascínio. A sua radicalidade em denunciar as injustiças e defender a urgência da conversão eram práticas certamente admiradas pelo jovem galileu. No entanto, o juízo iminente de Deus, o estilo austero do Batista, o deserto como lugar penitencial e o batismo por meio das águas certamente se chocam com a nova forma de viver o seguimento que Jesus instaurará. Justo aqui, podemos falar da originalidade da vida consagrada. Tal originalidade reside no modo de ser do nazareno, não no ascetismo e nas outras formas de vida penitencial (como aquela dos essênios), mas unicamente no estilo comensal de Jesus (sua convivialidade com os pecadores e o seu doar-se desmedido aqueles que em nada serviam aos olhos de sua sociedade). O estilo alegre de Jesus diverge da pregação rigorosa do Batista e se expande na sua compaixão sem igual, na sua paixão incontrolável no Reino de Deus como uma Boa Notícia, não como um anúncio amargo que assusta e impõe medo aos seus ouvintes.

Além do mais, essa ruptura com o Batista, põe Jesus fora da religião reinante que exigia sacrifícios e atos legalistas para ter acesso a Deus. Nesse sentido, Jesus é um homem secularizado, pois prega a partir de um inserimento na vida cotidiana, sem pertencer a nenhuma corrente sacerdotal e como leigo fiel à vontade do Pai. O mestre da Galileia está voltado para o mundo e suas vicissitudes (também o mistério de sua encarnação aponta para isso), enquanto a religião de Israel está voltada para o templo, onde reside o santo dos santos. Como homem secularizado, Jesus não se apega a um estilo estreito de formas religiosas e sacrificiais, mas dedica-se a uma itinerância desprendida e livre, sempre fiel a um absoluto que transborda Graça e misericórdia. Neste sentido, a vida consagrada está já presente no modo de ser secularizado de Jesus. Ali reside o seu DNA original, o seu germe (estágio inicial).

É exatamente esta sutil distância-rompimento de Jesus para com os elementos levíticos que sustentam a religião oficial de Israel que reside a originalidade daquilo que será, na igreja primitiva do séc. III d.C., a vida consagrada. Desta forma, por ser totalmente cristológica, vivendo o seguimento aos moldes de Jesus, ou seja, a partir de um estilo laico e secularizado (com o rosto voltado para o mundo, não embreada em estruturas religiosas rituais e não confinada em templos, como os sacerdotes da tribo de Levi faziam), é que a vida consagrada torna-se um sinal autêntico da originalidade do Evangelho.

Todavia a história da Igreja revela em seu desenvolvimento esta tensão entre o retorno de uma religião levítica e aquela liberdade secularizada e laica inaugurada na vida de Jesus de Nazaré. Tome-se, por exemplo, o Sec. III da era cristã. Santo Hipólito de Roma compilou inúmeras cláusulas que deram forma aos vários rituais litúrgicos, marcados pela clareza das fórmulas e rubricas que universalizaram o rito romano. Sem dúvidas, isso trouxe uma unidade no modo de celebrar a fé, porém aquela diversidade de celebrar presente nas várias comunidades nascentes, não foram colocadas em risco? Não é o excesso de normas e rubricas que marcavam também a liturgia dos sacerdotes da tribo de Levi? Não será esse mergulho em estruturas rituais que dará à luz aquilo que hoje o Papa Francisco chama de clericalismo, o qual engessa a liberdade do Espírito e nos engaiola numa Igreja centrada em si mesma? Mas também foi justo neste mesmo século, por exemplo, que surgiu Antão, buscando a liberdade do seguimento numa solidão que gerava fascínio por meio de seu testemunho. Portanto, está claro que a vida religiosa, e a história das Ordens e Congregações mostrará isso, será a responsável para recordar a Igreja a sempre retomar aquela forma cristalina de vida secularizada e laica que Jesus sempre viveu em seu ministério.

Então, vale a pena a vida consagrada? Com certeza, desde que não se distancie da sua genuína origem: a vida e a missão de Jesus, um leigo secularizado.

 

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