“O capitalismo é um parasita da religião cristã”. Entrevista com Stéphane Lavignotte

Fonte: Pixnio

19 Agosto 2022

 

Ligação entre fé e ecologia, colapso, fim do capitalismo... Stéphane Lavignotte, ativista ambiental que virou pastor é o convidado de Grands Entretiens de Reporterre.

 

Ativista ambiental no Europe Écologie-Les Verts (EELV), Stéphane Lavignotte tornou-se pastor e agora coordena a Casa Aberta de Montreuil. Acaba de publicar L’Écologie, champ de bataille théologique (A ecologia, campo de batalha teológico).

 

A entrevista é de Hervé Kempf, publicada por Reporterre, 16-08-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Stéphane Lavignotte, você acredita em Deus. O que significa “crer”?

 

Eu “creio”, isso significa dizer que não tenho certeza, que duvido, que sinto as coisas. Crer começa por estar diante de uma paisagem, e ser dominado pela grandeza, pela imensidão, pela profundidade, e dizer a si mesmo: “há algo em vez de nada”. É um sentimento de êxtase, mas também um sentimento íntimo, o sentimento de não estar sozinho, que mesmo quando não há alguém próximo, há um ombro em que posso apoiar minha cabeça.

 

Você cresceu em um ambiente ecológico e sua fé veio quando você tinha 25 ou 30 anos. O que aconteceu?

 

Venho de uma família de católicos de Lorrains, de trabalhadores do vale de Fensch, um polo industrial siderúrgico e químico. Do lado paterno, eram protestantes, mas abandonaram a fé depois do Maio de 68. No final dos anos 1990, eu era ativista quando nasceu minha segunda filha. Senti um vazio. Havia os programas dos Verdes, mas faltava-lhes uma base. E em relação à minha filha, eu me perguntava o que eu passaria para ela. Comecei a ler o Novo Testamento, a ler os textos do filósofo protestante Olivier Abel, a ler o jornal [protestante] Réforme.

 

E depois, em agosto de 1997, um grupo de imigrantes indocumentados ocupou o templo de Batignolles. Fui ativista do coletivo cidadão que os acompanhava. Pela primeira vez na minha vida, coloquei os pés em um templo. A comunidade protestante disse: “Vocês não estão ocupando este espaço; somos nós que os acolhemos. Porque a única coisa sagrada não é esta construção, mas a dignidade de vocês”. Isso me impactou profundamente. E esse foi o início de uma jornada que me levou a me tornar pastor. Sou pastor da Missão Popular, uma rede de centros sociais, onde há uma dimensão de trabalho social, de compromisso militante com questões internacionais, migrantes indocumentados, nos bairros populares.

 

Qual é a conexão entre fé, religião e ecologia?

 

Eu cresci em um ambiente ecologista, na década de 1970. E depois houve essa descoberta da fé. Foi em parte uma carência do lado da ecologia que me fez ir para a fé. E então havia duas outras coisas. Em primeiro lugar, uma maneira de pensar mais profundamente as questões da ecologia, procurando responsabilidades para a crise ecológica pelo lado da religião, mas também descobrindo que havia muito tempo, provavelmente desde o início do cristianismo, as pessoas que buscavam uma outra relação com a natureza que não a relação predatória da sociedade atual.

 

Depois, há o ativismo ecologista. Ele estava preso ao nível do cérebro e dos braços, ou seja, do programa e da ação. Faltou a dimensão da sensibilidade, e provavelmente o aprendizado dessa coisa bizarra que é a oração, que eu pratico de maneira um tanto herética: tentar entrar em contato com outras dimensões que não as visíveis e materiais.

 

Como uma forma de meditação?

 

Sim, tem uma proximidade com a meditação. Na Casa Aberta, um dos locais da Missão Popular, fazemos caminhadas meditativas: começamos em silêncio, apenas ouvindo os sons da cidade. Notamos que os carros ocupam muito espaço na paisagem sonora, mas que os pássaros conseguem ser ouvidos apesar de tudo. E depois, gradativamente, temos momentos de meditação, nos concentramos plenamente na nossa caminhada, chegamos em parques e ali a meditação se concentra na natureza, em um lago, em um texto bíblico ou outro. Sim, há semelhanças com a meditação, uma tradição trazida de certa forma pela ecologia, em parte pelo encontro com o budismo.

 

A palavra “oração” não designa uma atenção ao mundo?

 

É uma atenção através da sensibilidade, uma forma de agradecer pelo que foi recebido. Gosto muito desta parte do Pai Nosso que diz: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Eu o entendo como: estar atento a essa coisa simples que é o pão que terei hoje, e que talvez se manifeste por meio de um encontro, de uma parada diante de algo que vejo e que não via antes, etc. Torno-me atento às situações do mundo que merecem meu engajamento.

 

No livro, você cita Walter Benjamin que escreveu que o cristianismo se transformou no capitalismo. O que ele quis dizer?

 

Que o capitalismo é um parasita da religião cristã. Ele aproveitou certos aspectos da religião cristã, por exemplo, o fato de o protestantismo e parte do catolicismo desenvolverem um ascetismo da economia. Mas, ao mesmo tempo, desenvolvemos uma ética do trabalho. Deus quer que minha vocação, que eu recebo, seja torná-la mais bonita. E isso infelizmente requer uma ética do trabalho. Assim, poupar de um lado e trabalhar do outro dá início ao capitalismo. Para Benjamin, o capitalismo é um culto sem tempo morto, um culto à produtividade e ao lucro.

 

Uma ideia forte do seu livro é que os “teologemas” são a base de algumas das nossas visões de mundo. Embora acreditemos ser laicos, desvinculados da religião, de fato existem muitas ideias que vieram da religião e que continuam a marcar nosso território mental.

 

Sim, completamente. O exemplo mais fácil de entender isso é a nossa relação com o tempo, que também desempenha um papel na crise ecológica. A Antiguidade teve um tempo circular, que mudava muito pouco; depois o cristianismo trouxe o paraíso, o fim dos tempos, um reino de justiça e paz. Tornou-se uma flecha do tempo, que nos leva de uma vida difícil hoje, para uma que será positiva amanhã. Também vemos isso no marxismo: haverá a Grande Noite, a Revolução, e teremos uma sociedade de justiça, de paz – que é muito semelhante ao reino cristão ou judaico.

 

Se chegarmos a 2°C de aquecimento em relação à era pré-industrial, haverá uma mudança significativa. A flecha do tempo não está onipresente nesse início de milênio?

 

Na verdade, é uma ruptura. Podemos ver nos debates ecológicos o duplo sentido da palavra “apocalipse”: ou é a catástrofe, ou é outra coisa. “Apocalipse”, em grego, significa revelação. A ecologia é o momento em que uma verdade é revelada, coloca-se o sentido profundo do momento que estamos vivendo. Devemos continuar a produção, o consumo, o CO2, a exploração dos países do Sul, as guerras? Ou bifurcar para uma relação comigo mesmo e com os outros seres vivos?

 

Estamos em um momento decisivo, histórico, em torno da situação ecológica, tal que a humanidade descobrirá que é necessário viver de maneira sóbria?

 

O modelo circular pode ser extremamente conservador, mas tem a vantagem de pensar presunçosamente: “façamos com o que já existe”. O modelo da flecha do tempo tem a desvantagem de sempre perseguir algo. Mas ele tem essa dimensão de querer que as coisas sejam melhores amanhã. Na minha opinião, a ideia não é avançar para mais, mas para melhor.

 

Você concorda com a ideia do colapso?

 

Acredito mais na implosão do que no colapso. Temo que o sistema capitalista seja capaz de se adaptar a muitas coisas. Receio que o sistema não entre em colapso, ou seja, que reaja pela autoridade, pela violência. Podemos estar em colapso, a biodiversidade está em colapso, há muitos migrantes em situações muito difíceis, mas o sistema como tal pode não entrar em colapso.

 

Neste caso, o que fazer?

 

Não salvaremos o planeta sem derrubar o capitalismo. E, ao mesmo tempo, não temos a relação de forças favorável para derrubá-lo. É uma equação insolúvel. Em uma passagem dos Evangelhos, as pessoas mostram a Jesus os sinais do fim dos tempos, as estrelas que caem. Jesus diz: “Parem de olhar para a estrela cadente, olhem para a figueira que, com a primavera, floresce novamente”. Não devemos ter os olhos fascinados pelas catástrofes, devemos olhar para as alternativas e para o que está nascendo. Devemos tentar derrubar o capitalismo através do compromisso político, e depois mudar os estilos de vida, com alimentos orgânicos, as Amap (Associação para conservação da agricultura camponesa), o ciclismo, etc. com o compromisso associativo, a experimentação. E depois a educação das crianças, ensinando-lhes os valores corretos, também é importante.

 

Por que a ecologia é um “campo de batalha teológico”, como você diz no seu livro?

 

Os teologemas, esses conceitos religiosos que estão na base das nossas representações do mundo, não vão todos na mesma direção. Com esses teologemas há uma permanente batalha do imaginário, das interpretações. O que, no nosso imaginário, deve ser visado para evitar a crise ecológica? Que recursos existem para criar um imaginário alternativo ao consumo e ao capitalismo? É um convite para se engajar, tanto na luta política das estruturas, quanto na luta de experimentações, a luta do imaginário, a luta cultural, para transformar nossas visões de mundo.

 

Em parte do movimento ecologista, sentimos um renascimento da espiritualidade: penso na Pachamama da América Latina, no interesse pelo xamanismo, no fato do Extinction Rebellion assumir o lugar da espiritualidade em sua carta, nos rituais defendidos pela ecofeminista Starhawk. Como você interpreta esse florescimento de interesses?

 

Como o fato de termos deixado de nos deixar impressionar com a ideia de que a laicidade é inimiga da religião, quando se trata de criar um espaço comum, onde todos possam vir com o que são e trazer os seus próprios recursos para o espaço comum. Deixamos de nos impressionar com o péssimo livro de Luc Ferry, que queria fazer passar todos os ambientalistas como fascistas. Durante muito tempo, os ecologistas não entenderam o que significava a ecologia profunda e não liam Arne Naess. Naess dizia que, para não ficar numa ecologia superficial, a ecologia profunda deve levar em conta as dimensões dos valores e do imaginário. Assim, graças em particular ao que vem dos países do Sul, a um desvio pelo budismo, a Starhawk e à tradição das bruxas americanas, recuperamos essa dimensão.

 

Vejo isso nos espaços da Missão Popular: as pessoas que chegam aí são muçulmanas, e os muçulmanos trouxeram a questão religiosa de volta ao debate público. Da mesma forma, todas essas linhas de inspiração que vêm do Sul ou das bruxas trazem a questão espiritual de volta à ecologia e permitem que o debate seja retomado. Um fato importante é que durante a última ocupação do Extinction Rebellion na Páscoa, houve uma eucaristia católica, a partilha do pão e do vinho por um padre católico.

 

Devemos reescrever, renovar esse imaginário?

 

Totalmente. A grande revolução na teologia desde a década de 1960 é que as mulheres se apropriaram da teologia, assim como as pessoas LGBTQI+ ou os negros com a teologia negra. Todos podem se apropriar dela a partir da sua experiência.

 

Há algumas ausências no seu livro, como Hans Jonas, que introduziu a dimensão da perspectiva apocalíptica no mundo de hoje, e Pierre Teilhard de Chardin, que não é diretamente ecologista, mas elaborou o conceito de noosfera. Por quê?

 

É o drama de um livro: quando você o termina, percebe tudo o que esqueceu. O Princípio Responsabilidade (Contraponto), de Hans Jonas, veio depois de outro texto, O Conceito de Deus após Auschwitz (Paulus). Ele desempenhou um papel, especialmente no fato de que durante as décadas de 1960 e 1970, as Igrejas se apoderaram da expressão “dominar a terra” [no início do Gênesis] perguntando-se qual era sua responsabilidade na crise ecológica. Elas disseram que esta passagem não deveria mais ser lida em chave de dominação, mas como uma responsabilidade confiada aos humanos.

 

Teilhard de Chardin teria me levado a discussões mais complicadas. Bernard Charbonneau escreveu um livro, Teilhard de Chardin, profete d’un âge totalitaire (Teilhard de Chardin, profeta de uma era totalitária), onde o deixa estraçalhado. Ele diz que Teilhard é um progressista que reintegra no pensamento cristão uma visão de progresso técnico que nos levaria ao ponto Ômega. Basicamente, Charbonneau diz que Teilhard abençoa o progresso assim como ontem abençoamos os canhões. Isso é, sem dúvida, muito injusto, mas teria exigido um trabalho mais preciso para discuti-lo.

 

A relação com os seres vivos está em um momento importante. Philippe Descola nos fez entender que outros povos tinham uma relação com os seres vivos diferente da dos ocidentais e Baptiste Morizot nos ensina a ouvir novamente os seres vivos. Não é o animismo, essa ideia de que há espiritualidade em todas as coisas, não apenas nos animais, mas também nas plantas, até nas pedras, a nova religião ecológica?

 

De qualquer forma, devemos retomar, reabrir a questão do animismo. Os cristãos odeiam o animismo, embora tenham uma tradição animista. O animismo não é o panteísmo – a ideia de que Deus está em toda parte, nas árvores, nas pedras, nos animais. O animismo é a ideia de que existe um anima, um espírito comum compartilhado por todos. Descola explica bem isso, há uma descontinuidade da exterioridade física, uma concha de Saint-Jacques não é um humano ou um elefante, mas por outro lado, há um espírito – quer o chamemos de alma, Espírito ou psique —, mas é a mesma coisa.

 

Encontramos isso no cristianismo. Francisco de Assis, por exemplo, estava convencido disso. Em Gúbio, onde ele se encontrava, um lobo aterrorizava o vilarejo. Ele convenceu os aldeões a não matá-lo, e disse ao lobo: “Eu vou cuidar de você e você, por sua vez, não vai atacar os aldeões”. O lobo parou de atacar a aldeia. E mais tarde São Francisco de Assis o enterrou com uma cerimônia religiosa. Isso significa que ele pensou que tinha uma alma e que elas estavam em contato. O animismo é interessante porque nos coloca a questão da exterioridade: é diferente, mas nós compartilhamos as coisas. É a ideia do convívio: temos o mesmo ecossistema e talvez uma psique em comum. Você tem que ser capaz de viver junto e negociar com os outros seres vivos.

 

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