Ucrânia: guerra e informação. Entrevista com Nello Scavo

Foto: Slavyansk (EU Civil Protection and Humanitarian Aid), Flickr creative commons.

17 Agosto 2022

 

Nello Scavo, jornalista de Avvenire, está na Ucrânia desde 21 de fevereiro, de onde, salvo breves pausas, escreveu reportagens de observação direta da guerra em curso após a agressão das forças armadas russas. Aqui ele responde a perguntas sobre o envolvimento da população civil, em referência ao que é publicado pela Anistia Internacional (aqui) e as perspectivas do conflito.

 

A entrevista é editada por Giordano Cavallari, publicada por Settimana News, 16-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Nello, você pode nos explicar o que a Anistia Internacional publicou?

 

A Anistia publicou uma declaração no qual relata uma série de supostas violações – no que diz respeito ao direito internacional – cometidas pelas forças armadas ucranianas envolvendo a população civil nos combates, com todas as graves consequências do caso.

 

O tema é delicado e convido a prestar atenção nas palavras. A Anistia publicou uma Declaração não um Relatório. Declaração e Relatório são documentos de diferente tipo: a Declaração tem claramente menos peso que o Relatório.

 

Guerra e direito

 

Como é que, apesar disso, a publicação suscitou reações tão fortes no cenário internacional?

 

Estamos em clima de guerra. Toda publicação deve ser bem ponderada. Na minha opinião, a Anistia cometeu um erro de comunicação mais que de conteúdo.

 

Um documento que é lançado on-line e imediatamente relançado por todas as agências internacionais de imprensa – sem filtros de leitura adequados – produz os efeitos da polêmica a que assistimos.

 

Quais são os instrumentos críticos sobre os quais você fala?

 

É necessário saber a diferença entre Declaração e Relatório. Não só isso: uma vez que nesse tipo de documentos é feita referência ao Direito internacional e ao Direito internacional da guerra neste caso, é necessário conhecer esses textos. Por exemplo, é preciso conhecer bem a diferença entre violações e crimes.

 

A Declaração da Anistia atribui, de fato, às forças armadas ucranianas violações, não de crimes. Anteriormente, a Anistia havia elaborado vários Relatórios - desde o início da guerra na Ucrânia até o presente - nos quais imputou graves crimes às forças de agressão russas.

 

Exatamente qual é o ponto contestado?

 

A Declaração da Anistia reporta a inadequação da tática ucraniana, especialmente no uso de algumas infraestruturas civis - no meio dos bairros habitados - como bases militares para o assentamento de homens e veículos, ou seja, como sedes a partir das quais realizar ações militares de defesa e contraofensiva.

 

Eu tenho que esclarecer - graças à ajuda de especialistas de Direito Internacional - que esse tipo de tática não é em si proibido. Isso pode não agradar, mas é assim: até mesmo estruturas civis como escolas e universidades podem ser usadas sob certas condições; apenas para hospitais as normas são absolutamente rigorosas.

 

O núcleo do alerta da Anistia, portanto, está em uma maior atenção para manter a população civil mais longe de confrontos e da possibilidade de retaliação.

 

Antes de escrever essas coisas, a Anistia, portanto, já havia denunciado repetidamente os ataques - deliberados e indiscriminados - das forças russas nas cidades, citando corretamente as normas do Direito internacional de guerra. Mas o fato de não ter explicado adequadamente essas coisas à opinião pública internacional produziu reações, compreensivelmente, muito fortes. A imprensa internacional também não ajudou muito a entender o que aconteceu e a aliviar as tensões.

 

Ucrânia e Anistia Internacional

 

Como o governo ucraniano encarou isso?

 

A Ucrânia contestou principalmente como a Anistia teria tomado conhecimento de algumas informações. A Anistia afirma tê-las recebidas diretamente de civis no local, como sempre costuma fazer.

 

As autoridades ucranianas argumentam que, em alguns casos, a informação vem de testemunhos recebidos dos chamados "campos de filtragem" instalados nas áreas ocupadas pelos russos, ou seja, de áreas onde os civis são obrigados a decidir "de que lado ficar".

 

Segundo o governo ucraniano, tais testemunhos não teriam sido prestados livremente, justamente porque tais campos estão sob o controle das forças russas.

 

Que outras reações ocorreram?

 

Como observado, o chefe da delegação ucraniana da Anistia - Oksana Pokalchuk – entregou sua demissão em discordância com a sede central da organização. O reflexo interno foi muito forte. Tomadas de distâncias da Declaração também ocorreram pela Anistia na Polônia e em outros países.

 

Além dos erros de comunicação, o que está escrito é "verdade"?

 

Para responder a essa pergunta de forma detalhada, gostaria de salientar que nos últimos dias foi publicado um relatório da Human Rights Watch - uma organização que certamente não pode ser acusada de antiatlantismo - substancialmente de igual teor, mas acompanhada de modalidades de comunicação mais atentas, distinguindo, justamente, entre violações ucranianas e crimes russos e de um anexo substancial de provas testemunhais.

 

O que está acontecendo

 

A sua opinião sobre isso, qual é?

 

Como mencionei, para entender, recorri à consultoria de especialistas em Direito Internacional - investigadores das Nações Unidas que agora estão empenhados na formação de investigadores ucranianos em vista de possíveis procedimentos junto ao Tribunal Penal de Haia contra figuras que estão em Moscou -, que dizem que, para expressar qualquer avaliação, devem ser cuidadosamente consideradas as modalidades com que esta guerra está sendo travada.

 

As guerras atuais acontecem com modalidades muito diferentes daquelas do passado: são travadas principalmente nas cidades, nas áreas habitadas, e não em campos despovoados. O modelo "Waterloo" está muito distante. As guerras estão sendo travadas cada vez mais bairro a bairro, casa a casa: como é realmente possível manter a população longe do fogo das armas? Provavelmente é impossível.

 

Portanto, é indubitável que a presença de sedes militares ucranianas em certos bairros das cidades tenha atraído tiros das forças russas que primeiro começaram a atacar e depois ocuparam os centros urbanos. Aqueles que se defendem desse tipo de agressão obviamente não podem agir fora da cidade visada.

 

Posso acrescentar uma minha observação direta - de Odessa, Mykolaiv e sobretudo de Cherson - sobre os comportamentos dos civis nesta guerra: em muitos casos eles se sentem tranquilizados com a presença dos militares ucranianos nos bairros de suas cidades, embora estejam cientes do risco que esse fato acarreta.

 

Os militares são ponto de atração dos confrontos, mas também são os únicos aptos a abater os mísseis em voo e de replicar os tiros para que não cheguem outros. Eu mesmo me encontrei em uma condição psicológica desse tipo, em um dos hotéis em que me hospedei. É verdade, portanto, que - mesmo quando os civis são expressamente convidados pelos militares a se afastar de suas posições - muitas vezes não o fazem.

 

Ficar onde estão os militares ucranianos, para grande parte da população civil, significa também sentir-se parte da “resistência ucraniana”, mesmo sem desempenhar um papel específico de resistência armada.

 

O que eu quero expressar é que as pessoas que estão nesta guerra estão envolvidas em uma dinâmica muito - muito - complexa. Simplificar nunca presta um bom serviço para a busca da "verdade".

 

Diz-se que na guerra a primeira vítima é a verdade: é mesmo assim? Como ser jornalista na guerra?

 

De fato, sou justamente jornalista. Eu naturalmente tento ser fiel aos fatos. Mas eu percebo como é difícil ser "objetivo" quando atiram contra você. Em Kiev, Mykolaiv e em outros lugares estive - com muitos outros, obviamente - perto das bombas.

 

As reações emocionais existem e são diferentes, de pessoa para pessoa, também com base nas experiências já feitas em outras zonas de guerra. Você pode chegar a essas zonas com uma atitude mais ou menos ideal, senão ideológica, mas então, sob as bombas, as percepções mudam. Vejo colegas - louváveis "pacifistas" - que estão desenvolvendo uma abordagem certamente menos ideal nessa zona de guerra.

 

Estamos unidos pelo distanciamento do uso de armas e todos somos a favor da busca de negociações diplomáticas, mas, quando nos encontramos sob os mísseis, surge sozinha a questão de saber se é certo ou não, por parte de nossos países, enviar armas antiaéreas para a Ucrânia, armas que podem defender a população e a nós mesmos. A resposta - para alguns - já não é mais tão óbvia, como poderia ter sido antes de viver essas experiências.

 

Viver durante a guerra

 

As normas atuais do Direito internacional, em sua opinião, são adequadas para a proteção da população civil na guerra?

 

Devemos saber que se trata de regras que datam da Segunda Guerra Mundial. Desde então, muitas coisas obviamente mudaram: os sistemas de mísseis e, portanto, os sistemas antimísseis envolvem movimentos de tropas militares muito diferentes do passado.

 

As normas do Direito deveriam certamente ser interpretadas à luz dessas mudanças. Mas penso que é extremamente complicado. Percebo agora como é difícil - para quem tem que se defender - estabelecer locais para assentamento e abastecimento de tropas, independentemente das estruturas civis. O “verdadeiro” problema são as armas: o “verdadeiro” problema é a própria guerra.

 

Para sua - não pouca - experiência, a guerra na Ucrânia é diferente de outras guerras contemporâneas? Que diferenças no envolvimento dos civis?

 

Digo que há 70 anos não se via - pelo menos na Europa - o exército de um país invadir outro país, determinado a se defender com seu próprio exército. Nos Bálcãs e na Síria vi tantos milicianos - de jeans e tênis e com o Kalashnikovs na mão - indistinguíveis uns dos outros, embora em guerra entre si: era difícil até entender quem fosse realmente um militar e quem não.

 

Aqui na Ucrânia há um exército contra um outro. Em si é uma "guerra clássica" que deveria poupar civis, mas em nenhum conflito jamais vi realmente pensar em salvar civis. Embora esta guerra seja principalmente de militares contra militares, é combatida em âmbito civil. Isso explica por que há tantas mortes entre os civis, além dos feridos e, obviamente, dos milhões de deslocados e refugiados.

 

O que posso testemunhar diretamente é que as tropas de Moscou até agora atingiram deliberadamente mais alvos civis do que militares. Eu estava em Kiev quando o aeroporto civil foi alvejado. Ou em Mykolaiv, quando foram bombardeadas as instalações de captação e tratamento de água.

 

Guerra e jornalismo

 

Que outras experiências você teve e está tendo?

 

Dos 10 mísseis atirados pelas tropas de Moscou, estatisticamente, apenas 1-2 atingem alvos definitivamente militares, enquanto os outros atingiram alvos simplesmente civis. Posso dizer isso porque quando um míssil cai nas cidades e nos centros habitados das zonas onde me encontro, tento correr, junto com outros jornalistas, até o ponto de impacto.

 

Se nos deixam entrar no local imediatamente, significa que o exército ucraniano não tem nada a esconder, enquanto quando o ponto atingido tem um conteúdo de algum tipo militar, o acesso é negado ou adiado. Somos nós que fazemos as estatísticas dessa forma: 8-9 vezes em 10 nos deixam entrar, imediatamente.

 

No entanto, não é arriscado para os jornalistas, assim como para outros civis, entrar imediatamente nos locais atingidos?

 

Os militares russos estão empregando seguidamente a tática do "duplo golpe", ou seja, lançam um míssil e, se acertar, esperam que acorra a ajuda e as pessoas, para depois lançar um segundo míssil que certamente vai atingir mais civis do que militares.

 

Com essa modalidade a guerra definitivamente se manifesta como uma guerra contra civis. A intenção só pode ser aterrorizar a população, enfraquecer sua resistência, induzi-la a ir embora ou resignar-se à ocupação do exército agressor.

 

Você sabe o que aconteceu com a população nas cidades e zonas ocupadas pelos russos?

 

Não é fácil saber por que o exército ocupante tenta impedir qualquer comunicação com a população, fechando os acessos à rede informática e telefônica. No entanto, consegui colher depoimentos diretos de civis de Cherson.

 

Sei de famílias naquela cidade que deixaram suas casas durante os combates mais intensos, refugiando-se nas ilhas fluviais do Dnieper, em galpões de fazenda e tendas: uma vez de volta à cidade - já resignadas à ocupação russa - encontraram suas casas habitadas por famílias pró-russas do Donbass e por famílias de militares russos empenhados na região: aquela não podia mais ser evidentemente a sua casa.

 

A propagação da notícia reforçou a determinação de muitas famílias de nunca mais deixar a própria casa, custe o que custar, inclusive a vida. Mas não há dúvida de que a tática cínica russa está produzindo seus efeitos: a população está cada vez mais cansada, ainda que não se renda.

 

Para onde?

 

Que mudanças de humor você está percebendo nas pessoas?

 

A percepção predominante que encontrei entre o povo ucraniano é que Putin é comparável a Hitler, de modo que muitas pessoas preferiram morrer sob os escombros a se entregar nas mãos dos russos. No entanto, de fato, em Cherson, muitas famílias - desde que se parasse de atirar e sem nenhum entusiasmo - optaram por verificar se e como se pode viver sob a ocupação militar dos russos. Certamente não se pode generalizar.

 

Há casos e casos, mesmo em Cherson. A realidade é muito complicada. O certo é o cansaço da população em meio à guerra: sobretudo o cansaço de viver com medo.

 

Como essa guerra poderá evoluir?

 

A projeção - bastante certa - de todos os analistas é que essa guerra vai durar muito tempo. Por experiência, sabemos que, à medida que as guerras se prolongam, os humores mudam inevitavelmente em ambos os lados.

 

Um primeiro efeito – de reflexos midiáticos - já o estamos vendo: há uma perda progressiva da memória do início da guerra e de suas "razões"; as reportagens de TV durante as 24 horas estão diminuindo e o interesse mundial está caindo.

 

Ao mesmo tempo, o humor da população em guerra resulta cada vez mais condicionado pela vida que é forçada a levar: falta cada vez mais dinheiro, serviços básicos - água, luz e aquecimento (com o outono e depois o inverno às portas) - não são garantidos, tudo o que não tem nada a ver com sobrevivência está faltando.

 

Quando a destruição for ainda mais grave e quando a opinião pública mundial - tomada por outros problemas - estiver ainda mais distante, qual será ainda a determinação para se defender, lutando? É a pergunta dramática que eu também estou me fazendo.

 

Obviamente que não sei como e quando terminará: só posso confirmar que a guerra é a pior coisa que pode acontecer à humanidade.

 

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