Neuroética: quando os valores são uma questão de cérebro

(Foto: Reprodução | Psicologia e mente)

30 Julho 2022

 

Vinte anos após a sua fundação, a neuroética ainda não tem um estatuto definido: em parte, beira a bioética, mas atua em contextos específicos como o impacto moral, jurídico e social da pesquisa.

 

Publicamos aqui um trecho do prefácio de Andrea Lavazza e Vittorio A. Sironi para o livro por eles editado e intitulado “Neuroetica. Interpretare e orientare la rivoluzione delle neuroscienze” [Neuroética. Interpretar e orientar a revolução das neurociências] (Ed. Carocci, 200 páginas).

 

Capa do Livro: Neuroetica. Interpretare e orientare la rivoluzione delle neuroscienze.

Foto: Divulgação

 

As contribuições de mais de 20 estudiosos oferecem as perspectivas interdisciplinares para uma análise e uma avaliação éticas dos cenários de controle difuso abertos pela neurotecnologia. Eles oferecem a oportunidade de nos aprimorarmos cognitivamente, mas também de modificar as recordações e de criar cérebros em laboratório.

 

A revolução da aplicação das aquisições das neurociências redefine os conceitos de mente, identidade, liberdade e se estende a muitos âmbitos da existência, pois influencia a moral, o direito e a economia.

 

Lavazza é senior resarch fellow do Centro Universitário Internacional de Arezzo e professor de Neuroética na Universidade de Pavia, além de editor do Avvenire. Sironi é neurocirurgião, historiador e antropólogo, dirige o Centro de Estudos sobre a História do Pensamento Biomédico na Universidade Bicocca.

 

O artigo foi publicado em Avvenire, 28-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O termo “neuro-ética’ apareceu pela primeira vez em 1973, quando a neurologista Anneliese Pontius o utilizou para descrever a discussão relativa às tentativas de fazer as crianças caminharem antes que aparecesse nelas a tendência natural de se moverem em posição ereta.

 

A questão dizia respeito à conveniência de induzir um comportamento precoce, que poderia ser prejudicial em longo prazo. Nesse sentido, o recurso ao novo termo parece perfeitamente adequado à luz do seu uso atual. De fato, falava-se naquela época de uma modalidade de “potencialização”, embora na forma de indução antecipada de uma conduta típica.

 

Por mais de 15 anos a palavra “neuroética” permaneceu confinada a um único artigo científico. Em 1989, o neurologista Ronald Cranford introduziu o termo “neuroeticista” para indicar a figura de um clínico que também fosse especialista em aspectos éticos e capaz de tratar os dilemas que surgissem na prática médica relacionados ao sistema nervoso central.

 

 

 

Foi preciso esperar quase outros 15 anos para reencontrar a “neuroética” (desta vez sem o hífen), quando, em 2002, um grupo internacional de especialistas se reuniu em San Francisco para discutir as questões emergentes das neurociências no congresso “Neuroethics: Mapping the Field”, que é universalmente considerada a certidão de nascimento da neuroética (Marcus, 2002).

 

O “novo” termo, cujo utilização foi difundida e popularizada também fora do meio científico por William Safire, escritor e colunista do New York Times (além de presidente da Dana Foundation, um dos maiores entes financiadores da pesquisa em âmbito neurocientífico), foi logo acolhido favoravelmente e utilizado de maneira crescente, não só na literatura científica, mas também na literatura filosófica e bioética, como o neurologista Steven Rose (2005) evidenciou criticamente nos anos posteriores àquele congresso.

 

Mas o que é a neuroética ainda é objeto de debate. Houve e há uma constante expansão de estudos, pesquisas, publicações, revistas, congressos, livros, cursos universitários, conferências públicas unidos pela referência à neuroética. No entanto, nem todos os envolvidos nessas atividades dirão que a neuroética é uma nova disciplina com um estatuto próprio definido.

 

Alguns falam de um âmbito de pesquisa interdisciplinar, outros de um rótulo útil para identificar algo que tem um “ar familiar”, mas poderia ser igualmente subsumido em outras disciplinas, por exemplo: a filosofia moral, a bioética, as ciências cognitivas ou, simplesmente, as neurociências.

 

De fato, o que caracteriza a neuroética são as implicações dos grandes progressos no estudo do cérebro humano. Esse ponto de partida não parece controverso. Na conferência inaugural de 2002, definia-se a neuroética exatamente como o exame daquilo que é certo e daquilo que é errado acerca das intervenções no cérebro, sejam elas relacionadas com o aprimoramento da memória ou à reeducação dos criminosos, à implantação de um microchip ou à chamada leitura do pensamento.

 

O espectro das temáticas foi se ampliando enormemente hoje, envolvendo elementos muito diferentes que tornam objetivamente complexo traçar com precisão as fronteiras da neuroética. Vinte anos após a sua fundação, poderia parecer oportuno circunscrever com precisão o seu campo. Mas talvez o momento para fazer isso ainda não chegou.

 

Isso não significa que a disciplina – assumimos a responsabilidade de defini-la como tal – seja imatura ou que não tenha havido esforços teóricos e empíricos suficientes para constituí-la de modo estruturado (de fato, também é possível perguntar para muitas outras áreas do saber e da pesquisa de nascimento mais antigo se tal condição está plenamente realizada).

 

A própria presença deste livro indica que se trata de um empreendimento fecundo e, pensamos, necessário. No entanto, ainda é prudente proceder por tentativa e erro, que é exatamente o que esta coletânea de contribuições pretende fazer. Sabe-se que uma primeira partição da neuroética se deve a Adina Roskies (2002), que propôs que, ao lado do âmbito inicial de pesquisa referente à ética das neurociências, também se deveria tratar de pleno direito de neurociências da ética. A primeira está mais próxima da bioética, as segundas, mais próxima da reflexão metaética.

 

 

Em essência, a ética das neurociências se concentra nos potenciais aspectos problemáticos ou controversos da aplicação das neurociências, por exemplo: o recente debate sobre neurodireitos, ou seja, como proteger a privacidade e a integridade mental diante de novos instrumentos capazes de interpretar a atividade cerebral subjacente aos nossos pensamentos e interferir nela.

 

Por outro lado, as neurociências da ética nos levam a considerar como nascem as nossas escolhas morais e também a avaliar a adequação de normas de comportamento específicas à luz do funcionamento efetivo do nosso cérebro.

 

Pode-se perguntar o que caracteriza especificamente a abordagem neuroética. O discurso bioético parece bem estruturado para abordar os dilemas que podem surgir a partir dos desenvolvimentos e das repercussões ligados a novos instrumentos de investigação cerebral ou de capacidades aumentadas de potencializar o funcionamento cognitivo.

 

Na realidade, dentro da pesquisa e das suas aplicações imediatas, vêm sendo criados âmbitos problemáticos novos, nos quais o caráter peculiar da neuroética é dado por:

 

a) o grau de conhecimento técnico necessário para dominá-los e para entrar em diálogo paritário com quem se ocupa disso profissionalmente;

 

b) a capacidade de “detectá-los” dentro de contextos aparentemente neutros eticamente.

 

Daí a já clássica fórmula ELSI, ou seja, as implicações éticas, legais e sociais das descobertas neurocientíficas como primeiro foco da neuroética. Isso tem implicações importantes. Por um lado, pode-se falar de neuroeticistas em sentido estrito, ou seja, de estudiosos que se dedicam principalmente a peneirar os progressos das neurociências e das disciplinas afins (a genética, a inteligência artificial) a fim de avaliar todos os efeitos que podem decorrer de tais progressos, tanto de um ponto de vista teórico quanto de um ponto de vista pragmático.

 

Isso significa que a neuroética, nesse sentido, tem um lado que se aproxima mais da antropologia científica e outro que está mais voltado para a ética aplicada. O neuroeticista, portanto, está mais próximo de um bioeticista no que diz respeito à sua ação. Poderá contribuir para a literatura especializada com intervenções relacionadas aos aspectos éticos da pesquisa neurocientífica e das suas aplicações clínicas ou sociais e recreativas (capacetes portáteis para a eletroencefalografia podem ser utilizados tanto para monitorar os pacientes em domicílio quanto para avaliar a atenção dos chefes de estação ferroviários, quanto ainda para jogar um videogame).

 

Além disso, ela poderá contribuir para a criação de um contexto de pesquisa responsável e atenta à dimensão valorial. Por fim, será chamada a fazer parte de órgãos de vigilância em diversos níveis: desde os tradicionais comitês de bioética até grupos constituídos especificamente para a proteção dos consumidores no caso do neuromarketing ou para a garantia dos empregados em empresas que utilizam instrumentos de neuromanagement.

 

 

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