Itinerário catecumenais para os cônjuges? Um diálogo sobre fé e matrimônio, por Antonello Siracusa e Andrea Grillo

27 Junho 2022

 

Algumas perguntas enviadas por Antonello Siracusa me pareceram muito pertinentes e agudas. Nós as escrevemos, junto com algumas respostas. Para tentar compreender as questões delicadas que dizem respeito ao sacramento do matrimónio e a pastoral que quer acompanhar aqueles que entram nessa forma de "vida em Cristo".

 

Antonello Siracusa é formado em filosofia e ciências religiosas, é professor e atua na pastoral familiar na Diocese de Como (AG).

 

Andrea Grillo é teólogo e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo.

 

A conversa foi publicada por Andrea Grillo em seu blog Come se non, 22-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o diálogo.

 

Caro professor, estou acompanhando com atenção o debate sobre o recente documento "Itinerários catecumenais para a vida matrimonial" do Dicastério para os leigos, a família e a vida. Como pode imaginar, para quem colabora na pastoral das famílias, o tema da preparação para o matrimónio toca num ponto sensível: há anos se buscam e se experimentam novos caminhos e nos questionamos sobre algumas escolhas básicas.

 

O seu artigo "Matrimônio primeiro e último dos sacramentos: uma questão antiga em 10 pontos" (que pode ser lido aqui) destaca como é essencial basear o acompanhamento matrimonial na experiência real das pessoas, na história do casal, também no que diz respeito à sexualidade. O que eu gostaria que você aprofundasse é o papel desempenhado pela fé e pelo ministério eclesial neste sacramento (e na sua preparação).

 

Em seu artigo, criticando o uso do adjetivo "catecumenais", você ressalta a "diferença do matrimônio em relação ao catecumenato de iniciação cristã e à formação em vista da ordenação". Justamente sobre esses dois aspectos, parece-me que existam questões a esclarecer.

 

No sacramento do matrimônio, que papel desempenha a fé? A celebração desse sacramento não comporta para os esposos o desejo de viver a sua história de amor à luz do Evangelho, para encontrar Jesus Cristo e caminhar com Ele? No entanto, muitas vezes acontece que as pessoas que pedem para se "casar na igreja" não manifestam esse desejo, essa consciência, essa fé. Muitas vezes são adultos cuja experiência de se deteve no catecismo. A experiência parece dizer que, infelizmente, a iniciação cristã das crianças... não é suficiente para gerar adultos crentes. Por isso, creio, se faz referência, ainda que indevidamente, ao catecumenato: parece ser necessária uma nova iniciação à vida cristã. Como você pode cumprir um itinerário de fé em direção ao matrimônio? Com que objetivos? Com que diferenças em relação à Iniciação Cristã?

 

"Os cristãos se casam como todos os outros": essa expressão da "Carta a Diogneto" nos ajuda a sair das primeiras dificuldades. Ou seja, da atual “superexposição” da fé na compreensão do matrimônio. Este não é nada tradicional. Porque, no máximo, o matrimônio se alicerça em evidências naturais e civis, que depois a fé reelabora. Pensar em "fundar" toda a estrutura da vida matrimonial no plano da fé me parece uma perspectiva intemperante e talvez até um pouco fundamentalista. O caminho para o matrimônio é "também" um caminho de fé, mas não apenas um caminho de fé. É um caminho antropológico, relacional, sexual, social, econômico. Dentro dessa trama, a fé tem sua própria relevância decisiva, mas não na forma de uma substituição. Aqueles que hoje "pedem o matrimônio sacramental" foram educados pela Igreja para exibir não a fé, mas o batismo.

 

Assim, em certo sentido, aqueles que de burocracia ferem, de burocracias acabam feridos. Não é o mundo de hoje que exige algo estranho da Igreja, mas é a Igreja que estabeleceu a relação com o matrimônio desta forma, há cerca de 500 anos, e especialmente desde o final do século XIX. O bumerangue está voltando para bater na cabeça do quem o lançou. Se você primeiro construir o teorema (bastante instável, mas claro) da identidade entre “batizados que estipulam contrato de casamento” e “sacramento do matrimônio”, uma vez atestado o batismo e o contrato, não há como escapar da lógica sacramental. Uma crise do sacramento não pode ser resolvida simplesmente transformando o matrimônio em batismo.

 

Esse parece-me ser um caminho impraticável, como bem sabe o próprio texto dos “Itinerários Catecumenais”, que no n. 16 diz que tudo o que neles está previsto será necessariamente "contornado" por outros percursos (isto é, pela ausência de percursos). Creio que o único caminho seja o "encontro" entre a Igreja que é salvação para o mundo e o mundo que é saúde para a Igreja, como dizia M.D. Chenu. Se queremos apenas fazer documentos paternalistas sobre o matrimônio e não aceitamos aprender com as novas formas de vida comum, onde está a força vital do presente e do futuro, acabamos por construir máquinas complicadas que ninguém usará.

 

A conclusão que tiro do que você escreve é que o investimento deveria ser revertido muito mais na iniciação cristã e na "formação permanente" do batizado. Mas tenho sérias dúvidas de que o modelo do "Batismo Infantil" possa levar a isso: em certo sentido, enquanto você critica que se pensa tratar o Matrimônio como o Batismo, de fato no momento o Batismo é tratado como o Matrimônio: o fato natural de ter nascido é automaticamente elevado a "tornar-se cristão", sem qualquer consideração pela fé. Depois, há um esforço "a posteriori" para gerar uma fé que corresponda ao que foi celebrado.

 

Você tem razão, mas acredito que este seja um fenômeno que "cobre" todo o septenário sacramental. Aplicamos a todos os sacramentos o que elaboramos para justificar o “batismo infantil". E, portanto, um primado absoluto da graça que dispensa a fé. Isso funciona bem no plano jurídico, mas pastoralmente é um desastre. Enche a Igreja de clientes, não de discípulos. E muitas vezes a isso se reage com o movimento contrário, mas igualmente deletério, ou seja, criando uma igreja sectária, onde o discipulado deve ser merecido com uma seleção dura. Não são poucos os movimentos que implementam essa resposta. O matrimônio torna-se "catecumenal" dentro dessa segunda possibilidade, que em nome de um justo chamado à fé, facilmente perde o lado realista da vida dos sujeitos.

 

Fico perplexo que o casamento possa ser um sacramento sem colocar a fé no centro (perplexo não em relação à legitimidade "canônica", mas em relação à minha livre reflexão): não estou dizendo isso de um ponto de vista de juízo de valor, considero igualmente valiosos os casamentos civis, sem qualquer exclusão de princípio mesmo em relação à convivência... é a qualidade efetiva da história de amor que conta, que não coincide automaticamente com a forma; mas, se a fé não for central, caberia pensar como mais adequada a bênção da união, seja qual forma for. Para ser um sacramento, deve ser em relação a Cristo: naturalmente não na lógica de um privilégio de status, mas naquela do serviço a todos... eu diria na lógica de ser sinal de conversão evangélica e não simplesmente de ser um sinal da beleza gerada pelo Criador.

 

Justamente aqui está o ponto delicado. Este "se casar em Cristo" é decisivo, mas toma forma não simplesmente porque os cônjuges fazem as mesmas coisas que os seminaristas ou as religiosas. Aqui, parece-me, a diferença de experiência torna-se uma variável irrelevante, enquanto é decisiva. A relação com a Palavra, com a oração e com o sacramento é qualificadora, mas de forma específica. Para dar "figura cristã" ao matrimônio não pode subordiná-lo a "condições catecumenais". Porque isso “repugna” à lógica natural e civil do sacramento e o clericaliza.

 

A , a consciência da comunhão com o Senhor, deve emergir dos "atos próprios dos cônjuges". Quanto a isso, parece-me, ainda estamos parados. Por outro lado, encher a agenda dos "nubentes" nos dois anos que antecedem o matrimônio parece-me, francamente, uma forma demasiado clerical e, portanto, facilmente contornável. Seria como com a penitência canônica. Você pode até colocar 10 anos de penitência como condição para obter uma absolvição válida, mas só conseguirá que as pessoas se confessem à beira da morte. Talvez mais correta seja a previsão do "rito do matrimônio" italiano, que constata a diferença de iniciação entre os casais e a integra ao rito, diferenciando as formas.

 

Sobretudo a partir da "Familiaris Consortio" desenvolveu-se na pastoral familiar a ideia da "complementaridade de Ordem e Matrimônio na edificação da Igreja". A apreciável intenção é apresentar uma ideia de Igreja que não seja fundada apenas nos ministros ordenados (mas muitas vezes se fala de "sacerdotes", entendendo bispos e presbíteros, porque talvez o tema do diaconato seja menos adequado a essa ideia de complementaridade). No entanto, corre-se o risco de imaginar um duplo clericalismo, feito de padres e esposos, como se não se pudesse "edificar a Igreja" por outros caminhos e opções de vida. Parece-lhe que o documento do Dicastério esteja condicionado por esse paralelismo padres - esposos? Em que se evidencia? Como evitar que, como você escreve, a formação dos esposos se assemelhe a um "seminário"? E também nesse caso, você não acha que a questão fundamental seja a falta de uma formação autêntica que torne todos os batizados protagonistas (formação que depois se tenta recuperar para os esposos por ocasião do matrimônio?)

 

Essa parece-me uma leitura que, mesmo incorporando elementos de novidade objetiva, os traduz num registro ambíguo e perigoso. Por um lado, de fato, acolhe-se, ainda que com dificuldade, a ideia de que os casais de esposos e as famílias não sejam simplesmente "destinatários" de uma pastoral, mas "sujeitos" dela. Este é o resultado da personalização que o mundo moderno impôs à cultura, incluindo aquela matrimonial e familiar. A Igreja por muito tempo tinha compartilhado uma abordagem oposta: no rito do matrimônio, até 1969, era o padre que abençoava o anel, que depois passava para o noivo, que o colocava no dedo da noiva. Em um simples gesto era identificada a sujeição do casal ao presbítero e da noiva ao esposo. Hoje isso mudou tanto que o noivo e a noiva "trocam" as alianças e eles próprios pronunciam palavras de autoridade sobre a aliança, antes abençoado por quem preside. Mas interpretar esse desenvolvimento em termos de "consagração" eclesial parece-me uma forma indireta de clericalização do matrimônio. Porque a realidade é lida a partir de uma linguagem elaborada para a realidade do ministério. Digamos que o risco é que até o matrimônio se torne um "ofício eclesiástico". Traços desse descuido, que considero grave, podem ser encontrados no documento “Itinerários catecumenais”. Uma contribuição não pequena para tal desenvolvimento veio certamente de alguns "movimentos", que têm insistido muito nesta leitura do matrimônio em termos de consagração.

 

No conceito de "Matrimônio para a edificação da Igreja", porém, parece-me importante a ideia de que os esposos cristãos vivem a sua história de amor numa perspectiva de missão e de serviço aos outros. É claro que muito disso já deveria vir da iniciação cristã, da história da fé pessoal: mas, como já foi dito, não é de forma alguma um dado garantido. E depois há algo mais: viver o serviço juntos, como expressão do amor do casal e como um "responder juntos ao amor de Cristo" abre um novo horizonte. Então não é necessário um caminho de fé para que os esposos possam desenvolver essa perspectiva? Como realizá-lo para que corresponda à especificidade do amor conjugal?

 

Esse é outro ponto delicado: ser "casados em Cristo" requer um pensamento forte, elevado, poderoso, mas não mediado no modelo do ministério ordenado ou da vida religiosa. Definir melhor essa "espiritualidade de casais e de famílias" é uma tarefa que vem sendo corajosamente empreendida há 60 anos. Mas o impacto eclesial ainda é escasso, pois as formas, como atesta também esse documento, ainda são aquelas velhas, muitas vezes totalmente dependentes de modelos celibatários. Aqui, eu penso, interfere uma vivência diferente da "castidade", que facilmente cria olhares "distorcidos". Aqueles que experimentam a castidade como um voto religioso ou como uma vida celibatária têm dificuldades para entender a castidade conjugal. Ouvem falar. Mas não a exercem e, portanto, não a conhecem. E muitas vezes ele a reconstroem em termos de continência.

 

Isso cria um distanciamento problemático, que muitas vezes se transforma em palavras ou imagens extrínsecas, moralistas e paternalistas. Um equívoco clássico é pensar que a vida pré-matrimonial dos futuros cônjuges possa se assemelhar naturalmente à vida da continência religiosa ou celibatária. Aqui o defeito de olhar e de palavras é muito alto. E determina incompreensões "de ida" e "de volta". O amor conjugal é sempre também amor físico, carnal, sexual. Sem que por isso tenha que pedir perdão. Aqui há um verdadeiro bloqueio cultural, que merece uma palavra diferente e mais atenta.

 

Na pergunta anterior o centro era "como educar para viver o matrimônio numa perspectiva de missão e serviço aos outros", portanto numa "perspectiva evangélica". Sua resposta logo muda para o assunto da castidade. Talvez a ligação que você tem em mente seja que o cerne do caminho que deveria estar centrado no desenvolvimento de todas as dimensões do casal (um amor que se torna "sal da terra") ... que, aliás, seria o verdadeiro sentido da castidade conjugal (que se compreenderia melhor, creio, se não fosse associado, sobretudo para os que se preparam para o matrimônio, com um pedido de "continência" sobre cujos efeitos há muitas dúvidas). Aqui, você poderia explicar melhor a ligação entre minha pergunta e o tema da castidade?

 

A missão da “igreja doméstica” é a forma originária da comunhão, que assume a figura cotidiana de refeição, descanso, festa, brincadeira, cama, viagem, cuidado mútuo. Com o risco de que esse "eu me importo" seja introvertido e não saiba como se tornar extrovertido. A transformação da casa em "apartamento" é o grande risco. Precisamos de lugares que protejam, mas também sair da privatização. A Igreja seria o chamamento à "vocação comum" da casa. Mas uma igreja que privatiza burocraticamente, o que vem fazendo desde 1563, dificilmente recupera, ainda que estabeleça certo paralelismo entre iniciação dos adultos e matrimônio. Mas o matrimônio não é um sacramento da iniciação. O caminho da fé não tolera automatismos burocráticos, aos quais temos confiado cada vez mais o destino das "fortunas matrimoniais". Isso não funciona mais. Mas não podemos manter, ao mesmo tempo, os privilégios burocráticos e as dinâmicas iniciáticas. Isso é uma ilusão de fachada. Onde as normas permanecem aquelas tridentinas, os automatismos e os atalhos são imparáveis e já previstos pela instituição que gostaria de combatê-las.

 

O documento fala de “Itinerários catecumenais” também tendo em mente as “entregas” que caracterizam o catecumenato, onde fala de “ritos de passagem a serem celebrados dentro da comunidade”. Você compartilha dessa orientação? De que forma, em sua opinião, a linguagem do rito pode desempenhar um papel nesse processo?

 

A metáfora usada pelo Papa Francisco em Amoris Laetitia tornou-se semelhante e depois direta imitação. Uma metáfora, no entanto, nunca é a coisa em si. Essa solução, não só neste caso, resulta arriscada. Uma metáfora "catecumenal" sempre pode ser justificada. Mas a estruturação da abordagem dos casais ao "seu" casamento com as formas verbais e rituais do catecumenato parece-me ser problemática. E é problemática no plano de princípio e no plano ritual. Deixe-me explicar. Quando se lê a teologia clássica, por exemplo, em Tomás de Aquino, nota-se sempre um grande cuidado em distinguir a lógica batismal e da iniciação das demais lógicas sacramentais. Especialmente isso se aplica ao matrimônio. Porque no matrimônio, ao contrário do batismo, há uma projeção natural e civil que não pode ser interceptada “no modo do catecumenato”. Tratar os batizados como "catecúmenos" justamente no lado que é mais tipicamente ligado à sua natureza e cultura parece ser um gesto paradoxal. Compreendo bem que se trata de "evangelizar o matrimônio": mas isso acontece com base na natureza e na cultura, não a partir da fé. Precisamente porque o matrimônio não foi "instituído" como sacramento, mas simplesmente "elevado" a partir de uma experiência que era e continua sendo pressuposta.

 

Por outro lado, pergunto-me: o batizado pode ser reduzido a catecúmeno? Tratar um batizado como catecúmeno pode ser útil para reduzir o “direito” que a lei canônica lhe reconhece. Por outro lado, se o batizado não ceder a essa deminutio, a lei lhe dará razão. O próprio documento, no n.16, é obrigado a reconhecer que, por mais que se estruturem "caminhos", a via breve ao matrimônio é posta pela lei e, portanto, dificilmente evitável. Mas se por isso a própria lei fosse mudada, talvez o problema se resolveria sozinho. Um matrimônio "com obstáculos" seria um matrimônio não apenas raro, mas também desnaturado: um matrimônio reduzido a ofício eclesiástico.

 

 

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