A loucura ufanista

Foto: Iris Brasil | Amazônia Real - Flickr cc

23 Junho 2022

 

"Seja o (i) ufanismo bolsonarista sem sentido ou mesmo (ii) o medo de um imperialismo vindo de todo lado a todo momento, ambos podem servir de arma para nos destruir cada vez mais. As vítimas desse trágico evento não são apenas Bruno e Dom, mas todo o planeta, toda a floresta Amazônica".

 

O artigo é de Adriano Versiani, advogado e mestrando em história e conexões atlânticas pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA.

 

Eis o artigo. 


Humanismo é um termo que tenho dedicado a pesquisar na vida acadêmica, pensando-o, algumas vezes por meio da história dos conceitos, outras por uma visão crítica à modernidade, que tanto Marx [1] quanto Hegel [2] fizeram a seu modo. Essa locução me instiga desde os tempos de graduação em direito. Ainda no início desse novo século, as relações entre humanismo, direitos humanos e direito constitucional me inquietavam. É como se as explicações de então não me bastassem. As elucidações próprias das cadeiras que cursei e que abordam o tema, sobretudo que relacionam os direitos humanos ao antropocentrismo renascentista e ao iluminismo, a mim não faziam sentido. Faltava algo.

 

Devido a essa inquietação, muitos acontecimentos do presente me levam a revisitar memórias e pensar soluções sobre esses temas. Esse procedimento se tornou, a bem da verdade, uma forma de viver o luto social por acontecimentos trágicos que me chocam. O assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips é um desses casos. Minha humanidade é tocada em um ponto e a partir daí tudo parece difícil: dormir, comer e pensar o que será de nós daqui a um ano. O que aconteceu é estarrecedor, triste, deplorável e criminoso.

 

Nesse processo, deparei-me com um excelente --- e profético --- artigo de Leonardo Boff, intitulado A Amazônia não é só do Brasil: é um bem comum da Terra e da humanidade[3] . O escrito é reflexivo. Convidou-me a repensar, em uma linha histórico/filosófica, essa herança moderna denominada soberania [4]. O assassinato ocorrido nos chama, mais uma vez, a atenção para a situação da Amazônia e para o fato de que, como disse Boff, precisamos “afirmar, contra a arrogância do presidente, que todo o bioma amazônico não pertence só ao Brasil e aos demais nove países amazônicos. Constitui um Bem Comum da Terra e da Humanidade”.

 

O ufanismo com que Bolsonaro arroga que a “Amazônia é nossa” não é outra coisa senão a afirmação de uma concepção torta de soberania que, imagino, já é hora de ser (re)pensada. Afinal, a preocupação de outros países com a floresta não é apenas de cunho imperialista, que quer se apropriar do que “é nosso”, mas em alguns casos se parece com qualquer coisa que nos supera: a situação em que o planeta se encontra. Se não soubermos separar uma coisa da outra, estamos condenados ao fracasso, pois veremos imperialismo onde não tem, muitas vezes em razão dessa inquietação ufanista.

 

Essa noção de soberania, já nos alertou Eduardo Viveiros de Castro, é prejudicial aos povos indígenas, inclusive os vê como gente “insuficientemente disciplinada pelos valores pátrios” e os territórios indígenas como “como áreas com perigoso potencial de internacionalização” [5] , em um país já internacionalizado e entregue a toda sorte de mercados mundiais. A Amazônia já não é nossa e a morte de Bruno e Dom é mais uma prova disso. A agressão à própria floresta e o estrangulamento institucional causado pelo governo está nos sufocando.

 

O que vivemos, em termos de agressão à natureza, não é apenas uma crise. Bruno Latour nos chamou a atenção para uso recorrente desse termo, que acaba por nos tranquilizar, já que crises passam. O sociólogo nos alerta para o fato de que vivemos uma verdadeira mutação. Nos acostumamos a viver no mundo de uma forma que não mais existe, tudo está se modificando [6].

 

Latour também aborda o tema do antropoceno, definição considerada pelo 34º Congresso Geológico Internacional como “uma possível época geológica, ou seja, situada no mesmo nível hierárquico que o Pleistoceno e o Holoceno” [7]. O antropoceno é a marca de um novo tempo em nosso planeta, um tempo em que a relação homem e natureza encontra-se de tal modo esgarçada, que o impacto do homem sobre a terra, como concluiu o congresso, tende a se tornar uma era geológica. Aqui, abro apenas um parêntese para pontuar que Bruno critica o termo “possível” utilizado no documento, pois o assunto urge.



O mais problemático em tudo isso, revela Faustino Teixeira, é “que os humanos permanecem 'indiferentes' aos rumos que eles mesmos impuseram ao ritmo do tempo” [8]. Vivemos em uma guerra diária contra a natureza que nos afunda a cada dia, como se fôssemos seres superiores, dominadores do mundo natural. Os reflexos de dessas atitudes estão no dia a dia: vivemos mudanças climáticas, assassinatos em plena floresta amazônica. Aliás, nada pior do que estarmos neste momento submetidos a um governo que fomenta esse tipo de atitude. Vivemos um processo degradante e odioso.

 

É aqui que o tema se conecta com o objeto de minha constante pesquisa. Não estaria o antropoceno batendo à nossa porta e afirmando que o humanismo antropocêntrico nos coloca em um embate direto com a natureza? Papa Francisco, assertivo que é, afirma que “a Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico, que se desinteressa das outras criaturas” [9].

 

Não apenas o papa, Teilhard de Chardin, paleontólogo e padre jesuíta, já nos disse também que “O Homem não é o centro estático do Mundo - como ele se julgou durante muito tempo, mas eixo e flecha da Evolução - o que é muito mais belo” [10]. Não estou aqui a defender alguma espécie de anti-humanismo, nem acredito que era a ideia de Chardin, o que digo é que não podemos nos colocar em guerra com o que também nos constitui, como se fôssemos superiores.

 

A natureza tem em si o ímpeto da força criadora do universo. Há outra passagem de Chardin que nos revela que o Cristo “por uma acção perene de comunhão e de sublimação, agrega a si próprio o psiquismo total da Terra” e nos convoca para pensar com São Paulo que “não haverá senão Deus, todo em todos” [11].

 

O renascimento, na verdade, criou o antropocentrismo, ou seja, apresentou a ideia de que homem estaria no centro de todas as concepções. Mas a ideia do homem como portador de dignidade já existia, faz parte de um período muito anterior. Henrique Cláudio de Lima Vaz atribui a noção de humanismo à origem grega, latina e Cristã, afirmando, em um pensamento crítico à modernidade e ao próprio humanismo modernista e antropocêntrico, que “a tradição humanista é convidada a retornar às suas origens para delas receber, na integridade da sua riqueza temática, a concepção do ser humano capaz de oferecer uma alternativa às aporias do humanismo antropocêntrico” [12].

 

Seja o (i) ufanismo bolsonarista sem sentido ou mesmo (ii) o medo de um imperialismo vindo de todo lado a todo momento, ambos podem servir de arma para nos destruir cada vez mais. As vítimas desse trágico evento não são apenas Bruno e Dom, mas todo o planeta, toda a floresta Amazônica.

 

Bruno Latour diz que:

 

Ou mantemos as condições que tornam a vida habitável para todos os que chamo de terrestres, ou então não merecemos continuar vivendo. É essa a escolha que obriga a nos posicionarmos ‘diante de Gaia’ [13].

 

Ao citar todos os terrestres, o sociólogo se refere a todo ser vivo que existe no planeta. Somos apenas parte desse emaranhado complexo que podemos chamar de natureza. Por isso a vítima somos todos nós: pessoas, floresta, planeta terra.

 

Ouçamos a música que André Abujamra remixou a partir de uma canção entoada por Bruno. Tenho me dedicado a ouvi-la como um lamento do planeta terra por essa perda tão dolorosa: 

 

 

Notas: 

 

[1] Refiro-me aqui ao livro “Sobre a questão judaica”. Para Daniel Bensaid “Sobre a questão judaica aparece como ponto de partida de uma crítica dos limites da Revolução Francesa e da retórica dos direitos do homem” (In MARX, Karl. Sobre a questão Judaica. São Paulo : Boitempo, 2010, p.25.

[2] Refiro-me ao texto “Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural, sobretudo a interpretação que lhe foi conferida pelo professor Roberto Drawin. DRAWIN, Carlos Roberto. A modernidade trágica. In O novo humanismo. São Paulo: Paulus, 2022, p.135.

[3] Disponível aqui. Acesso em 15 de junho de 2022.

[4] Lenio Streck e Jorge Luiz Bolzan afirmam que “O conceito de soberania foi firmado no século XVI, servindo de base da ideia de Estado Moderno, uma vez que até o fim do império romano não há conceito correlato”. STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, Jorge Luiz BOLZAN. Ciência Política e Teoria do Estado. 8.ed. São Paulo: Livraria do advogado, p.161.

[5] CASTRO, Eduardo Viveiros de. Brasil, país do futuro do pretérito. N-1 edições, p.25.

[6] LATOUR, Bruno. Diante de gaia: oito conferências sobre a natureza no antropoceno. UBU, p.14.

[7] Id. Ibid., p.123.

[8] TEIXEIRA, Faustino. Florescer na complexidade. Entrevista especial com Faustino Teixeira. Disponível aqui. Acesso em 16 de junho 2022.

[9] BEROGLIO, Jorge (Papa Francisco). Carta Encíclica laudato si’ - sobre o cuidado da casa
comum. Tipografia Vaticana. 2015, p.55.

[10] CHARDIN, Teilhard de. O fenômeno humano. 16º volume. Livraria Tavares Martins: Porto, 1970, p.11.

[11] Id. Ibid., p.325.

[12] VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Humanismo hoje: tradição e missão. Síntese. Revista de Filosofia V. 28 N. 91 (2001): 157-168.

[13]Op. Cit. p.5.

 

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