Bárbara de Alencar, a heroína de Exu. A primeira presa política do Brasil

Placa na cela solitária de Bárbara de Alencar. (Foto: Filipe Anderson | Wikimedia Commons)

09 Junho 2022

 

"Bárbara de Alencar rompeu com a tradição exclusiva de homens no século XVIII e foi uma das mais importantes articuladoras e militantes do movimento emancipacionista de signo liberal", escreve José Geraldo de Sousa Junior, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília - UnB, professor e ex-reitor da mesma instituição, em artigo publicado pela Redação Jornal Estado de Direito, 08-06-2022.

 

Eis o artigo. 

 

(Foto: Reprodução | Extra Classe)

 

Foi lançado em Brasília, no último 25 de maio, esse singular texto de Fernando Mousinho, escritor potiguar radicado no Distrito Federal. Eu até deveria ter estado presente no lançamento, a convite de Mousinho, para dizer algumas palavras. Mas os imprevistos do dia acabaram por me impedir participar do evento.

 

Uma pena. Não é uma penitência, é uma consideração trazer o livro para este Lido para Você. Eu queria muito ter confraternizado com meu conterrâneo potiguar (sou natalense por afeto e afinidade). Contemporâneo de Mousinho. Eu, mais transeunte pelo bairro de Petrópolis, ali onde está o Atheneu, onde estudei, num tempo de hegemonia do ensino público. Mesmo voltado para o ensino médio, naquele prédio histórico, havia catedráticos eméritos como Câmara Cascudo e meu avô Floriano Cavalcanti, professor de História (enquanto na Faculdade de Direito era titular da cadeira de Filosofia do Direito).

 

Não tive aulas com meu avô no Atheneu. Aulas célebres. Mas eu frequentava suas lições em casa, no alpendre ou na mesa patriarcal de refeições, no casarão da avenida Nilo Peçanha (hoje um grande edifício de apartamentos levantado no quintal da minha infância e que leva o nome do Desembargador Floriano Cavalcanti). Uma avenida curta mais que se fazia altiva numa ladeira que desembocava num balcão magnífico debruçado sobre a praia do forte e a praia do meio (hoje praia dos artistas, nome para o qual muito contribuiu minha irmã Dulce e a sua galeria do povo, instalada no muro de nossa casa na avenida Presidente Café Filho), à beira-mar.

 

No Atheneu tive aulas de latim com o Cônego Luiz Wanderley, vestido com sua batina preta surrada, cheia das cinzas de seu indefectível cigarro Astória. O cônego tocava o terror na hora das declinações. Meio surdo, não se prendia na articulação correta embora hesitante das palavras no rosa, rosae, no singular e no plural, nominativo rosa, rosae; vocativo rosa, rosae; acusativo rosam, rosas; genitivo rosae, rosarum; dativo rosae, rosis; ablativo rosa, rosis. Já desqualificava o arguido. Para ele o que valia era o ritmo. Cascudinho, decline o qui, quae, quod. E lá ia o esperto, numa fluência de quem tudo sabe: qui, quae, quod, quem tem barba tem bigode, só não come quem não pode, qui, quae, quod!. Brilhante, latinista, nota 10. “Seu Babau, quantas declinações existem no Latim”. “Sei não, professor”. “Sente, zero".

 

Nominativo, genitivo, dativo, acusativo, vocativo e ablativo.” Era o Cônego Luiz Wanderley arguindo o saudoso Raimundo Torquato, apelidado de Babu, mas o padre já declinava no acusativo: “Babau” (ver Valério Mesquita, O Atheneu, Lembrança que o Tempo não Desfez).

 

Mousinho se fez escritor, com estórias sobre o Tirol, o bairro vizinho. Ele é autor, junto com outros tirolenses, que oferecem mais de duzentos “causos” e histórias engraçadas, vividas nas décadas de 1960 e 1970 que foram contadas no livro “Amigos do Tirol – causos e histórias verídicas do tempo que, em Natal, assalto era apenas uma festa de carnaval, e quadrilha uma dança junina”. Disponível aqui.

 

Esse título dado a Bárbara de Alencar por volta de 1817, reposto no livro de Mousinho, está na história e veio para a lei que determinou sua inscrição no Livro de Heróis da Pátria.

 

Nascida no sertão pernambucano em 1760, na cidade de Exu, foi uma das poucas mulheres participantes da Revolução Pernambucana de 1817. Carrega, pois, o título da primeira presa política no Brasil, apesar de alguns questionamentos já que outras mulheres negras e indígenas também teriam participado da insurreição.

 

Num ensaio trazido para a Plataforma Dhesca, a propósito do 8 de março – A mulher e o seu protagonismo na história do Brasil, há uma consideração muito pertinente, ao chamar a atenção para o fato de que “o tempo e a atualidade mostram que o legado do país tem gênero”: “Neste 8 de março gostaríamos de exaltar mulheres que marcaram a história do Brasil, na luta por liberdade e direitos. Nomes como Dandara dos Palmares, Zeferina, Maria Felipa de Oliveira, Maria do Espírito Santo e Marielle Franco – aos quais eu gostaria de incluir Esperança Garcia, a escrava considerada a primeira advogada brasileira (Ordem dos Advogados do Piauí) – nos fazem relembrar da importante tarefa que temos – a de manter viva na história e na memória, esse legado. O Brasil carrega historicamente trajetórias de mulheres inspiradoras que revolucionaram o país na luta pela garantia de direitos não somente para elas, mas para todas e todos. Mas ainda assim, ainda que suas lutas fossem para a garantia dos direitos humanos, tiveram seus gritos silenciados por lutar contra uma política de extermínio, de corpos, de falas, de ideias”.

 

 

São mulheres, essas que foram mencionadas, mulheres negras, cujas histórias marcaram a formação social do País “e que deixaram seus legados para mostrar que são as verdadeiras protagonistas da luta e resistência em nosso país. Que os nossos corações e ideais estejam alinhados e juntas lutaremos contra toda e qualquer ameaça de governos e toda forma de autoritarismo. Porque a nossa vida pode acabar, mas os nossos sonhos são eternos”.

 

É conforme esse protagonismo que se destacou o nome da psiquiatra Nise da Silveira para registro no Livro de Heróis, mas que teve a lei inteiramente vetada pelo Presidente da República.

 

Bem disse o cineasta, escritor e jornalista Jorge Oliveira, que, com sua esposa e parceira Ana Maria Rocha, criou uma filmografia da saga alagoana – Floriano, O Mestre Graça, Perdão Mister Fiel e o premiadíssimo Olhar de Nise, reagindo ao veto do Presidente da República ao projeto de lei que inscreve o nome da psiquiatra Nise da Silveira no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. O veto à proposta foi publicado na edição do Diário Oficial da União (DOU) da quarta-feira (25/05), e poderá ser mantido ou rejeitado pelo Congresso.

 

 

Bolsonaro vetou o projeto aprovado pela Câmara que incluiria o nome da psiquiatra Nise da Silveira no pantheon dos heróis e heroínas do Brasil. Ora, o que se pode esperar de um sujeito que tem como líder o torturador Brilhante Ustra? A Nise certamente não iria gostar de ter na sua homenagem a assinatura de um fascista.”

 

A matéria (PL 6.566/2019), de autoria da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), foi aprovada pelo Plenário do Senado em 24 de abril, com parecer favorável da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA). Mas a Presidência da República argumentou que, após ouvir a Casa Civil, decidiu vetar a proposta, por representar “contrariedade ao interesse público”. Disponível aqui.

 

Nise terá certamente esse merecido reconhecimento num futuro próximo quando o Brasil recuperar seu ascendente curso democrático. O Livro de Aço, também chamado Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, registra indicações aprovadas em lei que lhes confere o status de heróis e heroínas nacionais.

 

O Livro foi aberto com a inscrição do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, em 21 de abril de 1992, por ocasião do bicentenário de sua execução. Incluído pela lei 7.919, de 11 de dezembro de 1989, seguindo-lhe Francisco Zumbi, mais conhecido como Zumbi dos Palmares, líder quilombola, inserido em 21 de março de 1997, pela lei 9.315, de 20 de novembro de 1996.

 

 

O Livro tem já 53 nomes nele inscritos, enquanto mais três já aprovados ainda aguardam registro. Anna Justina Ferreira Nery, Ana Maria de Jesus Ribeiro, mais conhecida como Anita Garibaldi, Clara Camarão, indígena, considerada precursora do feminismo no Brasil, Zuleika Angel Jones (Zuzu Angel), Sóror Joana Angélica de Jesus, Maria Felipa de Oliveira, heroína negra da Independência do Brasil na Bahia, Dandara dos Palmares e Luiza Mahin, guerreiras negras do período colonial do Brasil, são as mulheres que constam desse elenco.

 

São muito poucas mulheres. Entre elas Bárbara de Alencar, reconhecida para fins da distinção primeira presa política do Brasil. Heroína da Revolução Pernambucana, líder independentista, republicana e abolicionista. Incluída pela Lei 13.056 de 22 de Dezembro de 2014.

 

Não há que se questionar esse título. Certo que outras mulheres terão se engajado e terão sofrido a repressão nos seus mais graves termos, em diferentes períodos e nesse conturbado momento de instabilidade que marca o primeiro reinado em seguida a independência (cf. Lília M. Schwarcz e Heloisa M. Starling. Brasil: uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015). No capítulo 9 – Habemus Independência: Instabilidade Combina com Primeiro Reinado – as Autoras explicam a Revolução Pernambucana de 1817, de caráter republicano, liberal, mas que se manifestara como revolta por autonomia local para o mais efetivo desempenho dos interesses dos proprietários, da gente de bem.

 

Gente como a heroína republicana, mãe dos também revolucionários José Martiniano Pereira de Alencar e Tristão Gonçalves e avó do escritor José de Alencar, além de quinta avó do escritor Paulo Coelho.

 

O escritor Caetano Ximenes de Aragão publicou em 1980 o livro-poema Romanceiro de Bárbara sobre a Confederação do Equador com ênfase na saga desta heroína em 77 poesias, recentemente reeditado pela secretaria de cultura do Ceará sob a coleção Luz do Ceará.

 

Bárbara Pereira de Alencar é a mulher que apoiou as ideias republicanas que emergiam em Pernambuco em pleno século XIX. Integrante de uma família com destaque social, Bárbara era uma mulher rica e fazendeira da região Caririense – que naquela época, eram fazendas que foram construídas em vilas e dominadas pelos senhores de escravos que defendiam a monarquia, ou seja, eram a favor do rei. A senhora que aos 57 anos impulsionou os ideais republicanos no Ceará e participou das discussões e reuniões da Revolução, teve que fugir do sítio onde morava, o “Sítio Pau Sêco”. A mando do contrarrevolucionário e participante do reino, Joaquim Pinto Madeira, os soldados foram atrás dela para prendê-la, e mesmo assim ela conseguiu se esconder nas casas vizinhas.

 

Segundo escreve Juarez Aires, no livro Dona Bárbara do Crato, “a revolucionária foi acolhida por Dona Matilde, que era mãe do capitão Manoel Joaquim Teles, que era também Juiz Ordinário do Crato. Dona Matilde, já vendo que amiga iria ser presa a qualquer momento, pediu que seu filho recolhesse todos os documentos que comprovassem a participação na revolta. Os documentos foram levados a D. Matilde que os queimou de tal modo que nem a ata da independência, nem as proclamações e decretos do governo revolucionário foram encontrados, na devassa judicial”. Esse fato, de acordo com o Autor, “salvou dona Bárbara da pena de morte, mas não da prisão. Foi num presídio subterrâneo do Forte de Nossa Senhora de Assunção, em Fortaleza, que a revolucionária pagou sua pena de três anos de trabalho forçado. De lá, saiu com uma sede maior pela libertação do país e ainda defendeu seus ideais na Confederação do Equador, em 1824”.

 

 

O livro de Fernando Mousinho reúne prefácios que avalizam seu ensaio central na obra – Bárbara de Alencar, heroína de Exu – para demonstrar que apesar de seu lugar social, a personagem histórica se revelou com a fibra de uma disposição emancipatória:

 

Bárbara de Alencar, mulher de têmpera forjada no seio de uma organização social caracterizada pelas lutas de poder entre famílias tradicionais, de senhores de terra, de gado e gente; ou dito de outra forma, de senhores de baraço e cutelo. Portanto, em ambientes notadamente ocupados por homens, desafiou os poderes sociais e políticos do seu tempo.

 

Ainda na infância, ela aprendeu a ler e a escrever, uma ousadia feminina que facilitaria seu contato com as ideias revolucionárias e separatistas em ebulição nos seminários de Recife e Olinda. Bárbara levou às últimas consequências o fogo revolucionário de 1817.

 

Contrariando os padrões sociais da época – cujo núcleo essencial era o clã patriarcal rural, que se traduz em hegemonia econômica, social e política tão bem expressa na obra clássica de nossa literatura, Coronelismo, enxada e voto de Victor Nunes LealBárbara de Alencar rompeu com a tradição exclusiva de homens no século XVIII e foi uma das mais importantes articuladoras e militantes do movimento emancipacionista de signo liberal, ao lado de nomes não menos aquilatados como Domingos José Martins; Antônio Carlos de Andrada e Silva; Abreu e Lima (padre Roma); José de Barros Lima, o “Leão Coroado”; padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro; Cruz Cabugá; Frei Caneca; Manuel Arruda Câmara; Padre Miguelinho, entre outros.

 

O livro recolhe material biográfico apto a inserir no existencial a dimensão política de um protagonismo que possa expandir o papel social da protagonista para além de seu lugar de classe ou estamental:

 

Bárbara enfrentou preconceitos machistas de toda ordem e lutou de armas em punho no movimento emancipacionista de 1817, na então Província de Pernambuco. O movimento entrou para a História como Revolução Pernambucana e também foi chamado de Revolução dos Padres, devido à participação de mais de meia centena de clérigos entre os insurretos.

 

Seus últimos dias foram um verdadeiro exílio domiciliar. Além das sequelas sofridas pelas prisões, torturas, fugas e perseguições, teve seus bens confiscados pelo Império e seu nome difamado pelos adversários políticos. Morreu em 28 de agosto de 1832, aos setenta e dois anos.

 

Seu enterro ocorreu numa rede simples como pedira em vida, igualmente como eram sepultados seus escravos, que, segundo ela, eram seus amigos leais.

 

O livro de Fernando Mousinho abre espaço para retirar da dupla sombra que a obscurece a participação histórica de Bárbara de Alencar, que não reste reduzida em registros locais e incidentais. O primeiro é o empalidecer de 1817 em face da repercussão ampliada dos acontecimentos de 1824, com a Confederação do Equador; o segundo, a pouca atenção ao protagonismo feminino numa cultura insistentemente patriarcal.

 

Para o segundo aspecto, Mousinho revela a sua intenção. Mostrar o pioneirismo de uma mulher que não se deixou subjugar aos preconceitos de seu tempo: “Bárbara Pereira de Alencar representa exemplo de mulher que superou o seu tempo e fez história, ao contrário do que aludem aos quatro cantos do mundo as versões preconceituosas a respeito da participação feminina na sociedade e nas lutas libertárias.”

 

Sobre o primeiro, uma reflexão. Com a Confederação do Equador, um movimento republicano e separatista – segundo Schwarcz e Starling – “os confederados reivindicavam que o Brasil fosse organizado de maneira análoga ‘às Luzes do século’, seguindo o ‘sistema americano’ e não o exemplo da ‘encanecida Europa’. Na bandeira dos revoltosos figuravam não só os dois produtos da região – o algodão e a cana – como representações da República e do federalismo”. O Imperador debelou a revolta e sentenciou os revoltados, ordenando que fossem condenados. Assim que, “alguns líderes foram assassinados, enquanto outros, como Frei Caneca, acabaram presos. Quinze foram condenados a morte, entre eles Frei Caneca”.

 

O poeta e escritor João Cabral de Mello Neto descreveu, em versos, o último dia de Frei Caneca, em sua obra O Auto do Frade. Seu irmão, o historiador Evaldo Cabral de Mello, foi o organizador e redigiu a introdução ao livro Frei Joaquim do Amor Divino Caneca Coleção Formadores do Brasil, Editora 34, Ltda., 2001, intitulada Frei Caneca ou a Outra Independência. De João Cabral no Poema O Auto do Frade, vale o Fragmento: “Acordar não é de dentro, acordar é ter saída. Acordar é reacordar-se ao que em nosso redor gira.”

 

 

Também Bárbara, com Fernando Mousinho, ganha o seu Auto:

 

A bandeira de Pernambuco foi criada pelos revolucionários de 1817 e confeccionada pelo padre João Ribeiro de Melo Montenegro. No Brasão, 1817 figura como uma das datas históricas mais importantes do estado.

 

Portanto, a semente da expansão da liberdade popular nacional se confunde com a fantástica odisseia revolucionária de Bárbara de Alencar, marcada pelo exemplo de patriotismo e valentia sertaneja que anteciparam a independência do Brasil, que, com júbilo, eleva seu nome ao mais alto panteão da glória reverberando no altar da política nacional.

 

Eis que Bárbara ganha com Mousinho, se não aquele impulso pela luz, como a Diotima amorosa imaginada por Sócrates (Platão, O Banquete), mas aquela do ímpeto por se realmar que provêm da fonte transbordante das paixões humanas e das desordens que provocam suas ideias revolucionárias, tal qual a Diotima, descrita por Robert Musil (O Homem sem Qualidades) plena em sua autonomia viril de mulher madura, pronta para desencadear as ações fortes, tempestuosas, em suas consequências inesperadas e contraditórias, que lhe deram lugar na História.

 

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